terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Viagem através do tempo do homem, francisco vaz brasil



Viagem através do tempo do homem
francisco vaz brasil


“i don’t wanna be a soldier mamma,
i don’t wanna die…”
eu não quero ser soldado, mamãe,
eu não quero morrer,
ser mais uma vítima
da eterna intolerância humana...
preciso contar às crianças vindouras
alguma história das belas manhãs de janeiro
e dos memoráveis idílios y factos das humanas eras...
primeiro fui nômade, inventei a roda;
fiz fogo atritando pedras;
inventei a pólvora;
senti fome e cacei;
senti frio e criei abrigo, choupanas, vilas e cidades;
organizei linguagens e gramáticas;
decifrei a pedra da roseta egípcia;
criei bulas, calendário, bússola, caleidoscópio;
fomentei o escambo e organizei mercados e bolsas...
eu não quero ser soldado mamãe,
não quero morrer entrincheirado na lama,
ser alvo de metralhadoras e mísseis assassinos,
alimento de ratos e piolhos ou vítima da peste negra...
tuaregue no Saara, lá amei Cleópatra;
tive riquezas no antigo Mali;
em 1324 Mansa Mali fez-me companhia
na peregrinação à Meca,
dever muçulmano uma vez na vida...
vi
Napoleão sonhar com Waterloo,
Ghandi libertar a Índia,
Joana D’Arc vencer os ingleses em Reims
e ser queimada em praça, com a bênção da Inquisição.
vi
A cabeça de João Batista na bandeja de Salomé;
os cafezais venezuelanos de Simon Bolívar;
a abertura do Suez, entre Europa e Índia;
Murasaki Shikibu contando A História de Genji;
o índio e a loira amando-se na linha do horizonte
e Coca Cola sendo saboreada em Shanghai...

quero contar às crianças vindouras
como o sultão Maomé conquistou Constantinopla em 1453;
porque Santos Dumont pilotou o 14-Bis e suicidou-se;
sobre as lições de anatomia de Andréas Vesalius, em Pádua;
o Ser ou Não Ser, em Hamlet, de Shakespeare;
sobre Henry Ford e o Ford T;

sobre as guilhotinas da Bastilha na Revolução Francesa;
sobre a locomotiva de George Stephenson;
sobre Alexander Graham Bell e o telefone;
do mofo que salva, na penicilina de Fleming;
sobre Openheimer e a bomba atômica no dia
em que a Terra parou sob o bombardeiro Enola Gay
ignorando as crianças de Hiroshima e Nagasaki...
eu não quero ser soldado mamãe;

eu não quero morrer sem bancar o sofista;
sem poder rever Anaxímenes, Sócrates, Aristóteles, Platão.
Eu preciso dizer às crianças vindouras,
de Sapho, Shelley, Sheldon, Celan, Drummond e Cabral;
de Cecília, Paes Loureiro, Max Martins, Neruda e Cervantes;
dos infernos de Dante na Divina Comédia;
da Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud;
do telégrafo de Guglielmo Marconi;

comentar com elas as Leis de Newton e as teorias de Einstein;
estudar com elas a Origem das Espécies de Charles Darwin,
os trabalhos de Vital Brasil e a Lei das Doze Tábuas...

eu preciso viajar com as crianças vindouras
as trilhas de Marco Pólo, Colombo e Pedro Álvares Cabral;
de Ibn Battuta, Zheng He, Vasco da Gama, Fernão de Magalhães,
Hernán Cortés, Matteo Ricci, Edwin Hubble e Jacques Custeau...
preciso falar-lhes de Guilherme, o Conquistador;
de Napoleão Bonaparte, do Papa Inocêncio, de Kublah Khan,
de Suleimã, o Magnífico, de Catarina de Médicis, de Elizabeth de Akbar,
de Otto von Bismarck, Frederick Douglass, Susan Anthony, Florence Nightingale, John D. Rockefeller, Jane Addams, Mohandas Ghandi, Vladimir Lênin, Helen Keller, Adolf Hitler, Mão Tse-Tung, Kwame Nkrumah, Nelson Mandela, Martin Luther King, John Kennedy,
Ruy Barbosa, Truman Capote, Susan Sontag, Jane Austen...

eu não quero ser soldado mamãe,
eu vi muita gente morta na Riachuelo, de Canudos;
em Bruxelas, nos campos de concentração alemães;
nem no Vietnã, em Bombaim ou nas Malvinas.
mamãe eu não quero morrer
de napalm, de gás mostarda, de gás cloro, ou pó anthrax
e muito menos sob mísseis ou fuzis AR 15 ou em fogo cruzado
nos morros do Rio de Janeiro;

eu preciso mamãe, falar às crianças vindouras,
sobre Fan Kuan, Guido de Arezzo, Dante Alighiere, Hemingway,
Da Vinci, Michelangelo, Rafael, Andréa Palladio, Lous Armstrong,
Shakespeare, Monteverdi, Cao Xueqin, Hokusai, Beethoven, Tolstoi, Picasso, Walt Disney, Cézanne, Rousseau, Marx, Engels, Adam Smith,
Kipling, Vinicius de Moraes, Beatles, Queen, Rolling Stones, Woodstock, Ibn Sina, Zhu Xin, Santo Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Lampião, Ibn-Khaldun, Lutero, Descartes, Foucault, Locke, Kant, Simone de Beauvoir, Madre Tereza, Jobim, Charles Dickens, Walt Whitman, Marguerite Duras, Albert Camus, Fernando Pessoa, Emile Dickinson, Noel Rosa, Borges, Márquez, Parra, Kerouac, e mais...

“i don’t wanna be a soldier mamma,
i don’t wanna die…”

eu preciso, também, botar meu bloco na rua,
agarrar a primeira colombina,
levá-la ao meu Jardim da Babilônia
e agitar no bloco Jacaré No Sê-KuhAnda;
depois sairemos no Há Jacob no Pau de Arara
e amar-nos-emos até a quarta-feira de cinzas
e nos embeberemos nas madrugadas de janeiro
e tocaremos as trombetas & acordaremos os cavaleiros do apocalipse.
agora, mamãe, eu quero é botar meu bloco na rua.
mas, antes preciso conversar com as criancinhas vindouras
eu tenho uma esmeralda na algibeira e muita história pra contar.

“i don’t wanna be a soldier mamma,
i don’t wanna die…”

Indizíveis, Francisco Vaz Brasil



Indizíveis
Francisco Vaz Brasil



No instituto médico-legal
Dissecaram o corpo da palavra
Com um ereto cinzel diamantado...
- a placa de Petri, horrorizada, observava...
 
Paredes hirtas, tijolos escarlates
Espectros imemoriais, silêncios lancinantes
(gritos, lascívia, preguiça, prazer...)

De gesso, tosco pensamento urge:
A palavra, sonora e fria solenemente
reage, nega, renega, sonega, protesta,
em súplicas, réplicas e tréplicas;
mexe, remexe, fragmenta-se em sóis:
Pedaços de literariedade e sons de cítara escorraçada...
E o meu computador insiste em escondê-la
E agora multiplica-se, saltando como uma matrix
Projetando-se na tela
(e não sei como ordená-las
Em frases para dizer que te amo,
Nem canções que explicitem adeus)
- puras reflexões incorpóreas, sem arquitetura.

Murmúrios, marulhos, lamúrias, entretendendo-se,
originam a frase (?)
Travestida, mal-acabada entre grãos de areia multicolor,
entre verbos e pronomes, sujeitos malpredicados,
Predicativos de erros e metáforas sem rumo,
Intertextualidade arrítmica
( um rosto novo, pele nova e opressora)

A geografia de teu corpo, palavra,
Inacessível-sensaborosa-transcendental,
Está na curva, inscrita na íris do olho,
Circunspecta, onde dúvida e incerteza pairam
Numa canção do aonde se insere o onde
E o quando não tem porque,

E a seta de um seio duro
aponta
a direção
do pensamento-incoeso-incoerente-perplexo
desamparado-circunflexo
a- nexo, a-plexo,
ponto desconectado...

Silêncios perniciosos de fonemas inservíveis,
Cobras y lagartos mudos
– e tu, palavra, não sais
- você não sabe o que é sentir-se
hirto como um morto,
Náufrago do pensamento perdido...

- Parir um poema é mais fácil que criá-lo.
Se bem que além-mar os peixes combinam danças
E seus colares de letras indizíveis
projetam meu olhar em tua direção 

- palavra...

A IMPLOSÃO DA MENTIRA, Affonso Romano de Sant'Anna



A IMPLOSÃO DA MENTIRA
Affonso Romano de Sant'Anna

Fragmento 2


Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.

Mentem. Mentem caricatural-
mente.

Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.

Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente. Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre. Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre. E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.

E assim cada qual
mente industrial?mente,
mente partidária?mente,
mente incivil?mente,
mente tropical?mente,
mente incontinente?mente,
mente hereditária?mente,
mente, mente, mente.

E de tanto mentir tão brava/mente
constroem um país
de mentira
—diária/mente.

Do livro "A Poesia Possível", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1987
Affonso Romano de Sant'Anna