quinta-feira, 31 de julho de 2014

A solidão das mães-meninas-sem-mãe. Uma leitura de As Mulheres de Tijucopapo de Marilene Felinto, por Lélia Almeida



A solidão das mães-meninas-sem-mãe. 
Uma leitura de As Mulheres de Tijucopapo de Marilene Felinto
Por Lélia Almeida [1]


Mãe é a coisa que mais toca.
Não vou desrespeitar nunca a menina que existe dentro de mim.

Marilene Felinto.

O romance As Mulheres de Tijucopapo [2] de Marilene Felinto, de 1980 é representante típico do fenômeno editorial que se dá a partir dos anos 80, em âmbito internacional, qual seja, um verdadeiro boom de publicações de autoria feminina, e se insere também, no que foi chamado por algumas críticas [3], de romances de maternidade.
A necessidade da construção de uma genealogia feminina, representada amplamente nos romances contemporâneos, de autoria feminina, e que se dá através da recorrência de uma narrativa em que se conta a história de uma mãe, de uma filha, de uma avó ou de uma neta, ou mesmo entre irmãs, tem como objetivo que a protagonista descubra a sua própria identidade. Este processo acontece na medida em que a protagonista, ao conectar-se com a sua própria história, através do reconhecimento de suas semelhanças e diferenças com a história de outras mulheres de sua família, conecta-se com seu próprio corpo, seus desejos e sua necessidade de expressão. Se tornam, desta maneira, todas elas, herdeiras de uma genealogia, criando entre as diferentes gerações, um movimento incessante de indagação e questionamentos que possibilita uma trajetória de descobertas e auto-conhecimento.
Se a matriz desta literatura que problematiza as genealogias femininas se dá entre as mães e as filhas, irmãs, ou avós e netas, esse modelo depois se expande e, além dos laços da ancestralidade, as genealogias vão se estabelecer através das amigas, das mulheres que dialogam com mulheres de outras épocas, entre escritoras contemporâneas e seus modelos canônicos, apenas para nomear alguns exemplos de como esta matriz primeira se desdobra em outras redes e relações significativas na vida das mulheres.
A necessidade da construção ou, inclusive, da reconstrução de uma genealogia se dá quase sempre em momentos de crise na vida da protagonista. A construção real ou imaginária de uma genealogia familiar, feminina, permite que a protagonista, freqüentemente, viva um processo de auto-conhecimento que a leva, de maneira inexorável, à ruptura com estruturas sociais, parentais, seja através de divórcios, separações familiares e de velhas funções e todo tipo de separações, e que se apresentam nesses momentos como inevitáveis. A revisão dessa genealogia feminina tem, portanto, para a protagonista, a possibilidade da busca de respostas que ela elabora para si mesma num momento de crise, e do questionamento de seus papéis sociais e sexuais. Como se ela escolhesse ou pudesse escolher, no momento da crise, com quem quer se parecer, às vezes identificando-se com determinados modelos familiares, às vezes rejeitando determinadas heranças que pensa não ter validade para si e sua descendência, justificadas pelos laços de ancestralidade.
Podemos considerar este o sentido central da genealogia, tal como a vemos nas narrativas de autoria feminina contemporânea, o de que há uma tradição feminina, herdada entre as mulheres através de experiências comuns e rituais próprios e específicos. Esses rituais quase sempre têm a ver com as modificações e crescimento do corpo e com a construção de uma identidade sexual. Os rituais que envolvem a ocorrência da primeira menstruação, da perda da virgindade, da gravidez, da história dos partos, da menopausa, etc., se tornam pontuais na construção da história de uma herança feminina. Se, por um lado, às mulheres restou muito pouco para herdar uma das outras, já que não herdam nem um patrimônio material e nem uma tradição literária, como já assinalou Virginia Woolf [4], não podemos deixar de afirmar que o resgate destes rituais, de um ponto de vista que critica padrões impostos de feminilidade, se faz necessário na reconstrução de uma linhagem, de uma experiência de semelhança.
Estas experiências entre as mulheres, serão, sem dúvidas, entre elas, muito diferentes das que acontecem entre os meninos e seus pais e avós, de quem eles têm, cheios de orgulho e vaidade, o que herdar e o que fazer com a herança, através de um patrimônio, um nome ou de uma tradição literária. O que quer dizer que a expressão de um desejo, como o da construção de uma genealogia feminina no imaginário literário contemporâneo refere-se á necessidade imperiosa que as mulheres têm de tentar saber quem são e o que querem.
Na atualidade, a literatura de autoria feminina prioriza o universo dos afetos femininos, criando uma tradição diferente da que até pouco tempo estava destinada aos personagens femininos tanto de autoria feminina como masculina.
Bárbara Ozieblo [5] chamou de um un vínculo poderoso a relação mãe e filha, que é o tema central deste tipo de literatura de autoria feminina. Ozieblo repete a mesma pergunta feita por Virginia Woolf ao indagar sobre a ausência de uma herança feminina que não nos deixou nenhum tipo de patrimônio, seja intelectual ou material. Para Ozieblo o surgimento, na literatura contemporânea de muitos países e, especificamente, na norte-americana, do par mãe e filha, é uma novidade já que, ao longo da história este par esteve excluído:
[…] la pareja madre-hija no existe en nuestra cultura; aseveración lógica puesto que no existe la madre. No debemos olvidar que la madre y la maternidad son conceptos del patriarcado, construidos para impedirle a la mujer la conciencia de su poder (p.10)
Antonia Domínguez Miguela [6] que investiga sobre o tema da recuperação da linhagem materna nas autoras latinas nos Estados Unidos, chama de literatura matrilineal esta literatura, para ela, riquíssima em formas e técnicas. Mesmo seguindo a tradição de outros países, em que a herança feminina, registrada oralmente ou na literatura escrita encontra-se dispersa em diários esquecidos ou manuscritos perdidos, percebe-a como muito mais complexa:
[…] en el caso de las latinas esta tradición es eminentemente oral y también desvela muchos otros aspectos comunes a la literatura femenina, tales como la experimentación formal, la narración acronológica, la fragmentación textual, la transformación y nuevo empleo de géneros literarios como la autobiografía y el género epistolar, la perspectiva múltiple, la polifonía, la feminización del lenguaje y del discurso literario a través de la inclusión de temas eminentemente femeninos que hasta ahora no se ajustaban al canon literario establecido (p.40)
Para Dominguez os romances que resgatam a linhagem materna são uma novidade já que figuras como a mãe ou a avó apareciam de forma inexpressiva n começo da literatura escrita por mulheres (p.34) e, ainda que tenham começado a aparecer paulatinamente, muitos romances representavam os conflitos relativos a mães e filhas referentes ao que Rich [7] denominou de matrofobia, em que as relações entre mãe e filha são essencialmente conflitantes.
Os romances e contos que tratam das genealogias femininas, em especial os que tratam do tema da maternidade, aparecem num primeiro momento, especialmente nos anos 50 e 60, como denúncia das dificuldades e frustrações históricas herdadas pelas filhas de suas mães e assim, sucessivamente, num movimento espiral, ao contrário. As mães e filhas, nestes romances, são inimigas, opõem-se e, para as filhas, as responsáveis pela repressão ou pelo sentimento de desvalor das filhas seriam as mães que, aliadas à ideologia patriarcal desqualificaria sumariamente as mulheres.
A literatura de autoria feminina escrita neste primeiro momento e, que também é tema recorrente em diferentes épocas, denominou-se de matrofobia e consistia, nestas narrativas, numa representação de filhas mulheres que rejeitavam veementemente suas mães como modelos identitários. Para Adrienne Rich, uma das teóricas mais importantes sobre o assunto,
[...] La matrofobia, como la ha denominado la poeta Lynn Sukenick, no es sólo el miedo a la propia madre o a la maternidad, sino a ‘convertirse en la propia madre’. Miles de hijas consideran que sus madres, que han ejemplarizado la resignación y el autodesprecio de los que las hijas están luchando por liberarse, han sido las transmisoras forzosas de las restricciones y degradaciones características de la existencia femenina. Es mucho más fácil rechazar y odiar abiertamente a la madre que ver, más allá, las fuerza que sobre ella actúan. Pero en un odio a la madre que llegue al extremo de la matrofobia, puede subyacer una fuerza de atracción hacia ella, un terror de que si se baja la guardia, se produzca la identificación completa con ella. Una adolescente puede vivir en guerra com la madre, pero usar sus perfumes y vestidos. Su manera de llevar su propia casa, una vez abandonado el hogar familiar, puede ser la negación del estilo de su madre: no hacer nunca las camas o dejar los platos sin lavar; es decir, un reverso inconsciente de la casa inmaculada propia de una mujer de cuya órbita necesita salir. (p.339)
[…] La matrofobia se puede considerar la escisión femenina del yo, el deseo de expiar de una vez por todas la esclavitud de nuestras madres, y convertirnos en seres libres. La madre representa la víctima que hay en nosostras, a la mujer sin libertad, a la mártir. Nuestras personalidades parecen mancharse y superponerse peligrosamente a la de nuestra madre. (p.340)
No Brasil, alguns contos de Tânia Faillace, nos anos 70 e alguns romances de Lya Luft, mesmo que sejam dos anos 80, são ainda representativos desta tendência que relata uma total incomunicabilidade entre mães e filhas, em que esta relação é desastrosa para as duas e é libertadora quando o vínculo se desfaz ou arrefece. Esgotado este primeiro momento, em que a revolta ou a raiva, as frustrações, os sentimentos de impotência e desvalorização são expressados pelas personagens das filhas em relação a suas mães, a literatura de autoria feminina toma outros rumos no que se refere ao tema das genealogias e à representação do par mãe e filha.
O contrário da mãe que rejeita ou abandona e que, ainda referenda os mandatos patriarcais que negam importância ou legitimidade às mulheres seria, em alguns casos, o que Dominguez chamou de la musa-familiar (p.38), como um personagem artístico e criativo que estabelece a transmissão da herança através da arte, de cuidar de um jardim, de cantar ou de contar histórias.
Giraudo [8] em seu trabalho sobre Tony Morrison, que trata especificamente sobre as genealogias femininas entre as escritoras afro-americanas, refere-se aos lares matricêntricos e ao que os críticos americanos chamam de herstory, sobre ritual de contar sua própria história,
(...) contar sua história, ou herstory, significa para uma mulher afro-americana descrever, ou traçar, “arcos de resgate”, encarnando “um projeto de reivindicação da individualidade e portanto de afirmação da continuidade afro-americana de um modo geral (Willis, 1987, p.82). Sugere portanto “um sentido visionário de um renascimento por meio do resgate da cultura”; ao contar herstory como história de sua mãe e de sua avó, pois, a escritora não transpõe as gerações “de modo a fechar o círculo”, mas antes relampeja em seus arcos de resgate “sempre em direção ao futuro” (Willis, 1987,p.54-55).
Marcela Lagarde [9] em seu trabalho Los cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas, afirma que a maternidade como é concebida pela sociedade patriarcal é, para as mulheres, uma forma de cativeiro:
[…] cautiverio es la categoría antropológica que sintetiza el hecho cultural que define el estado de las mujeres en el mundo patriarcal: se concreta políticamente en la relación específica de las mujeres con el poder y se caracteriza por la privación de la libertad (p.151)
As mulheres, vitimizadas historicamente pela idelogía del amor (p.161) deverão cuidar dos outros antes que de si mesmas. Os outros seriam […] hombres y mujeres con quienes se relacionan esencialmente para existir: las criaturas, los niños, los jóvenes, los adultos, los viejos y los ancianos, los enfermos y los minusválidos, los aptos, los desamparados y los muertos (p.249). Esta mãe que nutre e cuida de todos, mas que, ao viver relações de dependência vital, dá a sua filha como herança, sua carência e não se constitui ela mesma, como um modelo ou exemplo afirmativo.
Carentes do afeto materno, as filhas repetem assim, o mesmo modelo de cuidadoras que procuram, sem encontrar, a sua própria realização, nos outros. O que a filha recebe como herança da mãe é o que ela não tem, já que ela não es por sí misma (p.429). Para Lagarde, toda relação materna é ambivalente,
[…] Esta doble significación la caracteriza, tanto para los hijos hombres como mujeres. La madre es buena y mala a la vez, porque en su omnipotencia adulta y nutricia frente a la carencia infantil, da y niega, estimula y reprime: internaliza la cultura y con ella el poder. […] a la aceptación positiva de la madre de la cual se nutre, se suma el hecho de que el hijo se identifica con el padre, cuya figura social es poderosa y plena. La madre se realiza como ser objeto en esta relación con el hijo convertido en cónyuge filial, que no puede establecer con su cónyuge. En cambio, la madre debe transmitir a su hija aquello que la anula y somete, el contenido opresivo de su ser adherido a tal punto a su identidad genérica, que se confunde con ella. Así, en esta relación con la hija, la madre dadora y nutricia también es carencia erótica, sumisión (p.429)
As mães e filhas que aparecem protagonizadas na literatura de autoria feminina atualizam estes temas e estes conflitos presentes na vida das mulheres contemporâneas, que, por sua vez, repetem e reproduzem conflitos que, historicamente, se fazem presentes na vida das mulheres. E, atualizam também, a necessidade da construção de uma genealogia feminina que sirva de modelo e exemplo, em que as mulheres se sintam legitimadas em seus desejos, dúvidas e questionamentos.
Franca Basaglia [10] denomina de Madre-niña-sin-madre as mulheres que vivem este estado de orfandade que gera uma solidão característica da condição feminina no mundo patriarcal. A solidão das mães-meninas-sem-mãe é herdada também pelas filhas de suas mães:
[…] se ha hablado de las mujeres como niñas sin madre, y esto da lugar a otras consideraciones que podrían explicar la capacidad de soledad de la mujer con respecto al hombre. Este estado de orfandad significa que para muchas mujeres no hay posibilidad de regresión al seno materno por no haber nunca una madre a la cual recurrir en busca de apoyo…(p.431)
Não haveria assim uma mãe possível já que se a mulher, historicamente aprisionada em relações de dependência e submissão, incapaz de cuidar minimamente de si mesma, não é, genuinamente cuidadora ou doadora de amor a outrem.
Não é outra a história de Rísia, que volta a Tijucopapo em busca da história de sua mãe, Adelaide, como via possível para buscar o começo da sua própria história, vingar a sua dignidade perdida e reencontrar com a menina de sua infância.
Uma travessia nos é narrada. Uma viagem de ida e uma viagem de volta. Uma viagem de ida para São Paulo, uma viagem de volta para o Recife e para este lugar chamado Tijucopapo que é um bairro pobre do Recife, que é um lugar geográfico, que é um lugar histórico -, mas que é sobretudo um lugar simbólico.
Como nos esclarece Elódia Xavier [11], (...) Tijucopapo (...) figura na mitologia pernambucana como símbolo de resistência. Em 1646, durante a invasão holandesa a Pernambuco, sem ter o que comer, os flamengos da Nova Holanda invadiram a pequena vila de Tijucopapo, hoje município de Goiana, a 63 quilômetros de Recife. Conta a lenda que, sem armas de fogo, as mulheres do lugarejo enfrentaram a tropa com panelas e pimenta e venceram a batalha.
Mas é como um espaço simbólico que Tijucopapo vai-se desenhando ao longo do texto. Primeiro com um espaço original, misterioso, primordial, de onde nasceu a linhagem feminina da protagonista,
(...) Foi em Tijucopapo que minha mãe nasceu. Embora tudo se esconda de mim. Mas sendo que sei sobre o que ela me contou em acessos de um desespero triste, e sobre o que sei que sou e que é dela e que escutei no bucho dela e que está traçado na testa dela e no nosso destino, meu e dela. (...) Só sei que minha mãe nasceu em Tijucopapo. Lugar de lama escura. O resto, mistério, nem ela sabe. Só eu que sei. (p. 12-13).
Depois como um lugar onde Rísia terá de renascer ao reencontrar com suas origens (Desse meu corpo que vai. Que vai ver se renasce em Tijucopapo onde nasceu mamãe. (25-26)), e depois como espaço de guerra, de motim, de mulheres guerreiras e com as quais ela vai-se identificando:
(...) Donde vieram essas mulheres assim, a minha herança, mulheres da matéria do tijuco, cabelos grossos arrastando pela crina do cavalo, escanchadas no lombo do bicho sem sela, amazonas. Era uma noite, uma vez, minha mãe nasceu no seio de um pântano. Num sertão de lama. Mulheres como minha mãe trazem a sina das que desembestam no mundo adentro escanchadas em seus cavalos, amazonas, defendendo-se não se sabe bem do quê, só se sabe que do amor. Só se sabe que do que o amor as faz sofrer. Só se sabe que do que o amor as fez traídas. São amazonas a cavalo vindo fazer marca no Tijucopapo, lá onde tudo é lamaçal. As mulheres de tijucopapo: ferradura. As mulheres de Tijucopapo: é como fica tão pouco de tudo, e é como fica tão tudo a ponto de ser herança. As mulheres de Tijucopapo: sou eu com minha sina de lama, eu que saí, bicho da lama, tapuru, onde a praia encontra a lama.
As mulheres de Tijucopapo: sim. Vou. Sou escorregadia. (p. 56)
A relação de orfandade descrita por Basaglia sobre as mães que abandonam as filhas, têm aqui uma explicação concreta já que a mãe de Rísia por ser a décima e tanta filha teria de ser dada, este sentimento de orfandade é para todas elas uma herança, e o que é transmitido entre elas é o abandono, a desvalia, a solidão
(...) Minha mãe nasceu e eu queria ver nisso a minha salvação. Mas não é... (p. 14)
(...) Era 1935, todos os raios da lua escapuliam do céu preto alumiando o caminho num atalho de serra por onde o jegue vinha empinando os caçuás. Minha avó nem sequer açoitava o bicho; vinha pachorrenta, os cabelos entronchados em cocó nas costas. Minha avó era tão negra que se arrastava. Ela levava minha mãe, a que seria dada. Minha mãe veio num caçuá. Minha mãe foi dada numa noite de luar. Minha vó não podia. Era o seu décimo e tanto filho. Não podia matar mais um daquela fome que era toda de farinha e charque e falta d´água. Minha mãe seria dada. Minha mãe seria dada. Minha mãe era novinha como um filhote. Eu chorava como nunca. (p.19)
(...) Minha mãe tinha perdido todos os contatos com o verdadeiro de si mesma. O último originário de mamãe se apagou com os raios da lua na noite de luar em que ela foi dada. Tudo de mamãe é adotado e adotivo. Minha mãe não tem origens, minha mãe não é de verdade. Eu não sei se minha mãe nasceu. (p.34)
Uma travessia nos é narrada. Uma viagem de ida para São Paulo e uma viagem de volta para Tijucopapo. A narrativa é uma conversa com Nema e uma carta que Rísia quer escrever para a mãe, uma carta em língua estrangeira, como nos filmes, é uma ária também onde ela quer contar sua travessia, contar sua história.
Sabemos então de sua infância precária, dos tormentos que significavam os nove meses de gravidez de sua mãe, do ódio que sentia pelo pai, da culpa pelo irmão que nasce morto, de Jonas, o primeiro amor, de suas outras relações genealógicas, as amigas, Nema, Luciana, Libânia, Ruth, Lita, da traição de tia Ilsa, da amante do pai, Analice que ela jura de morte mas não consegue matar, da história da mudez e da gagueira na infância, da magreza, da extrema pobreza, da menina que comia terra, das giárdias, dos oxiúros, da tia alcoólatra, do desrespeito dos irmãos pelo seu espaço, seu salário, seu trabalho, da perda do amor de Jonas e da ida para São Paulo. Uma vida precária, pobre e frágil.
As datas de 1964 e 1969 são apenas mencionadas, a Revolução é nomeada, este é o período da ida para São Paulo, assim como antes a década de 30 é apenas mencionada como a data do nascimento de sua mãe.
A solidão e a pobreza também estão presentes em São Paulo , a superficialidade nos relacionamentos, os amantes desconhecidos, os sonhos frustrados, os sonhos de ser advogada, diplomata, política, e de ter uma vida como a dos filmes, em inglês: (...) Saí de São Paulo porque lá eu me achava uma apedrejada (101), e por não poder
(...) desrespeitar a menina que existe dentro de mim. Que está sentada num trono, e por isso eu vou a Tijucopapo. Nem que lá eu seja uma perdida para o que há de beleza na safadeza. Nem que eu perca as mil festas e as mil luzes de São Paulo, a rica. Nem que eu tenha de passar sem o meu gosto pelo brilho das luzes, sem esses sabores (...) Não agüento como se faz em São Paulo. Em São Paulo perde-se o amor de um homem e se está sujeito a tudo. São Paulo é de um jeito que não é o meu. E é tremendo de choro que suporto aceitar que São Paulo tem o seu jeito. (p.79)
A viagem de volta de São Paulo para Tijucopapo é uma longa travessia e agora justificada pela maturidade e pelo desejo de reencontrar o lugar da origem materna como o lugar de sua própria origem, lugar identitário, matricial,
(...) Estou indo embora da cidade onde me fiz mulher mas para onde cheguei criança. Parece que um sobreviveu ao outro e portanto precisei vir. Agora quero compor uma ária que recomponha a minha caminhada pela estrada. Quero compor uma ária que saia música fina como as cordas do violão. Uma ária história da minha passagem da estrada para essa mata. Da minha andada pela mata. Uma ária que seja a carta que escreverei quando chegar a Tijucopapo, a terra onde minha mãe nasceu. Uma ária que seja da minha partida à minha chegada. Quero compor uma ária que recomponha a minha retirada pela estrada e da estrada para o campo, esse, onde quero encontrar as flores que pintarei na paisagem com lápis de cera, na carta de minha mãe. Quero compor uma ária que recomponha a minha ira e a faça calma criança amada. Quero compor uma ária de amor que ecoe nas cavernas dessa montanha onde estou. (p.85)
A narradora adverte na sua chegada ao Recife, às terras pernambucanas: (...) O resto são falhas e inconclusões. (...) Recife está sempre morrendo de alucinação (...) As alucinações de Recife não são de peiote não. São de insolação. Recife, a insolarada. Recife está queimando em queimaduras de não sei quantos graus. (p.110)
Na noite do dia de sua chegada ao Recife ela encontra com um desconhecido, um homem a quem ela se entrega num completo e belíssimo ato de amor, diferenciado de toda a referência masculina apresentada no texto até então, sempre violenta, frustrante, desqualificada. O ato em si é amoroso, sensual, selvagem e é este homem que lhe anuncia que em Tijucopapo levantou-se um motim, um motim de mulheres, um grupo armado de mulheres, que uma revolução está em marcha, que é uma guerra de conquista, que Recife está em chamas. Ele a presenteia com uma égua e ela continua sua marcha para Tijucopapo. No meio da estrada, interrompida por macacos que lhe pedem documentos e lhe impedem a passagem ela lembra que o nome do homem com quem estivera era Lampião. Tentando passar pelo bloqueio dos macacos que apontam uma espingarda para ela, era uma guerra afinal, um deles acerta um tiro no lombo da égua que cai morta e atira Rísia, tal qual uma Alice, para um abismo onde ela cai quando leva quedas (p.120).
Uma queda vai ser narrada. Um devaneio infantil, uma sensação de profundo mal estar, uma lembrança da infância, Rísia criança lembra de um dia qualquer, uma manhã e um pressentimento, um sentimento de desassossego, insatisfação, a lembrança do pesadelo de ter sido raptada por um papafigo num cavalo alazão, misturada com o surgimento de um pássaro preto na cozinha, um sentimento de infelicidade, uma ansiedade sem fim, “infância são ânsias” (p.122), é sete de setembro e ela vai desfilar de tarde, Rísia sobe num tamborete com um pedaço de pau nas mãos para cutucar a irmã que estava tomando banho, por um buraco de tijolo que havia no alto, na parede do banheiro. Rísia cai do tamborete, a queda e as sensações são narradas em pormenores, a vertigem, a humilhação, o gosto amargo na boca. Quando ela acorda muitas mulheres em volta da cama estão cuidando dela:
(...) Dez rosto de mulheres minhas mães. Tinha dez mães. Nenhuma servia. Eu estava tão fraca e desprotegida que nem dez mães serviriam. Nem dez abraços. Eu estava no lugar solitário que é o lugar de uma queda, o arraso quase que total. Nenhuma mãe serviria mais. E havia dez rostos de mulheres minhas mães. (p.127)
Quando Rísia acorda, ela já estava em Tijucopapo e haviam se passado nove meses:
(...) Ela está numa cama rodeada por mulheres, mulheres de cabelos grossos como cordas arrastando pela crina do cavalo (p.130), (...) eram mulheres que eu vira nascer, só podia ser (...) eram mulheres que não eram minha mãe. Essas mulheres, que não eram minha mãe, tinham a sina das que desembestam mundo adentro escanchadas em seus cavalos, amazonas defendendo-se não se sabe bem de quê, só se sabe do que o amor as fez traídas. Mulheres na defesa da causa justa. (...) Eu já estava em Tijucopapo. Uma passagem. Um passe de fantasia, quase um intervalo de pensamentos, um único passo. Eu cheguei a Tijucopapo por uma queda. Percorri um abismo inteiro. Num tempo de nove meses. (p.131).
Ela reencontra Lampião, um guerreiro que luta por uma causa justa e percebe que é amando de novo que se refaz (p.133), e diz que precisa dar um telefonema, escrever uma carta, uma carta que ela ditaria a Lampião, uma carta para sua mãe:
(...) Nós vamos, e a bandeira há de ficar. Nós vamos fincar bandeira. Nós vamos em busca da justiça das luzes, e caso haja destruição é porque nós viemos de regiões assim, agrestes, de asperezas de alma, de docilidade nenhuma, de nenhum beijo e nenhum abraço, de tiquinhos de comida na cuia e de lombrigas na barriga, e de seda, mamãe, de insolação e forca no caminho para a escola, de não saber mais da própria vontade - de não saber de íamos à escola ou se fazíamos alguma coisa da vida (p.135)
(...) Mas ontem eu tive uma noite de muitos sonhos, entre os quais o de que estou mesmo indo vingar a menina que existe dentro de mim e que não posso desrespeitar, e que é uma menina sentada num trono, e que é uma menina que chora sua incapacidade de onipotência exigida por uma mesa longa de ministros. É por isso que eu vou. Porque eu posso no máximo seguir Lampião. Por uma causa justa.
O que eu fiz foi um pensamento. As mulheres de Tijucopapo era, enfim, como eu fazendo sombra no chão, meio dia de sol de fogo, caminho da BR.
É isso mesmo, mamãe. Eu quero que minha vida tenha um final de filme de cinema em outra língua, em língua inglesa. Eu quero que tudo termine bem. (p.137)
Uma travessia de nove meses e uma anunciação, num parto às avessas, para a própria mãe, nos são narrados, através de uma carta, de um telefonema, sabemos assim da chegada de uma menina e de suas intenções. Uma menina que se transforma, no vazio da queda, na solidão irremediável de ser só no mundo, em sua própria mãe.
Quem é Rísia no final da narrativa? Mais uma nordestina destruída por uma travessia inglória no centro do país, de volta ao nordeste, e em guerra, marchando BR afora, junto a uma multidão revoltosa? Rísia voltou para Tijucopapo? Morreu? Casou com Lampião e foi feliz com o filho que pode ter sido gerado na noite na campina, na chegada na incandescente Recife? Quem é Rísia, que projeta como uma Macabéa clariceana num céu de cinemascope um final feliz? Que é uma égua tal qual o cavalo de Joana? Agora eu sou uma estrela, em linguagem cinematográfica, não é, afinal, o mesmo que dizer, eu quero que minha vida tenha um final de filme de cinema, eu quero que tudo termine bem?
Rísia, é agora filha de Marilene Felinto, que ao partejar e maternar estas meninas sertanejas, dar-lhes vozes e um destino - como o faz em As Mulheres de Tijucopapo e em o Lago Encantado de Grongonzo - diz não à orfandade destas pobres meninas brasileiras e que, como suas mães, traz, de muitas maneiras, nas malhas da ancestralidade, um destino maldito de mães-meninas-sem-mãe. E ao qual ela diz não através da escritura.

BIBLIOGRAFIA
CIPLIJAUSKAITÉ, Biruté. La novela femenina contemporánea (1970-1985). Hacia una tipología de la narración en primera persona. Barcelona: Anthropos, 1988.
FELINTO, Marilene. As Mulheres de Tijucopapo. Rio de Janeiro: 34 Letras, 1992.
GIRAUDO, José Eduardo Fernandes. Poética da Memória. Uma leitura de Toni Morrison. Porto Alegre. Editora da Universidade/ UFRGS, 1997.
LAGARDE, Marcela. Los cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas .México: Universidad Autónoma de México, s/f.
MIGUELA, Anotonia Dominguez. Esa imagen que em mi espejo se detiene. La herencia femenina en la narrativa de latinas en Estados Unidos. Huelva: Universidad de Huelva, Servicio de Publicaciones, 2001.
OZIEBLO, Barbara (Ed.) El vínculo Poderoso: Madres e hijas en la literatura norteamericana. Granada: Universidad de Granada, 1998.
RICH, Adrienne. Nacemos de mujer: la maternidad como experiencia e institución. Madrid: Ediciones Cátedra, 1976.
XAVIER, Elódia. “Resgate da dignidade perdida: As Mulheres De Tijucopapo”. X Seminário Nacional Mulher e Literatura. I Seminário Internacional Mulher e Literatura. Mulheres no Mundo: Etnia, Marginalidade e Diáspora. Junho 2004. Anais João Pessoa PB. EditoraUniversitária UFPB. Idéia Editora. 1 CD ROM.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1982.
Notas:
[1] Lélia Almeida é escritora e Doutoranda do Programa de Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
[2] FELINTO, Marilene. As Mulheres de Tijucopapo. Rio de Janeiro: 34 Letras, 1992.
[3] CIPLIJAUSKAITÉ, Biruté. La novela femenina contemporánea (1970-1985). Hacia una tipología de la narración en primera persona. Barcelona: Anthropos, 1988.
[4] WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
[5] OZIEBLO, Barbara (Ed.) El vínculo Poderoso: Madres e hijas en la literatura norteamericana. Granada: Universidad de Granada, 1998.
[6] MIGUELA, Anotonia Dominguez. Esa imagen que em mi espejo se detiene. La herencia femenina en la narrativa de latinas en Estados Unidos. Huelva: Universidad de Hue
[7] RICH, Adrienne. Nacemos de mujer: la maternidad como experiencia e institución. Madrid: Ediciones Cátedra, 1976.
[8] GIRAUDO, José Eduardo Fernandes. Poética da Memória. Uma leitura de Toni Morrison. Porto Alegre. Editora da Universidade/ UFRGS, 1997.
[9] LAGARDE, Marcela. Los cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas .México: Universidad Autónoma de México, s/f.
[10] BASAGLIA, apud LAGARDE (s/f, p.43)
[11] XAVIER, Elódia. “Resgate da dignidade perdida: As Mulheres De Tijucopapo”. X Seminário Nacional Mulher e Literatura. I Seminário Internacional Mulher e Literatura. Mulheres no Mundo: Etnia, Marginalidade e Diáspora. Junho 2004. Anais João Pessoa PB. EditoraUniversitária UFPB. Idéia Editora. 1 CD ROM.

© Lélia Almeida 2006
Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid
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https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero33/asolidao.html

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