segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O mitólogo - Artista manqué e manipulador de narrativas, Lévi-Strauss foi um grande escritor na arte da retórica, por Perry Anderson


O mitólogo
Artista manqué e manipulador de narrativas, Lévi-Strauss foi um grande escritor na arte da retórica
por Perry Anderson

O antropólogo mais famoso do século XX poderia intimidar qualquer candidato a biógrafo. Claude Lévi-Strauss, que morreu há dois anos, negava que sua pessoa tivesse qualquer interesse. Dizia que lembrava pouco de seu passado e tinha a sensação de que não havia escrito os próprios livros. Segundo suas palavras, ele era apenas uma “encruzilhada passiva” onde “coisas aconteciam”: “Eu nunca tive, e ainda não tenho, a percepção de sentir minha identidade pessoal. Eu me vejo como o lugar onde alguma coisa está acontecendo, mas não existe um ‘eu’.”
Essas afirmativas tampouco eram meras confissões pessoais. Seu sistema intelectual baseava-se numa rejeição radical da significação do sujeito e até mesmo de sua realidade. Essa dupla barreira seria obstáculo suficiente para uma biografia. Mas há outro obstáculo, ainda mais difícil: paradoxalmente, Lévi-Strauss é também autor de um livro de memórias, Tristes Trópicos, uma obra-prima literária incontestável, na qual ele definiu as experiências que considerava decisivas de sua vida. Quem poderia fazer melhor? Com certeza, nenhum cronista convencional. Na cultura francesa, onde há muito tempo a arte da biografia é notoriamente fraca, a única tentativa de traçar um retrato de corpo inteiro do antropólogo, feita por Denis Bertholet em 2003, é testemunho suficiente dessa deficiência.
Patrick Wilcken desafiou todas as dificuldades. Claude Lévi-Strauss: O Poeta no Laboratório, publicado pela editoraObjetiva, é ao mesmo tempo uma biografia e um estudo crítico do pensador do mais alto nível. Gracioso e vívido como narrativa, é também um modelo de apreciação intelectual. Livre tanto do impulso reverencial como da tentação de desmascarar, Wilcken produziu um relato maravilhosamente tranquilo e lúcido da vida e do pensamento de seu biografado.

A história que ele conta pode ser dividida em cinco partes. Nascido em 1908, filho de um pintor – que logo ficou démodé– e apreciador de música, Lévi-Strauss foi um socialista militante em sua juventude. Atraído pelas artes, formou-se em filosofia numa época de fermento vanguardista e ausência de fronteiras disciplinares rígidas. Seu primeiro artigo publicado foi sobre Babeuf, o precursor do comunismo, e sua dissertação, sobre o marxismo. Aos 26 anos, era professor de um liceu provincial quando lhe ofereceram subitamente a oportunidade de se juntar a um pequeno grupo de estudiosos franceses, do qual fazia parte Fernand Braudel, que iria dar aulas na recém-fundada Universidade de São Paulo. O patrono deste convite foi seu ex-orientador, o sociólogo Célestin Bouglé, colaborador de Émile Durkheim, e a matéria que escolheu para lecionar em São Paulo foi sociologia.
Mais tarde, ele iniciaria Tristes Trópicos, com as célebres palavras: “Odeio as viagens e os exploradores.” Mas isso era pura provocação. Entediado e inquieto na França, como muitos intelectuais de sua geração (André Malraux e Paul Nizan já tinham feito seus nomes com façanhas no exterior), Lévi-Strauss confessou honestamente em entrevista a Didier Eribon: “Eu estava em um estado de excitação intelectual intensa. Sentia-me revivendo as aventuras dos primeiros viajantes do século XVI. Por minha conta, descobria o Novo Mundo. Tudo me parecia fabuloso: as paisagens, os animais, as plantas.”
Nesse ponto, Wilcken, autor de um belo estudo sobre a corte portuguesa no Rio de Janeiro, tem a enorme vantagem de ter um conhecimento profundo do país em que Lévi-Strauss desembarcou. Pela primeira vez, a experiência que o transformou em antropólogo é contextualizada de forma mais adequada. Na França, a sociologia de Durkheim, e depois a de Mauss, tratava indiferentemente de sociedades modernas e “primitivas” – isto é, pré-letradas –, de um modo que o trabalho de mentalidade mais histórica de Weber ou Sombart na Alemanha não se permitia. A etnologia era mais um campo frouxo da sociologia do que uma disciplina distinta. Desse modo, o estudo de tribos locais era, em certo sentido, o caminho óbvio para Lévi-Strauss, se ele quisesse capitalizar seu tempo no Brasil para avançar sua carreira na França. Também se sentia atraídopelas artes – não demorou para que ele e sua esposa passassem a frequentar a roda em torno de Mário de Andrade, poeta líder do Brasil modernista, de quem o casal se tornou amigo – e alimentava ambições políticas – embora indiferentes à cena local, onde um levante comunista explodiu após sua chegada e uma ditadura modelada nos regimes de Salazar e Mussolini se instalou não muito tempo depois. Em 1936, quando a Frente Popular chegou ao poder na França, ele ficou decepcionado por não ser chamado pelo Ministério socialista. Foi então que decidiu abandonar a ideia de uma carreira política. A exploração etnográfica do interior do Brasil tornou-se a alternativa.
 Vinte anos mais tarde, com a publicação de Tristes Trópicos, as incursões aos kadiwéu, bororo e nambikwara se tornaram lendárias. A reconstrução meticulosa que Wilcken faz dessas incursões, objetiva mas nunca insensível, mostra a realidade. Pelos padrões contemporâneos, foram visitas breves, itinerantes, que envolveram tanto um trabalho de conjectura quanto de pesquisa de campo, num sentido moderno. Pouco familiarizado com o português, Lévi-Strauss não conhecia nenhuma língua indígena e não passou muito tempo com qualquer dos grupos nativos que encontrou. Tampouco sua expedição principal, em 1938, teve alguma semelhança com a peregrinação solitária implicitamente sugerida por seu livro de memórias. Nas palavras de Wilcken:
Quando o grupo e os equipamentos foram finalmente reunidos em campos dos arredores de Cuiabá, os animais de carga, as caixas, os sacos e as selas, os homens barbudos de calções folgados de algodão e botas de couro pareciam mais uma feira ambulante de interior do que uma expedição científica. Nas páginas de Tristes Trópicos, esse grande elenco de apoio muitas vezes desaparece no fundo da cena. Na realidade, a expedição da serra do Norte estava tão longe do padrão etnográfico de Malinowski – o solitário do início do século xx que aprendia meticulosamente a língua local e mergulhava em sua cultura – quanto possível. Em contraste com a jornada conradiana aos extremos da humanidade, na maior parte do tempo, o séquito de Lévi-Strauss era mais numeroso do que os nativos que ele tentava estudar.
Mas o tom de Wilcken não é reprovador. Quaisquer que sejam suas falhas, a expedição não foi somente complicada e perigosa, mas produtiva, fornecendo a Lévi-Strauss uma quantidade de hipóteses imaginativas que lhe seriam muito úteis quando chegou ao seu verdadeiro campo de pesquisa, milhares de quilômetros longe dos arbustos ou da selva.
De volta à França na primavera de 1939, com 30 anos recém-completados e o cérebro ainda ocupado com o que tinha visto, estava tão despolitizado que não percebeu a iminência da guerra na Europa, nem se deu conta das realidades da vitória nazista e do governo colaboracionista de Vichy: em 1940, tentou – e felizmente não conseguiu – voltar para a Paris ocupada como professor, quando os judeus já estavam em risco. Demitido pelo regime de Pétain, teve o visto de regresso ao Brasil negado, mas conseguiu um convite da New School for Social Research de Nova York, e (ajudado pelas conexões de uma tia rica nos Estados Unidos) partiu de Marselha em um navio onde estavam, entre outros refugiados, André Breton e Victor Serge, aventura retratada em um dos episódios mais saborosos de Tristes Trópicos. Ao chegar finalmente a Nova York, Manhattan foi, nas palavras de Wilcken, mais do que o Mato Grosso, “seu verdadeiro choque cultural”.
Ali, em meio a uma comunidade de expatriados franceses bem maior do que a de São Paulo, ele se incorporou ao ambiente vanguardista dos surrealistas – Max Ernst, Yves Tanguy, André Masson, Roberto Matta, para não falar do próprio Breton – para os quais a antropologia e a psicanálise eram as chaves para as fontes inconscientes da existência. Ele havia pintado quando menino; no Brasil, começara a escrever uma peça no espírito de Corneille; na França, iniciara um romance no estilo de Conrad. Em Nova York, desistiu dessas ambições, mas aprendeu a investir a sensibilidade que estava por trás delas (agora moduladas pelo novo cenário: “Os surrealistas enriqueceram e refinaram meu gosto estético”) em formas que seriam discursivas, em vez de criativas.
 A mudança decisiva, no entanto, veio de duas outras direções: o encontro com a riqueza empírica da etnologia americana, em grande parte reunida por Franz Boas, que ainda estava vivo em Nova York, e as perspectivas teóricas do círculo linguístico de Praga, trazidas para a América por Roman Jakobson, que se tornou seu amigo íntimo. Nada disso era conhecido na França. Enquanto dominava a primeira na Biblioteca Pública de Nova York, Lévi-Strauss absorvia a segunda, que passou a ser a estrutura fundamental de seu pensamento a partir de então.
Cerca de sete anos mais tarde – era então adido cultural francês, instalado numa mansão da Quinta Avenida – sua fusão das duas rendeu As Estruturas Elementares do Parentesco, publicado logo após seu retorno a Paris, em 1948. Nesse enorme compêndio, que procurava sistematizar em um conjunto de padrões inter-relacionados uma vasta gama de sistemas de matrimônio do mundo pré-letrado conhecido, ele sustentava que o tabu do incesto era um universal antropológico que marcava a ruptura entre a natureza e a cultura que tornava possível a sociedade humana. Embora nem todos os achados sobre os quais o livro se baseava fossem corretos, e nem todas as suas interpretações fossem sempre confiáveis, nada como as Estruturas Elementares havia sido tentado antes. Nas palavras de Wilcken: “Sua originalidade, a firmeza de suas afirmações, o senso de uma reorientação teórica há muito tempo necessária fizeram dele um ponto de referência de seu tempo.”
A maior parte dessa obra talvez fosse impenetravelmente técnica, mas sua tese central era de fácil compreensão, por incrível que pareça. Demoraria algumas décadas para que sua premissa básica se mostrasse errada: historicamente, não houve proibição universal do incesto e algumas sociedades, como a Pérsia e os Egito antigos, até mesmo o fruíam.
Quando Estruturas Elementares foi publicado, Lévi-Strauss ainda era, do ponto de vista acadêmico, um estranho na França. O livro ganhou fortuna pública graças a uma resenha brilhante feita em Les Temps Modernes por Simone de Beauvoir, outrora colega de Lévi-Strauss, que havia consultado o manuscrito ao escrever O Segundo Sexo. Sua aceitação acadêmica foi mais lenta. Tendo sido rejeitado duas vezes pelo Collège de France, Lévi-Strauss mudou seu foco do parentesco para os mitos e, em 1952, publicou seu primeiro ensaio voltado diretamente para um público mais amplo,Raça e História. Nele, esvaziava a pretensão ocidental de superioridade cognitiva sobre as sociedades pré-letradas; a chegada da indústria e da ciência modernas era resultado de combinações aleatórias na mesa de roleta do tempo, em vez de consequência de alguma dinâmica interna histórica.
Três anos depois, veio a revelação de seu excepcional talento literário, com os soturnos fogos de artifício de Tristes Trópicos– uma meditação filosófica tanto quanto, ou mais do que, um livro de memórias antropológicas. Sob o signo de Lucrécio e Rousseau, em vez de Durkheim, ele mostrava seu período no Brasil como uma destruição implacável de ilusões românticas, mas que era também um rito de passagem fabuloso para verdades sobre a humanidade e seu lugar no universo, reprimida pela húbris metropolitana. De sua segunda e mais significativa formação como etnólogo, em Nova York, ele não dizia nada. Para o método, reconhecia três “amantes”: Marx, Freud e a geologia, cada um explorando estratos escondidos sob a superfície da realidade. Em 1955, tratava-se de um credo que não diminuía o charme de seu livro. Por unanimidade, e compreensivelmente, Tristes Trópicos foi saudado como um clássico das letras francesas.
Naquela época, impressiona como eram íntimos os laços – por mais paradoxal que possa parecer, tendo em vista o antagonismo entre o estruturalismo e o existencialismo – que ligavam Lévi-Strauss à usina da cultura de esquerda liderada por Sartre. Não foi somente Simone de Beauvoir que se esforçou para pôr Estruturas Elementares no mapa. O Les Temps Modernes publicou um capítulo prévio de Tristes Trópicos, assim como textos posteriores bem conhecidos, como “A gesta de Asdiwal”.

A entrada de Lévi-Strauss no Collège de France, dez anos após sua primeira tentativa, foi orquestrada por Merleau-Ponty. A sensibilidade de Lévi-Strauss para perceber de onde sopravam os ventos desempenhou sem dúvida um papel nisso. Mas era também uma configuração intelectual não rara da Quarta República, marcada por alianças muitas vezes imprevisíveis e debates calorosos, que cairiam abruptamente em declínio com a instauração da Quinta República e a ascensão de De Gaulle ao poder.
Com essa mudança de regime, nasceu o estruturalismo propriamente dito. Em 1958, Lévi-Strauss publicou seu manifesto, na coletânea de ensaios intitulada Antropologia Estrutural. “Durante séculos as humanidades e as ciências sociais se resignaram a contemplar o mundo das ciências naturais e exatas como uma espécie de paraíso onde nunca entrariam”, ele declarou, mas “de repente, há uma pequena porta que se abre entre os dois campos, e é a linguística que fez isso”. Não apenas mitos ou lendas populares, mas, em princípio, qualquer fenômeno do mundo social ou cultural poderia ser mapeado e decodificado com o rigor dos fonemas. Desde Comte, o pensamento francês sempre teve uma vertente significativa de cientificismo. Ao anunciar uma antropologia equipada com a autoridade da linguística, Lévi-Strauss tentava torná-la dominante.
Por um tempo, ele fez isso com considerável sucesso, enquanto espíritos empreendedores se esforçavam para emular ou estender seu programa a uma ampla gama de áreas do conhecimento, enquanto ele consolidava sua hegemonia a partir de seu posto de comando no ápice da erudição francesa. Em uma performance de virtuose, O Pensamento Selvagem (1962) pretendia mostrar, simultaneamente, o estruturalismo inato dos sistemas classificatórios das sociedades pré-letradas e a futilidade das pretensões do marxismo – para não falar do existencialismo –, na pessoa de Sartre. Tratava-se, no entanto, de um edifício teórico que repousava sobre um alicerce frágil: a noção de que a linguagem oferecia uma analogia para o estudo de qualquer outro campo da vida social. O próprio Saussure, criador da linguística estrutural, havia expressamente advertido contra essa ilusão. Assim como a genética de hoje gerou esperançosos aplicadores da teoria da evolução a todos os campos imagináveis ​​das humanidades e ciências sociais, independentemente da falta de qualquer outra conexão entre elas que não seja metafórica, do mesmo modo, há meio século, a linguística cativou uma ampla gama de entusiastas que viram nela o “abre-te, sésamo” para a compreensão do mundo.
A contribuição do próprio Lévi-Strauss para essa expansão foi Mitológicas (1964-71), sua monumental tetralogia sobre os sistemas de mitos nas Américas: cerca de 2 mil páginas que supostamente põem a nu as propriedades universais da mente humana, idênticas nos mitos e seus analistas, desdobradas por ele em uma composição científica, melódica e autorreferente como a música.

No final dos anos 70, a onda estruturalista havia refluído e, por fim, Lévi-Strauss recuou das extravagâncias que havia ajudado a lançar, observando – quinze anos depois de O Pensamento Selvagem– queo estruturalismo não era mais que uma “imitação muito fraca e pálida do que as ciências duras estão fazendo”. E afirmou que havia simplesmente tentado encontrar algum tipo de ordem por trás da aparente desordem de seus materiais, sem impor quaisquer conclusões a eles.
Mais proeminente do que a retração teórica, talvez apenas tática, foi seu retrocesso político e cultural. Na velhice, o outrora simpatizante do socialismo e do surrealismo tornou-se cada vez mais conservador – um dos pilares da Académie Française, inimigo da arte moderna, eleitor moderado, admirador de Gobineau. Ainda assim, eram preferências de fundo, nas quais Lévi-Strauss não insistia muito. A estrela subsequente do estruturalismo inverteu essa trajetória, mas sem efeito intelectual melhor: Michel Foucault passou quase sem intervalo de uma “nova filosofia” bem-vista no Palácio do Eliseu [sede da Presidência da República] a uma “justiça popular” pregada pela Gauche Prolétarienne. Lévi-Strauss certamente sabia como promover a divulgação de suas ideias e defender seus próprios interesses, mas fazia isso dentro dos limites de certa reserva tradicional e dignidade antiquada. As piruetas do jovem exibicionista e sua sede de publicidade eram estranhas a ele. Consciente de como eram arbitrárias as arqueologias de Foucault, ele negou qualquer apoio institucional ao seu admirador.

O veredicto final do delicado e comovente livro de Patrick Wilcken é impecável. “Em um mundo de áreas do conhecimento cada vez mais especializadas, talvez não venha nunca mais a existir um corpo de trabalho de alcance e ambição tão estimulantes”; mas embora “as ideias de Lévi-Strauss tivessem grande amplitude e abrangência”, elas estavam em última análise instaladas em um “espaço intelectualmente claustrofóbico” – um “empreendimento de um único homem que se tornou tão absolutamente idiossincrático que era impossível se basear nele”. Como sistema, “o estruturalismo implicava profundidade, mas com seu jogo de signos sem referência, muitas vezes se parecia com derrapagem sobre vidro polido”. No entanto, “o que dava vida à produção de Lévi-Strauss, e introduzia o lirismo que confundiu seus críticos anglo-saxônicos, era um profundo interesse pela expressão e apreciação estética que corria em paralelocom o lado cognitivo de seu trabalho”. O antropólogo se via como um artista manqué. Mas Lévi-Strauss não era apenas um grande colecionador e tecelão de narrativas – “os mitos são objetos muito lindos”, observou ele, “e nunca nos cansamos de contemplá-los, manipulá-los”. O segundo verbo fala por si mesmo. Ele foi também um grande escritor na arte, longe de ser menor, da retórica. 

Revista Piauí =- Ed. 64

Maçã - Eu poderia simplesmente aguentar firme o formigamento e tocar em frente como todo mundo por Airton Paschoa


Maçã

Eu poderia simplesmente aguentar firme o formigamento e tocar em frente como todo mundo
por Airton Paschoa

Adejo sostenuto
Ter imaginado, imaginado que podia,                              
podia ser.
E ter de rir de si e ter de rir de dó e ter                              
de rir de lá.

Ordem
Ó Vossa Iminência,
Vossa Iminência que nunca chega,
Vossa Iminência que não chega, chega.

Arabesco
Quando você não diz nada, toda olhos, fogos e artifício, e nada digo eu, todo utopia, tiros e queda, não é que não dizemos nada. Poderíamos falar cobras e lagartos, serpentes. Poderíamos falar sem parar, caravana, miragens. Ou poderíamos simplesmente dizer deserto. Mas não, não dizemos nada. E é o que dizemos de certo.

Formigamento
Praga ou não, dei com as maçãs formigando ao erguer os olhos. Acho que o sangue para de correr pelo local, ou corre demais, não sei. A única coisa que sei é que sempre que acontece fico meio atarantado, pensando em esconder o rosto, mesmo não fazendo ideia de como seguir escrevendo com as mãos ocupadas, ou olhar só para o chão, arriscando viver vexado, ou até mesmo aguentar firme o formigamento e tocar em frente como todo mundo, cada qual com seu papel, ou folha... penso um pouco corado.

A tristeza do rei
Baixar édito –
é o ofício.
Baixa o tédio
e baixa a treva.
A trova cala
e cala o bobo.
A cama é larga
e larga o corpo.
Mas a alegria –
a alegria tem que reinar,
tem que reinar a alegria
em todos os quadrantes,
e o rei se dependura
(qual um quadro).

Gatos e homens
(goeldiana)
Os gatos passeiam, de olhos acesos, entre móveis, vasos, vielas. Os homens sossegam, de olhos cerrados, entre persianas, penumbras, penhascos. Os gatos querem pular e pulam, como os sonhos, o muro. E as sombras, esgueirando-se meio-fio adentro, despertam a mais pálida suspeita.

Esperança
Não havia porto.
Corpos e mais corpos apenas.
Não que não houvesse braços.
E o abraço desesperado.
E a esperança de afundar.
Não havia esperança de mar.

Banho de sol
Certas manhãs, despontando impossíveis de azul e luz, parece quererem nos lembrar que não devíamos estar fazendo isso. É quando com certo pejo rápido engavetamos os afazeres e – não sabemos bem o que fazer. O amor permanece proibido durante o expediente. A poesia, de fim de semana, se confunde com suplemento. O subterrâneo, que retumbava outra vida... Outra vida! É quando com certo pejo rápido descemos tomar banho de sol.

Artrose
Mexeu-se um pouco. Que tinha que fazer algo, isso lembrava, e que era urgente isso, lembrava. O que era... Mexeu-se. Era alguma coisa que tinha que ver. Olhou ao redor, nenhum pico à vista, e teve vontade de sentir saudade do tempo em que escalava as estantes. Intrépido. É, intrépido. Mas não se mexeu. Nem pra apanhar a manta, que de quando em quando deslizava como deslizavam as nuvens, lembrava. Via a cortina em sua queda congelada e teve vontade de sentir saudade do tempo em que mergulhava no trabalho. Pescou a manta, com o gancho do cabide, cobriu a cabeça. O ar – não, não faltava. Inspirava e expirava, regular.

Circulatura do quadrado
Indo de um canto a outro e deste àqueloutro e destoutro ao penúltimo e do penúltimo ao último canto, perfaz-se um quadrado. Perfazendo-o vida afora, em que pese a distração com a poeira que levantamos, observa-se com justeza que o último confina palmo a palmo com o primeiro canto. Não deixamos de perfazê-lo por isso, notando embora requerer sempre mais e mais esforço, à medida que mais e mais nos faltam forças. – Mas há o pó, o pó! o tom subindo, subindo e descendo em sua infinita variedade, e a réstia de sol, volta e meia nos dizemos, erguendo a coluna.

Autoimobilismo
As notícias chegam de fora. Volta e meia viaja um conhecido, um parente, e regressam cheios de malas e saudade. Ah, a Europa! E não só ela. A Ásia! A China! O Império! Quantos jardins suspensos não suspeita o pobre tronco! resvalamos a pena velada nos olhos dos descobridores, nós que mal nos movemos do leito. Só ficamos menos embaraçados quando as pedem de dentro. Balançam a cabeça, não sei se positivamente ou por polidez, e esperam assentar a poeira. Uma hora os braços caem, levantando mais poeira. É quando se levantam também. Felizmente não preciso acompanhá-los.

Labirintite
Ler o diário sem abanar a cabeça, eis arte que só a idade ensina. E se volta e meia topamos notícia imperiosa, a tentar-nos o equilíbrio estoicamente conquistado, cerramos os olhos, como que em oração matinal, o tempo talvez de uma ave-maria, um pai-nosso, surdo de todo aos rompantes do vulgo, e logo logramos reabri-los com a beatitude dos grandes santos. Se porventura anos afora, sabe Deus, pressentimos falecer-nos o árduo dom de levitar, resta virar a página e com sorte deparar nosso necrológio. Ou até mesmo fechá-lo, última saída. Tudo, tudo, irmão, menos cair na tentação de abaná-la. Não por reavivar o fogo da danação, este eterno, senão por prevenir mais alta desgraça, o inflamar o labirinto.

Parábola
Não reclamo. Se é sina andar em círculo, ando. Se ninguém nunca viu a figura, paciência. A esperança... vocês sabem. Por isso não reclamo, ando. Ou me arrasto, vá lá. Às vezes levo uma vida, caracol? carrossel? via-láctea? tateando a geometria dos passos. Geometria? A aspiral pode ser só aspiração, bem sei. Daqui, da poça, divisá-la, não há, senão em parte, braço, sino, cello. E se for uma parábola, uma parábola! e ergo os olhos. Os sóis, dardejando, parece também se desfazerem em sal ou cal, e caio queimando.

Ancien régime

Acompanhar nosso passamento passo a passo tem sido meu passatempo. E o tempo passa. Os arranjos por entretê-lo, ao império do dia frágeis, figuram coroas. Para que servem então – ó questão que morreu descabelada! Servem à cabeça, sabe Deus, ou sobem a ela.

Mistério dos transportes
Rasgando o futuro e desaguando na praça monumental, os maiores pensam em rodovias; já avenidas cogitam os grandes da vida, de preferência homônimas e culminando no arco do triunfo; há quem sonhe, lírico! com alamedas a cuja sombra possa folgar do insolente sol; não falo dos épicos, que devem planejar estradas sumindo no horizonte curvado de aventuras; menos ainda dos dramáticos, que atentam só aos buracos e ponto; em tempos verdes e ardentes bucólicos ainda vislumbram trilhas a receber-nos de cachoeiras abertas. Mas o último capiau, este sabe, picando o fumo, que é o fim da picada.

Flor de asfalto
Ó flor de betume que não corta
               a corrente...
Trinca o cristal de crença, tão enorme                                               
               o normal.
Ó flor de bestunto que não enxerga o                              
enxurro, o cu do escuro, a bota/
Bota na cabeça. 
> Janeiro d

Nem vivos nem mortos por NOEMI JAFFE


Nem vivos nem mortos

por NOEMI JAFFE

Em abril de 1945, a Cruz Vermelha chegou até as proximidades do campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha, e libertou os prisioneiros que ainda se encontravam ali. Entre eles estava minha mãe, que já tinha passado por Auschwitz e outras localidades, então com 19 anos de idade. Ela fora capturada um ano antes, na cidadezinha de Szenta, onde morava, na fronteira entre a Hungria e a atual Sérvia. A Cruz Vermelha, após libertá-los, levou os prisioneiros para Malmö, na Suécia, onde eles permaneceram em quarentena. Lá, com suas três primas, que sobreviveram aos campos de concentração, principalmente por terem conseguido trabalhar na cozinha, ela escreveu um diário de guerra. Nele, procura reconstituir suas lembranças mais importantes, desde a captura até a libertação, narrando os acontecimentos como se estivesse registrando-os no momento, ou imediatamente depois de sua ocorrência. Daí algumas imprecisões cronológicas e factuais, que decidi manter para ser fiel à escrita original. Atualmente, o diário se encontra no Museu do Holocausto, em Jerusalém. Em fevereiro de 2009, eu e minha filha Leda fizemos uma viagem até a Alemanha e Polônia (Varsóvia, Cracóvia e Auschwitz), tentando reconstituir parte do trajeto de minha mãe durante a guerra. O resultado dessa viagem é o livro O que os Cegos Estão Sonhando?, a ser publicado em outubro, com a edição integral do diário de LIWIA JAFFE, atualmente com 85 anos, e um misto de memórias, reflexões e ficção escritas por mim, além de um depoimento final de Leda. Parte desse livro aparece pela primeira vez aqui.

SENTA,[1] 25 DE ABRIL DE 1944_Todos à minha volta, assim como eu, estamos tristes. Sabemos o que está acontecendo e também o que acontecerá. Meu pai está sentado no sofá, durante a manhã toda, calado, fitando o nada. Por vezes, olha-nos e fecha os olhos tristes. Minha mãe nos con-sola: não acredita no mal, porém está ar-rumando as malas, faz doces e suspira fundo, sem que ninguém possa ver.
Meu irmão e eu observávamos e, sendo duas crianças, saímos para chorar. Ninguém nos conta nada, mas sabemos o que está acontecendo. Sabía-mos que no dia seguinte, às 8 horas, os alemães viriam nos buscar e nos arrancar de nosso lar.

26 DE ABRIL_Levantamo-nos bem cedo. Tudo estava arrumado. Chegaram na hora certa! Eram sete.
Um deles sentou-se junto à mesa e começou a escrever. O segundo olhou as nossas coisas e deu uma ordem:
– Arrumem suas tralhas daqui a cinco minutos. São coisas para duas se-manas. Levem comida e saiam da casa!
Está chovendo. Estamos juntos. Nossa família junto com as outras famílias judias. Vão nos levar para a escola judaica. Duas mulheres alemãs nos revistam, um por um, à procura de joias. Estamos dormindo no chão.

27 DE ABRIL_Às quatro da manhã nos escorraçam de um modo pior do que animais são tratados. Chove sem parar. Lama até os joelhos. Mulheres velhas e crianças pequenas choram. Os alemães batem em todos e gritam:
– Judeus sujos!
Nossos pés se colam à lama. Chegamos ao trem de carga com muita dor. Somos 65 pessoas em cada cabine. Não sabemos para onde estão nos levando. Mamãe nos abraça e engole as lágrimas. Estamos viajando o dia todo e nem pensamos em comida. Dormimos sentados do jeito que estávamos.

SZEGED,[2] 28 DE ABRIL_Chegamos às 11 horas com nossas bagagens nas costas, cansados. Andamos 5 quilômetros dentro da cidade. Horrível! Velhos e crianças choram, pedem ajuda. Em vão. Quem não andava apanhava. Jogamos fora muitas coisas para o peso ficar mais leve. Chegamos, com muita dificuldade.
Colocaram-nos, 65, num só quarto e ordenaram:
– Vocês devem deixar o local limpo! Levantar às cinco e meia da manhã e dormir às dez da noite! Escolham alguém do grupo para ser responsável pela ordem.
Queriam escolher mamãe. Ela não aceitou. Ficamos ali durante um mês. Comendo pó. Tínhamos ainda comida que havíamos trazido de casa.

19 DE MAIO_Inesperadamente nos expulsam da escola à meia-noite. Está escuro, não enxergamos nada. Gritaria. Pedimos que acendessem as luzes. Por sorte, conseguimos. Fora, esperava-nos uma carroça para carregar as nossas malas. Na estação de trem, tivemos de ficar numa fila. Dividiram os pacotes. Novamente dentro de vagões. Viajamos a noite inteira.
BAJA,[3] 20 DE MAIO_Chegamos pela manhã. Enfiaram-nos numa fábrica de móveis próxima à estação. Como éramos muitos, nos dividiram em dois grupos. Metade ficou na fábrica. A outra metade, também nós, acabou conduzida a um simples chiqueiro. Nós mesmos tivemos de limpar o lugar. Forraram o chão gelado com areia limpa. Ali ficamos por nove dias. Papai ficou muito doente, febre alta. Minha velha mãe também se resfriou, ficou fraca. Mamãe mostra-se forte, mas percebemos tudo. Ela nos olha o tempo todo e se esforça para tornar as coisas mais leves para todos nós. Diz que não lhe dói nada, não sente dificuldade alguma. Ela e papai suportariam juntos o dobro das coisas para que não sofrêssemos.

28 DE MAIO_Tivemos de formar uma fila às 9 horas. Os alemães fizeram uma contagem das pessoas. E nos levaram. Na mesma noite deixamos ‘‘nosso” chiqueiro e fomos conduzidos à estação. Setenta dentro de um vagão, com os pacotes, que foram atirados para dentro depois de termos entrado. Papai e mais alguém procuravam pôr alguma ordem ali. Arrumaram os pacotes. Cada um pôde se sentar sobre as suas próprias coisas.
Viajamos durante seis dias. Sem água, sem comida. Papai tem febre o tempo todo. Mas se faz de forte. Mamãe nos consola, nos abraça. Minha velha mãe chora. Doem-lhe as costas. Nem consegue ficar sentada mais.

AUSCHWITZ, 4 DE JUNHO_Mandaram-nos sair dos vagões sem os pacotes. Separaram homens e mulheres. Papai com meu irmão. Nós quatro numa outra fileira. Mamãe, minha priminha de 4 anos, meu primo de 8 e eu. Fila longa. Ouvimos um alemão gritar de longe: direita, esquerda... Quando chegamos mais perto, mamãe escondeu-me debaixo do casaco dela, que ela ainda possuía, esperando evitar que nos separassem.
Chegamos até o primeiro alemão. Mandou ir para a esquerda. Um outro nos examinou e nos deixou passar. Mas o terceiro ordenou que eu fosse para o lado direito. Éramos muito jovens. Eu e minha amiga Kátitza Blaier chorávamos juntas. Ela chegou depois de mim e disse que mamãe lhe gritava de longe que tomasse conta de mim.
À meia-noite entramos no campo de concentração. Caminhamos muito até chegar a um banheiro. Entramos. Dentro, estava cheio de alemães e alemãs que tiraram de nós tudo o que tínhamos ainda. Em seguida, precisamos ficar nuas e entrar num outro lugar. Havia somente mulheres ali. Cortaram os nossos cabelos. Sentia muito por meu cabelo, mas, quando pensava em meus pais, não sentia nenhuma outra dor. Tomamos um banho com água quente. Levaram-nos, molhadas ainda, para um lugar seco, onde recebemos vestidos. Era algo terrível, mas ainda assim ríamos. Uma mulher de uns 30 anos recebeu um vestido infantil curto. Tentou devolver, mas não trocaram. Algumas só recebiam uma saia sem blusa, outras só blusas sem saias. Sentia frio, nua e molhada, parada em pé ali até que chegasse a minha vez. Ganhei um vestido preto longo. Disseram-me que tenho sorte. Puseram-nos novamente em fila diante do banheiro.
Estava escuro… Era uma da manhã. Pouco mais tarde, quando os olhos se acostumaram com a escuridão, percebi que havia homens ao nosso lado. Procurava por conhecidos e então vi papai e meu irmão, que me indagavam onde estava mamãe. No momento em que tenta-va responder, vieram uns alemães e me levaram dali. Não se enxergava nada em volta. Havia fogo, chamas, e dava a impressão de que cada vez mais nos aproximávamos do fogo. Tínhamos medo, mas não chorávamos. Havia entre nós quem chorasse e gritasse e esses eram levados para um outro lugar, sei lá para onde. Chegamos a uma construção de madeira que chamavam de “bloco”. Mil de nós fomos enfiados nesse “bloco”. Dentro também estava escuro e ouvia-se apenas uma voz rude que ordenava gritando:
– Sente-se onde estiver!
Senti um cimento úmido. Não me sentei, ajoelhei apenas. De madrugada nos mandaram sair. Mostraram como devíamos ficar paradas e leram as regras de como devíamos nos comportar. Levantar diariamente às três da madrugada, ir em fila até o banheiro, voltar em fila. Ficar em fila de cinco, que era chamada de Zeltappell.[4] Às cinco, viria um alemão que faria a contagem de quantos éramos. Às seis, seria distribuído um café e, quando ouvíssemos um sino, o Zeltappell estaria encerrado. Feita a revista, de volta ao pavilhão, em filas. Ao anoitecer, às seis da tarde, seria distribuí-do o jantar: 200 gramas de pão, sopa e uma colher de margarina.
Ficar em pé das três às seis era horrível. Quando percebíamos que não havia um alemão por perto, nos abraçávamos para não sentir tanto frio. Mal podíamos esperar por aquela água negra e quente – café aquilo não era. Uma tarde daquelas nem consegui morder o pão. Parecia um pedaço de tijolo. De fato, era feito de pó de madeira. No primeiro dia, não comi nada. Nem no segundo. Mas, depois, precisava. Eu tinha fome.
Num campo, éramos 30 mil – trinta blocos com mil pessoas cada. Campos iguais, um ao lado do outro – havia uns vinte e, mais longe, onde nem a vista chegava, havia mais. O campo tinha 1 quilômetro de comprimento. No final, havia uma guarita. O campo era cercado por arame eletrificado. Havia oito crematórios sempre acesos. Podiam-se ver as chamas.

4 DE JULHO_Ontem chegamos ao campo C. Como já não escrevo faz um mês, escreverei sobre o passado. No começo, eu passava fome e sofria muito. Nosso pavilhão era defeituoso. Quando chovia, ficávamos molhados como se estivéssemos fora, debaixo da chuva. As camas – se posso chamá-las assim – eram apenas estruturas de madeira, umas sobre as outras, três andares, com doze pessoas em cada estrutura. Frequentemente acontecia de desabarmos. Eu queria sempre ficar no andar mais alto; não havia pó e eu sentia que tinha um pouco mais de ar. Dormíamos como sardinhas em lata. Quando começava a nos doer o lado direito, sobre o qual estávamos deitadas, precisávamos deitar para o outro lado, juntas. Em casos como este é que caíamos. Aquelas sobre as quais desabávamos gritavam de dor, claro. No dia seguinte, a punição: não recebíamos comida alguma. E isso se repetia diariamente. Certo dia, Alice, minha prima, trouxe uma batata e um pedaço de repolho. Dividimos tudo em quatro pedaços e comemos como se fosse a refeição mais deliciosa.

6 DE JULHO_À tarde, depois da revista do pavilhão, apareceu um homem com uma faixa vermelha no braço. Ele era chamado de kapo. Era o inspetor da cozinha. Escolheram mulheres fortes para a cozinha. Minhas três primas foram escolhidas entre quarenta mulheres. Eu estava fora dali naquela tarde, porque fui ver a Kátia. Quando cheguei, me contaram; fiquei desesperada; não queria me separar delas.
As quarenta escolhidas tinham de ficar fora da fila.
Chovia forte. Eu tinha uma blusa fina de véu com saia preta. Devíamos ficar em pé. Não podíamos sequer erguer as mãos. Quando terminou a revista, queria me enxugar um pouco com as mãos e, assustada, vi que não havia mais blusa em mim: se desfez com a chuva. Como não podia ficar em pé ali, nua, apanhei o minúsculo cobertor que já tínhamos e fiquei parada assim.
Eu e minhas primas decidimos não comer nada naquele dia. Trocamos a comida por roupas e, com isso, arrumamos um vestido para mim.
Depois disso pensamos que eu poderia juntar-me a elas na fila. Na manhã seguinte, saímos para a revista. Havia muitas de nós com cobertores. Eu estava no fim da fila e, no momento em que ninguém viu, joguei o cobertor e fiquei junto de minhas primas. Consegui. Logo depois, vieram fazer a contagem.
– Havia quarenta aqui, que eu contei; agora deveria ter quarenta, mas tem 41!
A alemã berrava furiosa:
– Se aquela que não tinha sido escolhida não se apresentar, todas serão punidas.
Não me apresentei. Estava pronta para o pior.
A alemã furiosa começou a selecionar de novo. Chegou a nossa vez. Sem uma palavra, separou minhas primas e parou diante de mim. Todos me consideravam criança: era pequena e sem cabelos parecia ter uns 15 anos.
– Escolhi você ontem?
– Sim, senhora.
– Mas você é pequena ainda e não precisa cozinhar.
– Certo. Mas não sou pequena. Tenho três primas e gostaria de ficar com elas.
Era furiosa, mas comigo brincava. Chegou a gostar de mim. Deixou-me ficar e dispensou outras cinco.
 Recebemos roupas. Deram-me um vestido bonito.
Não tinha mais medo. Sempre ficava agora à frente das demais.

2 DE AGOSTO_Passou-se quase um mês desde que estou na cozinha. Eu me acostumei ao fato de que tínhamos tanta comida quanto precisássemos. Mas isso não bastava. Tínhamos muitos conhecidos passando fome. Não podíamos ficar vendo-os inertes. Era muito perigoso roubar, ainda que de modo organizado. Coitado daquele que fosse apanhado por um alemão! Ainda assim, começamos. Uma vez que os nossos conhecidos não estavam em nosso campo, tínhamos deentregar tudo pela cerca eletrificada. Apenas eu tinha coragem. O primeiro alemão que visse atiraria imediatamente. Minha mão não podia tocar no arame eletrificado, porque isso também era a morte. Mas eu não temia, não tinha medo da morte. Encarava tudo com frieza. Era assim todos os dias.
Anteontem, Hajnal,[5] uma de minhas primas, trouxe de novo quase 1 quilo de margarina. Alice escondeu logo entre os repolhos, com a intenção de tirar de lá de noite, antes de voltarmos ao barracão. Então, uma das garotas pediu que Alice lhe desse um pouco de margarina, porque ela não tinha nada.
Alice lhe respondeu que prestasse atenção para que ninguém a percebesse enquanto retirava a margarina. Mas apareceu uma alemã e a viu.
– O que você está fazendo?
Alice, assustada, respondeu:
– Peguei um pouco de margarina.
– Como assim?
– Bem, somos quatro irmãs... como não estamos nos sentindo bem, juntamos as nossas porções...
Esbofeteou Alice.
– Mostre-me suas irmãs!
Eu não estava lá. Em meu lugar, uma de nossas amigas se apresentou.
– Ah! São vocês!? Ficarão de joelhos até a revista, que é às 13h30. Se até lá vocês não confessarem quem roubou a margarina, vou jogar as quatro no crematório!
Alice não disse que foi Hajnal. Nem as outras falaram. Enquanto elas estavam ali, de joelhos, retornei. Contaram-me o que havia acontecido. Corri direto para dizer à alemã que eu era a culpada. Por que quatro devem pagar, se eles ficariam satisfeitos com uma só? Eu não tinha medo da morte.
 Bati à porta. Entrei. Dentro estava a alemã acompanhada de um alemão.
– Por que você veio? O que você quer?
Naquele instante, eu não conseguia responder. Chorava e, em meio às lágrimas, disse:
– Soltem minhas primas. Elas não são culpadas. Eu roubei a margarina.
Ela correu até mim e me esbofeteou.
– E então você confessa isso assim? De onde você pegou a margarina? E sabe como você vai pagar por isso?
– Sei! Perdão! Vi sobre a mesa e peguei. Não faço nunca mais.
– Agora vou mostrar o que você vai receber por causa disso. Você nunca mais vai ver a luz do sol. Isso eu garanto!
Tentei implorar clemência, mas ela nem queria ouvir.
O alemão perguntou:
– Quantos anos você tem?
Claro que eu disse um ano a menos.
– Dezesseis.
– Dezesseis anos e ainda não sabe que não pode fazer isso?
Olhou a alemã e sussurrou:
– Não seja tão rígida. Você está vendo que ela ainda é jovem.
A alemã, enfurecida:
– Por que você a defende? Irei até o chefe do campo. Ele dará um jeito nela.
E saiu. Enquanto isso, ele me conduziu para fora, até um monte de tijolos. Ordenou que me ajoelhasse e que segurasse um tijolo enorme sobre a cabe-ça. Apanhei o tijolo, mas logo precisei colocar de volta, porque não consegui erguê-lo.
O alemão olhava meu sofrimento. E disse:
– Olhe, se você não se esforçar, ela vai voltar. Sabe o que espera por você?
Levantei o tijolo, com um esforço enorme, mas não conseguia segurar. Caiu sobre a minha cabeça. Pensei que fosse desmaiar. Mas fui forte. Lágrimas caíam de meus olhos feito chuva, não porque eu estivesse arrependida, mas de dor mesmo. Fique ali, de joelhos, por duas horas. Apareceu o alemão e disse:
– Levante-se! Entre na cozinha e continue trabalhando!
Coloquei o tijolo no chão e tentei levantar. O lugar duro em que fiquei ajoelhada machucou tanto meus joelhos que caí. Ouvi novamente a voz do alemão. Quis levantar, mas não consegui. Fiquei sentada uns dez minutos. Depois voltei para a cozinha, onde desmaiei. Minhas primas choravam; puseram compressas frias em mim; me consolaram até eu melhorar.

1º DE SETEMBRO_Tive muitas dores na perna. Já era o segundo dia assim, sem conseguir trabalhar. Pensei que nunca mais seria capaz. Mas não podia fazer nada. Aqueles para quem eu levava coisas estavam famintos. E eu tinha comida à mão. Não suportava a impossibilidade de lhes levar.


*    *    *


5 DE ABRIL DE 1945_Não estamos nem vivos nem mortos. De 120, sobraram cinquenta. Estamos entre Bendorf e o campo de Bergen-Belsen. Estamos perto de Hamburgo, mas não há como viajar daqui para a frente. Os aviões nos sobrevoam o tempo todo; os homens nos consolam e dizem que a libertação está próxima. Mas não acreditamos. Já tenho dificuldade para falar. Pedimos ao alemão que não nos torture mais; não queremos viver mais, que nos mate. Ele também nos consola:
– Vocês e nós também, estamos todos passando fome. A libertação está próxima. Aguentem mais um pouco.
Estamos em (ilegível).Não sabemos se aguentaremos um dia mais sem comida. Faz seis dias que não comemos. Pedimos, chorando, que o alemão nos mate.
– Está bem, se a vontade de vocês é essa... Nem eu posso ficar vendo o sofrimento de vocês. À tarde, às 3 horas, posso atender ao pedido de vocês.
Agrupamo-nos em turmas de cinquenta. Aguardamos a morte por fuzilamento. São cinco horas em ponto. Os alemães estão prontos. Esperamos em pé o chefe do campo. Chegou às cinco e meia, com o rosto contente:
– Crianças, vocês estão salvas.
 À noite chegarão dois caminhões de pão. Os alemães estão todos alegres e todos estão com fome. Retornamos ao vagão. Passou da meia-noite e nada de pão. Gememos em voz alta, mas as nossas vozes não podem ser ouvidas longe.

6 DE ABRIL_Todos os que não morreram estão dentro do vagão, e não estão bem conscientes. Eu também pareço embriagada; não enxergo; parece que tenho espuma na boca. Ao meio-dia chegaram os caminhões com pão. As alemãs mesmo estão cortando e distribuindo. Cada um de nós recebe meio pão com margarina. Trouxeram pão da Suécia. Novamente temos um pouco de forças. Comemos pouco, porque guardamos também para as outras mulheres. De noite, viajamos para mais longe.
Chove. Saímos do vagão. Chegamos às 6 horas. O campo não é longe da estação, mas ainda assim nos molhamos todas até chegarmos. Levaram os doentes (ilegível), nós fomos para o pavilhão. Estava quente, havia aquecimento. Ganhamos comida. Alice e Hajnal foram trabalhar na cozinha e, assim, tínhamos um pouco mais. Recebi remédio para a minha perna.

25 DE ABRIL_Depois da revista pela qual passamos, duas vezes, não retornamos ao bloco. Fomos para a estação. Não nos aguardavam vagões, mas um trem elétrico que nos levou em grupos de sessenta. Retornavam a cada hora. Pela primeira vez me senti semelhante a um ser humano. Dentro do trem, pudemos sentar em assentos forrados. Às cinco, chegamos a Hamburgo. O campo também é próximo à estação. Ali recebemos cada uma um prato de sopa de beterraba. Comemos tudo. No pavilhão, novamente, somos muitas numa cama. Tive sorte: éramos em oito.

HAMBURGO, 28 DE ABRIL_Chove muito há dois dias. Temos uma alemã que nos bate muito; temos medo. Ouvimos secretamente que estão perto de Hamburgo e que, em breve, sairemos daqui também. Pensamos de novo em vagões e fome.

29 DE ABRIL_Uma alemã chegou ao pavilhão e nos expulsou. Ainda chovia. Saímos do campo em filas. Vemos um soldado alemão diante dos portões com uma cruz vermelha. Estamos diante de vagões. Vagões solitários fechados. Palha dentro do vagão. Diante dos vagões, a Wehrmacht e os SS.[6] Não sabíamos o que aquilo poderia significar. Coisas boas não poderíamos suspeitar. Eu queria comer e minhas primas estavam com medo. Gizika dizia o tempo todo:
– Crianças, economizemos o pão, porque não sabemos durante quanto tempo não teremos mais.

PADBORG,[7] 10 DE MAIO_Atravessamos a fronteira alemã. Estamos na Dinamarca. O alemão saltou do trem e gritou:
– Hitler morreu! O trabalho está concluído.
Enfermeiras dinamarquesas, com uniformes brancos da Cruz Vermelha, vêm nos retirar dos vagões. Oferecem doces. Atiram-nos flores e nos levam de ônibus, cinquenta de cada vez. Chegamos a uma propriedade rural. Discursaram para nós. Que não nos aborreçamos por ter de dormir, esta noite, sobre palha. Que levemos em conta que estamos sujas. Ganhamos excelentes cobertores ingleses. Como já estava escuro, não ganhamos comida. Deitamo-nos.

2 DE MAIO[8]_Um trem nos esperava na estação. Viajamos de segunda classe. Assentos de couro, grande limpeza. Dentro, enfermeiras da Cruz Vermelha distribuíram um pacote para cada um. No pacote, dois pedaços de pão branco com manteiga e queijo; dois pedaços de pão escuro com ovos e presunto, com um copo de cacau e um tablete de chocolate.
Os dinamarqueses foram à estação. Enfeitaram o trem com flores. Atiravam dentro do trem balas, chocolate, doces, e o que cada um possuía.
Durante o caminho, eles nos gritam:
– Hurra! (Viva!)
Já estamos viajando há muito tempo. Ao nosso lado, passam vagões com alemães. A enfermeira nos conta que eles estão voltando da Suécia.

COPENHAGUE, 5 DE JUNHO_Chegamos às oito da manhã em Copenhague. O trem parou diante do porto. Já nos aguardava um navio enorme de três andares. Quando saímos do trem, cada pessoa recebeu um litro de iogurte, que bebemos imediatamente, e doces. Depois, para o refeitório. No navio, entravam cinquenta por vez. Sentamo-nos em quatro a cada mesa. Vieram garçons com o cardápio.
– O que desejam?
Não conseguíamos ter palavras. A enfermeira percebeu isso e fez o pedido por nós.
Café com leite quente, flocos de aveia, pão com manteiga e depois bolo.
O mar é lindo. Verde-escuro, transparente. As gaivotas esvoaçam e eu observo tudo, como num sonho. Liberdade maravilhosa. Não há mais cerca elétrica, ninguém nos vigia, comida quanto desejássemos.
Fico imóvel no convés do navio, vejo como as gaivotas brincam, como o mar balança em ondas. Sinto uma alegria até o fundo de minha alma, e as lágrimas escorrem feito chuva. Como minha querida mãe ficaria contente se estivesse comigo. Papai talvez esteja em casa com meu irmão, mas e mamãe? É possível que nunca mais a veja. Sinto a liberdade maravilhosa e sinto saudades de meus pais. Minhas primas me consolam.
Às oito da noite chegamos ao porto sueco de Malmö. Quando o navio aportou, começaram a estourar fogos de artifício festivos. Os habitantes de Malmö estavam quase todos ali. De repente, um profundo silêncio. O ministro do rei veio fazer um discurso em sueco e em alemão. Depois entoaram o hino, outro foguetório, e nos aplaudiram com muita alegria.
– Hurra! Viva! Viva!
Isso durou quase meia hora.
Nós que estávamos no navio derramávamos lágrimas de felicidade. Nos recebem assim, a nós, que há oito dias ainda estávamos sendo espancados, cuspidos, como os mais selvagens dos selvagens – não podia ser verdade. Chorávamos, tínhamos todos o mesmo sentimento. Os suecos perceberam e alguns choravam conosco. Consolavam-nos, não entendíamos o que diziam, mas sentíamos que eles nos consolavam.
Depois vieram cônsules de vários países e cantaram seus hinos conosco. Primeiro, o holandês, porque havia mais deles. A seguir, os tchecoslovacos, os húngaros, e, depois, nós, os iugoslavos. Ainda havia um cônsul do rei iugoslavo, e cantamos Боже правде,[9] nós que não tínhamos nada a ver com política.[10]
Descemos do navio em seguida. Um ônibus nos aguardava. Diante dele, nos deram chocolate quente, bolos, e então tivemos de subir.
A cidade de Malmö é muito bem iluminada, parece o interior de uma casa. Andamos bastante tempo até que o ônibus parou diante de um prédio. Descemos. Era uma casa de banhos.
Primeiro tomamos um banho. Desinfetaram-nos da cabeça aos pés. Em seguida, numa outra sala, um médico nos esperava. Aquelas que estavam doentes foram imediatamente encaminhadas ao hospital. Limparam a ferida na minha perna e nos deram roupas novas. Prontas, limpas, voltamos ao ônibus.
Não andamos muito. Descemos do ônibus, dois a dois, como bons estudantes. Ficamos olhando ao redor como se nunca na vida tivéssemos visto algo bonito. No 1º andar, apenas vinte de nós num quarto. Limpeza absoluta. Flores nas janelas. Camas brancas. Ficamos imóveis em pé. Olhamos uns para os outros; todos têm a mesma expressão. Um médico está parado ali adiante e uma de nós o inquire:
– Senhor, por favor, diga quantas de nós deveremos deitar numa cama?
Pergunta risível, mas ele não sorriu. Sabia o quanto havíamos sofrido até então. Em voz baixa, e em alemão corrente, respondeu:
– Queridas crianças. Vocês estão na Suécia, em que cada ser humano tem amor igual um pelo outro. Não temos arames à nossa volta, vocês estão livres. Vocês irão se alimentar e descansar, o quanto desejarem. Esse será o vosso quarto. Há vinte camas e vocês são vinte também. Entrem e durmam bem!

FOME
No começo a gente não conseguia comer o pão, porque parecia feito de serragem. Depois, quando já sentíamos muita fome, chegávamos a esconder o pão embaixo do travesseiro, para ninguém roubar. Nós éramos quatro e a Gisie dividia o pão em quatro partes, para comermos uma porção e deixarmos as outras duas para mais tarde, porque só tinha pão uma vez por dia. A Gisie era a mais velha, ela era como a chefe de nós quatro: Alice, Hajnal, Gisie e eu.
 Parece que a necessidade de comer, para quem passa fome, é mais forte do que a própria necessidade de viver. Havia muito poucos casos de suicídio nos campos de concentração, um gesto que não seria tão difícil. Era só atirar-se contra o arame eletrificado. Mas quase ninguém fazia isso; havia o próximo pão.
Viver, assim, reduz-se praticamente a comer; ou melhor, comer é mais do que viver. Depois de terminada a guerra, quando Liwia estava indo para a Suécia, levada pela Cruz Vermelha, todos lhe ofereciam comida. Chocolates, pão, guloseimas, todos jogavam comida para dentro do trem, felizes de poder alimentar aqueles que tinham passado fome. Mesmo no campo, o assunto principal era a comida, e muitos, provavelmente, sobreviveram para lembrar da comida, para conversar sobre a comida, além de simplesmente para comer. Não se comia para viver; vivia-se para comer.
Saber se relacionar com a comida, dividindo-a em várias partes, guardando-a, barganhando com ela, fazendo do pão uma moeda cara, garantia de mais um dia, para então consagrar-se à próxima busca de pão. Essa manutenção ínfima do corpo e de algum resto de astúcia permitia aos prisioneiros, à noite, durante o trabalho ou em algum momento de conversa, falar sobre outras comidas, mais sofisticadas, gesticular sobre elas e fazer de conta que elas existiam. Parece que os sonhos também eram preenchidos com comida. O corpo e a alma – Que alma? O que é a alma de um prisioneiro faminto, de qualquer pessoa faminta? A fome faz pensar que a alma é simplesmente uma invenção do corpo, para aqueles que estão abastecidos e não precisam pensar em comida – de uma pessoa com fome são uma demanda permanente por comida. Como se os humanos se tornassem parasitas, vermes enlouquecidos, girando desnecessariamente num vácuo, desesperados atrás de migalhas, não para viver, mas simplesmente para comê-las. Comer para comer.
Esse processo de animalização reforçava a ideia que os nazistas tinham de que osprisioneiros eram mesmo como animais e isso os fazia sentir ainda mais ódio, como se a animalização justificasse a perseguição. Não seria muito mais digno se matar? Por que se humilhar tanto para conseguir um pedaço de pão duro e velho? As pessoas roubavam pão umas das outras, tiravam pão de cadáveres – por quê?
Muitos israelenses condenam os judeus dos campos de concentração por não terem resistido mais e melhor; por te-rem se submetido tão brandamente, animalescamente, por uma ração de sopa, por um pedaço de pão. Há uma inversão e uma perversão nessas ideias. Ninguém que não esteja passando ou tenha passado fome tem a mais remota noção do que ela seja e dos efeitos que ela provoca no comportamento humano, por mais ética que a pessoa seja. Ninguém sabe se a vida ou, mais absurdamente ainda, os valores de alguém são mais importantes do que comer, quando não se tem comida. Da parte dos nazistas, sua tática consistia em transformar os efeitos da carência de tudo – a fome, a sede, o frio, a sujeira – em causa; como se tudo estivesse acontecendo porque os judeus fossem originalmente como animais, e não o contrário. Essa é a formação básica do processo de alienação: trocar os efeitos pelas causas.
Nas páginas do diário de Liwia, como nas de vários outros sobreviventes, fala-se muito de comida. Um nabo, uma fatia de maçã, cascas de batata, metade de uma ração de sopa congelada e infectada, um resto de manteiga, tudo é motivo para viver mais um dia, e a vida, nessas condições, é um dia. Ela conta das batatas podres que comeu, dando muita risada. Comíamos batatas podres como se fosse ouro! Nunca comi nada tão gostoso. Sabe, quando a gente tem fome, tudo parece bom!
Talvez fosse por isso que ela transformava várias comidas, durante a nossa infância, em brincadeira. Tinha as salsichas cortadas em pedacinhos e montadas sobre bolinhas de pão preto, espetadas com um palito de dente: eram os soldadinhos. Tinha o frango cozido no centro do prato, cercado de arroz e o molho esbranquiçado nas bordas: era a ilha. Os bolinhos de massa de batata recheados de geleia e, com os restos da massa, umas tirinhas, que eram as cobrinhas. Os ovos com espinafre; a sopa de pêssego e claras de neve; o sorvete de café no canudinho. O goulash, o cholent, que ela ficava preparando durante toda a noite, acordando duas vezes para mexer na panela. Carne, ovos, batata e feijão branco, tudo misturado. Comida de quem não tem o que comer e, misturando tudo, inventa um prato que acaba sendo incorporado à culinária. O bife de contrafilé, passado só na manteiga, sem bater e frito na chapa. Os jantares de sexta-feira, quando vinham a avó e seu irmão, o tio Artur. Jantares caprichados, com entrada, prato principal e sobremesa. Ela nunca foi muito esmerada na cozinha, nem nunca soube fazer muitos pratos, mas dominava perfeitamente aqueles que fazia. E os bolos de Yom Kippur: rocambole de chocolate, com o chocolate respingando quente; rocambole de nozes. Macarrão com geleia no forno. Ela parece ter mais prazer em ver os outros comerem do que em comer propriamente. Come muito pouco e nunca gostou de restaurantes. Sempre quer dividir as porções e não se conforma com os pratos individuais.
Toda a estratégia nazista de liquidação, de extermínio radical, além do assassinato direto, consistia em produzir fome. A fome é a pior privação, a mais bestial de todas, e era ela que sustentava todo o processo paranoico e de extermínio da identidade humana e cultural dos prisioneiros. Não se tratava somente da dificuldade material e logística de enviar todos para as câmaras de gás; era uma etapa necessária do trabalho de diluição do homem no homem. Os campos de concentração são a fome; mais do que tudo é ela a determinante de todos os outros acontecimentos, belos ou horríveis.

PALAVRA
Mãe, se você precisar se lembrar de alguma palavra que diziam no campo, qual seria? AchtungeZeltappell. Só me lembro dessas duas. Mas você não se lembra de mais nenhuma palavra? Não, não me lembro, não. Só isso que você quer saber?
A filha fica irritada. Como é possível ela não se lembrar de mais nenhuma palavra, se passou onze meses no campo? Nem palavras dos oficiais, nem dos outros prisioneiros, nem as que ela mesma deve ter pensado? Por que não se lembra de palavras, se não existe nada mais importante do que elas? E ela ainda pergunta se é só isso que a filha quer saber. Como se fosse pouco.
 Liwia tem vergonha de que o diário que ela escreveu na Suécia seja publicado, porque acha que não tem estilo literário nenhum e sabe que o texto da filha vai ser carregado de estilo. Não há como comparar, a mãe pensa. Como aquele diário tão simples, tão sem palavras, poderá aparecer junto com as impressões da filha, que se preocupa tanto com a forma como as coisas são ditas? Ela não entende que é justamente isso o que a filha procura. Tem vergonha, eventualmente, das palavras de que se lembra. Não são palavras à altura dos pensamentos complexos da filha.
 Como será para ela ter uma filha que se ocupa de palavras? Será que isso a faz se sentir mais envergonhada, orgulhosa, medrosa ou será que foram justamente as palavras e as não palavras dela que fizeram a filha escolhê-las para viver? Afinal, a filha está tentando dizer o que ela não quis, não pode dizer. A filha sabe e a mãe autoriza que essas palavras sejam ditas agora, da maneira que a filha quiser. Como ela poderá escolher as palavras das quais a mãe não se lembra? A filha fantasia: se tivesse estado lá, se lembraria de tantas coisas. Outra licença indevida, como tantas que acontecem nesse sequestro e apropriação das palavras da mãe. É preciso roubar um pouco da vida do pai, da mãe, para conseguir sustentar sua sobrevivência. Ter estado onde eles estiveram, em seu lugar, é uma fantasia ridícula, mas inevitável. É um capricho, uma veleidade, mas é também uma redenção. O desejo de salvar um pouco o sofrimento já vivido.
Achtung significa atenção. Zeltap-pell significa chamada. Atenção, ao menos em português, é um chamado para que alguém seja mais cuidadoso, olhe mais em redor, fique mais concentrado, mas também é o cuidado que se tem para com alguém, um olhar mais demorado, alguma forma de carinho. Mas em alemão, não. Achtung, em alemão e nessas condições, quer dizer: é proibido! Não faça isso! Uma falsa advertência. Um disfarce, como se dizendo: se você fizer isso, será punido. Mas que diferença isso faz, se, mesmo não fazendo aquilo, o prisioneiro também será punido? Para que prestar atenção? Para que advertir? Como é difícil entender a lógica do medo que se instala na linguagem, o porquê da linguagem recrudescer um medo que está além e aquém dela. Como se ela fosse um anteparo: se o soldado não disser Achtung, quem sabe o prisioneiro não poderá se sentir mais tranquilo? Mas, se ele disser, é melhor se precaver.
 A filha não entende nada. Como ela reagiria diante de umAchtung que, na verdade, não quer dizer nada? A filha não aguenta palavras que não querem dizer nada. Fica escarafunchandoo significado de cada placa de trânsito; apoia-se na etimologia de cada coisa para entendê-la melhor, esmiuçá-la até transformá-la em alguma possibili-dade de poesia.
Zeltappell era a chamada que os nazistas faziam várias vezes por dia, com o pretexto de verificar se todos os números batiam, se os prisioneiros da manhã eram os mesmos da noite, se ninguém havia sumido, fugido, adoecido, dormido, morrido.
Atenção e chamada foram as duas únicas palavras que sobraram na memória dela, de onze meses de terror. Como se o campo tivesse sido uma sala de aula. Atenção para a chamada.
Se a filha precisasse se lembrar de algumas palavras que simbolizam sua mãe, diria “que que fala quê?” – que é o que ela diz quando quer se lembrar de algum assunto que esqueceu. É sua maneira de dizer: “O que eu queria falar?” “Premiera”, que é o seu jeito de dizer “primeira”. “Volan”, que é “volante”. “Que tem novidade?”, no lugar de “Tem alguma novidade?”. No news, good news. “Não tem importância” e “Que que tem?”. Ela transforma várias palavras e perguntas do dia a dia em música. Se alguém diz que quer comer, ela canta: “Comer, comer, é o melhor para poder crescer!” Até hoje ela não aprendeu a falar o xingamento “Vai tomar banho”. Diz assim: “Vai tomando banho.” Sempre que alguém a fechava no trânsito, era isso o que ela dizia, enquanto ainda dirigia: “Vai tomando banho.” É o pior xingamento que ela consegue dirigir a alguém.
Nos últimos anos, ela tem, cada vez mais, ficado em silêncio. Nas reuniões familiares, o que ela mais faz é ficar olhando; um pouco para o vazio, um pouco para as pessoas. Às vezes ela solta um: “Tudo isso saiu de mim!”
No casamento da neta, era inevitável vê-la embaixo da chupá[11]e pensar: ela saiu da guerra e agora está ali, vendo a neta se casar no Brasil. Onde a história foi parar? Como os caminhos foram percorridos? Qual será a sensação de ter estado lá e agora estar aqui? Qual é o percurso estabelecido pela memória que passa por essas duas coisas? A impressão que dá, quando ela queda silenciosa, é que algo assim deve estar passando, mesmo que em silêncio, por sua cabeça. Olhos queveem, mais do que palavras que possam dizer este pequeno absurdo que é essa mudança de destino. Como é possível uma só vida encerrar duas possibilidades tão distintas? Que palavras poderiam dizer isso?Achtung Zeltappell? Onde foram parar estas palavras, agora? Em que boca elas estão, por quem elas estão sendo ditas, que palavras podemos dizer nós, que palavras ela pode lembrar, tanto quanto aquelas que ela esqueceu?
Quais são as palavras que ela esqueceu?
Um dia, ao telefone, ela, que gosta de ficar imaginando situações, perguntou à filha: “Filha, o que os cegos estão sonhando?” De início, a filha não entendeu. Parecia tratar-se de cegos específicos em uma situação específica e que aqueles cegos estariam sonhando alguma coisa naquele instante. Ela acrescentou: “Sim! O que eles estão sonhando, se não enxergam? Como podem ver imagens nossonhos?” Então a filha entendeu e se lembrou de que a mãe confunde os usos do presente simples e do presente contínuo. “O que os cegos estão sonhando?”, na verdade, é “O que os cegos sonham?”. Mas, de uma forma inesperada e subitamente bela, aquela frase, em sua suspensão do tempo, em seu deslocamento gramatical e semântico e em seu significado autônomo, como que independente de qualquer lógica narrativa, sintetiza exa-tamente o estar no mundo da mãe. Como se ela estivesse fincada no presente contínuo, num eterno vir a ser, maravilhada com as possibilidades do mundo e da natureza. Houve a guerra, houve o exílio, o sofrimento, tudo. Mas esse passado, que houve e que não é negado, mas esquecido, se mistura, em sua memória, a uma disposição perene para o presente, sem o domínio perfeito da gramática, mas como uma apropriação deslocada, em que a percepção das coisas importa mais do que as coisas mesmo.




[1]Senta, cidade na província sérvia chamada Vojvodina (pronuncia-se “vóivodina”), às margens do rio Tisa.

[2]Szeged, a terceira maior cidade da Hungria, ao sul do país, próxima à fronteira com a Sérvia.

[3]Baja (pronuncia-se “báia”) é um vilarejo na Hungria, a 150 quilômetros ao sul de Budapeste. Fica ao norte da fronteira entre Hungria, Croácia e Sérvia.

[4]Revista de pavilhão.

[5]Hajnal (pronuncia-se “cainal”) é um nome húngaro.

[6]Nome das Forças Armadas da Alemanha nazista, entre 1935 e 1945. As Waffen-ss eram o braço do esquadrão de proteção do Partido Nazista, que reunia as polícias secreta e política.

[7]Pequena cidade da Dinamarca, na fronteira com a Alemanha.

[8]A data correta seria 2 de junho.

[9]Pronuncia-se “boje pravde” – são as primeiras palavras dos versos do hino nacional da Sérvia: Ó, Deus da justiça.

[10]Alusão ao fato de que o regime monárquico da dinastia dos Karad-jord-jevićfoi derrubado por Tito, que proclamou a República e instaurou um regime socialista unipartidário, com o fim da Segunda Guerra Mundial.

[11]Espécie de tenda sob a qual se realiza o casamento judaico.