quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Verbalizando o verbo

Verbalizando o verbo

francisco vaz Brasil


Primeiro veio o verbo: in verbis;

Depois vieram os substantivos,
adjetivos, pronomes, is acentos 
e as outras traquinagens gramaticais

Foi, então que Dom João, 

Fugindo dos franceses, ao banhar-se
Com as negas do leite, ali, 
no Forte Copacabana e abraçado 
a uma mulata do Sargentelli gritou:
Se é para o bem das minhas morenas
E felicidade geral no favelão
Diga ao povo das senzalas que “Eu Fico!”

Foi da primeira conjugação, na primeira pessoa

E a traquinagem continuou no século XIX.

Em seguida, Pedro II, recém chegado de Miami

E montado em sua jumenta, às margens do igarapé
Ipiranga, onde lindas lavadeiras banhavam-se
E lavavam as roupas e as partes baixas,
Empunhou sua chibata e mirando as Krikas
das negras -que eram roxas, gritou em alto tom:
“Independence or Death!”

E dali se afastou alegremente, entre um gole 

e outro de tiquira junto com trezentas moças morenas

Logo veio a Duquesa de Santos

pegou a jumenta de Dom Pedro
e a acomodou nas partes mais íntimas
de seu armário...

E, in verbis veio a carne

Pois carne não vinga sem carne
E sem verbo não se pare um poema...

ÉGLOGAS PARA UM SENHOR CHAMADO CARNAVAL

ÉGLOGAS PARA UM SENHOR CHAMADO CARNAVAL
Francisco Vaz Brasil


toda gente se achegou
por necessidade
por sadismo
talhando pedra e barro
aos empurrões
e palavrões
à praça
perplexa e apática

os blocos
- palhaços mambembes
costelas viventes
de uma inflação muda:
               punhal afiado

os blocos passando
- desfile macabro
corpos fantasiados
batucada fantasma
em desfile
na álgida metrópole

o Teatro –da Paz –
taciturno observa,
há tempos imemoriais
na espessura do gesso
na pauta sonora e fria
no espaço da moldura
nas vozes suplicantes
das noites da belle èpoque

no terraço dos edifícios
as pedras não entenderam e se calaram
em sua saliva de pó e calcário

nas escolas (de samba)
surgiram equações no gesto
e dúvidas no esquadro:
os passos seriam milimétricos;
os giros do compasso eram a agonia
da porta-estandarte e o mestre-sala tremia
como quem nasce (oh, carnaval)
em círculos de bronze
rodas de samba, brazões e tradições...

as evoluções do passista
no tapete vivo de carne e asfalto
são a esperança
e a voz do crooner , desafinada,
era talho e atalho no corpo
inerte e inerme
da plateia
(que se oferece dúbia,
nas curvas, como um rio
marmóreo, límpido, onírico)

a praça sozinha,
em meio à multidão, sorri
sua forma bem lavada
em barras de suor,
lágrimas felizes
e aço em combustão

mas o carnaval
nasce assim, maduro:
é o tempo
paridor de estrelas
cubos, alvoradas e cristais;
lágrimas congeladas,
sorrisos y sorridentes
- brincantes forjados em laboratório

é o carnaval
que da estrutura dos ritmos
criou a linha do viver
e o carnaval está nas gentes
incrustado como a ostra
à espera da semente perolar

está no tempo a descoberto
para o orvalho e o raio
sob a chuva e as margaridas
com prêmios de mil centavos

sim, e ele explode em nós
em glóbulos, nas artérias
e dele correm os homens tranquilos
em rodas e pedais do esquecimento

para quem amou
nele está o segredo, ou no umbigo,
o silêncio antigo, o ruído das palavras
o atrito e a entrada da lâmina
no subterrâneo do prazer!

e o museu com o que se disse
                  e o que não se disse
e o passado em retângulos de mármore
vê o carnaval como paralelos
cravados sobre o chão

lá estão o moço e a moça
os seus estremecimentos
e a criança
- seu medo de ser aborto e natimorta

no bar do parque, aqui sim,
aqui gasta-se o níquel
e o don Juan deseja o mulher do próximo
- aqui se ama, se amou, se amaram
o índio e a loira sob os lençóis do horizonte

a gênese do carnaval
líquido, alegre, sujo, loucoricida,
entrementes, é imensa e única:
- de um fio faz-se o tecido,
- por um fio faz-se a massa
  estonteante da mulher amada
(margens calculadas para o amor)
e por um fio fez-se o poema e a roupa
por um fio faz-se um filho e um rio
por um fio faz-se encurtar distâncias
por um fio também jorra
o sangue dos que fazem o crime, a guerra

por um fio,
podemos salvar o nosso carnaval...

[Publicado no jornal Folha do Norte, de Belém,

Em 30 de janeiro a 5 de fevereiro de 1978]

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Indizíveis Francisco Vaz Brasil

Indizíveis

Francisco Vaz Brasil


No instituto médico-legal

Dissecaram o corpo da palavra
Com um ereto cinzel diamantado...
- a placa de Petri, horrorizada, observa
Paredes hirtas, tijolos escarlates
Espectros imemoriais, silêncios lancinantes
(gritos, lascívia, preguiça, prazer...)

De gesso, tosco pensamento urge:

A palavra, sonora e fria solenemente 
Reage, nega, renega, sonega, protesta,
Em súplicas, réplicas e tréplicas;
Mexe, remexe, fragmenta-se em sóis:
Pedaços de literariedades e sons de cítara escorraçada...

E o meu computador insiste em escondê-la

E agora multiplica-se, saltando como uma matrix
Projetando-se na tela
(e não sei como ordená-las
Em frases para dizer que te amo,
Nem canções que explicitem adeus)
- puras reflexões incorpóreas, sem arquitetura.

Murmúrios, marulhos, lamúrias, entretendendo-se,

Originam a frase (?)
Travestida, mal-acabada entre grãos de areia multicolor,
entre verbos e pronomes, sujeitos mal-predicados,
Predicativos de erros e metáforas sem rumo,
Intertextualidade arrítmica
( um rosto novo, pele nova e opressora)

A geografia de teu corpo, palavra,

Inacessível-sensaborosa-transcendental,
Está na curva, inscrita na íris do olho,
Circunspecta, onde dúvida e incerteza pairam
Numa canção do aonde se insere o onde
E o quando não tem porque,

E a seta de um seio duro 

aponta a direção

do pensamento-incoeso-incoerente-perplexo

desamparado-circunflexo
a- nexo, a-plexo,
ponto desconectado...

Silêncios perniciosos de fonemas inservíveis,

Cobras y lagartos mudos – e tu, palavra, não sais

- você não sabe o que é sentir-se 

hirto como um morto,
Náufrago do pensamento perdido:
- parir um poema é mais fácil que criá-lo.


Se bem que além-mar os peixes combinam danças

E seus colares de letras indizíveis
projetam meu olhar em tua direção, palavra...