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jorge luis borges | 
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1964
  - Jorge Luis Borges  Alejandra Pizarnik e Ivonne A. Bordelois
O leitor desta
  entrevista não deixará de reconhecer nas respostas, que foram orais, o sabor
  da escritura de Borges. De fato, não corrigimos nem suprimimos quase nada do
  que recolheu a gravação. Somente omitimos certas comovedoras sustentações da
  fala: “eu não sei”, “me parece”, “eu creio” etc. Em particular, tivemos que
  suprimir muitíssimos “eu não sei”. Enfim, a partir das respostas veremos que
  a humildade é um dos traços essenciais de Borges. Por exemplo, em mais de uma
  ocasião refere-se a Leopoldo Lugones[1] considerando-o superior a ele (ao
  enunciá-lo, o tom de sua voz era o de quem afirma uma verdade universal e uma
  coisa óbvia). Esta injustiça que inflige a si mesmo a emprega, também, em
  suas “simpatias e diferenças”. Assim, por exemplo, nos disse (em conversa
  fora da entrevista) que Kafka[2] não é superior a Kipling[3]. Mas esta misteriosa injustiça pertence,
  também, à tradição literária e grandes escritores deram testemunho dela.
  Basta recordar Victor Hugo[4] e Goethe[5]. [AP]  
AP/IAB - Que
  interesse lhe oferece a literatura contemporânea?  
JLB - Em geral,
  me oferece muito escasso interesse. Tenho a impressão de que a literatura
  participa do declínio geral desta época.  
AP/IAB - Então
  quais seriam, em seu juízo, as épocas de apogeu da literatura?  
JLB - De minha
  parte, posso falar com certa autoridade das literaturas de língua inglesa: e
  penso que não há atualmente, na Inglaterra, escritores comparáveis a Shaw[6], Chesterton[7], Wells[8]… E creio, além do mais, que o fato
  de que eu tenha alguma fama é uma das provas do declínio da literatura.  
AP/IAB - Não
  será, melhor dizendo, que você pertence à época dessa outra literatura (a de
  Shaw, Chesterton, Wells…)?  
JLB - Não sei.
  Mas sei, por exemplo, que escritores argentinos evidentemente superiores a
  mim - basta recordar Lugones ou Paul Groussac - não alcançaram, no entanto, a
  mesma ressonância e o renome que alcancei. E creio que se houvesse sido
  estritamente contemporâneo deles, decerto não seria conhecido especialmente.  
AP/IAB - Quais
  são, em sua opinião, os defeitos maiores da literatura argentina frente à
  literatura européia?  
JLB - O defeito
  maior da literatura argentina - e aqui estou generalizando, porque a pergunta
  é uma pergunta genérica e exige uma resposta genérica - é que, exceto por
  alguns casos contados, não parece uma literatura necessária. Lembro que
  Wordsworth[9] dizia de Goethe que lhe faltava
  inevitabilidade. Entendo que neste país há muitos escritores que estão
  exercendo seu ofício com muita destreza, mas cuja obra não corresponde à
  consciência argentina ou aos momentos atuais dessa consciência. Ou seja,
  conheço pessoalmente o caso de jovens escritores de nosso país que fazem o
  possível - e às vezes o conseguem - para ser Eliot ou Kafka ou qualquer outro
  escritor. Mas, ao mesmo tempo, não sei até onde isto tem sentido, porque uma
  obra como a de Kafka ou uma obra como a de Eliot - a quem admiro, embora
  menos que a Kafka, evidentemente -, correspondem, mesmo que o autor não o
  queira, a certos problemas. Por exemplo, um dos temas da obra de Kafka é a
  relação do homem com a divindade, o lugar do homem no universo, o mistério de
  saber segundo quais cânones, segundo quais leis, somos julgados; acredita que
  há um juiz que nos julga. Enfim, em um país essencialmente ateu como o nosso,
  esses problemas não têm maior sentido ou não podem corresponder a uma
  sinceridade do escritor.  
AP/IAB - Quer
  dizer que você postula uma consonância radical da literatura com a
  consciência de sua época. Pois bem, acredita que também a literatura
  fantástica tem que responder a este tipo de consonância ou acordo?  
JLB - Creio que
  toda literatura deve fazê-lo. Mas creio também que não deveríamos falar de
  literatura fantástica. E uma das razões - que já declarei alguma vez - é que
  não sabemos a que gênero corresponde o universo: se ao gênero fantástico ou
  ao gênero real. Outra razão é que, uma vez que toda literatura está feita de
  símbolos, começando pelas letras e pelas palavras, é indiferente que esses
  símbolos sejam tomados da rua ou da imaginação. Ou seja, creio que
  essencialmente Macbeth[10] - a quem levam ao crime as três
  bruxas ou parcas (“irmãs fatais, irmãs do destino”) - não é um personagem
  menos real que Rodion Raskolnikov[11]. Mas seguramente Shakespeare, para
  conceber um assassino, escolheu uma história que encontrou em velhas
  crônicas, e Dostoyevski, ao contrário, imaginou uma história em San
  Petersburgo. Mas isso é indiferente: ambos personagens são igualmente reais e
  ambos vivem, e creio que seguirão vivendo, na imaginação dos homens.  
AP/IAB - Que
  importância tem para você o Ultraísmo?  
JLB - Bem,
  entendo que essa época que se chama de Martín Fierro ou de Ultraísmo
  foi, em todo caso, neste país, um tipo de equívoco, porque o essencial do
  Ultraísmo foi a renovação da metáfora. E esta renovação já havia sido
  predicada e sobretudo exercitada - o que é mais importante - por Lugones em
  seu Lunario sentimental, que se publicou em 1909, e foi uma obra
  revolucionária nessa época. Ou seja, entendo - e disse isto antes do suicídio
  de Lugones - que o movimento ultraísta neste país foi um movimento um tanto
  supérfluo e tardio, porque Lugones já havia feito todas essas coisas; e creio
  que as havia feito melhor do que nós; ou, em todo caso, melhor do que eu - uma
  vez que não tenho porque julgar outros poetas -, em seu Lunario
  sentimental, ou seja, uns 15 anos antes de nossa suposta produção. A
  outra diferença entre o Ultraísmo e Lugones foi uma diferença negativa:
  porque Lugones - que havia escrito em suas Montañas del oro, de 1897,
  admiráveis versos livres à maneira de Walt Whitman[12], então um de seus mestres -,
  chegou depois a crer que o verso moderno, ao menos o verso em língua
  espanhola, necessitava da rima como elemento essencial. Por isso, nas Montañas
  del oro ele elege e louva quatro poetas essenciais da humanidade. Esses
  poetas são Homero[13], Dante[14], Hugo e Whitman. Ao contrário, no
  prólogo do Lunario sentimental, menciona os três primeiros e não cita
  Whitman. Sem dúvida porque pensou que Whitman se equivocava ao crer na
  possibilidade de um verso sem sílabas largas e breves, como o hexâmetro
  grego-latino e, ao mesmo tempo, sem rima.  
AP/IAB - Não
  nos referíamos à alternância entre escolas literárias, mas sim à relação que
  une um escritor aos demais.  
JLB - Vim da
  Espanha de cenáculos literários. Tive a honra de pertencer ao cenáculo de
  Rafael Cansinos-Asséns, no Café Colonial, em Madri. Cansinos-Asséns morreu há
  pouco e era um homem que parecia haver lido todos os livros, em todas as
  línguas. Além do mais, foi um grande poeta; um poeta em forma sálmica ou em
  prosa, mas sem dúvida um grande poeta, e agora foi esquecido com injustiça…
  Não sei porque, possivelmente pela própria generosidade de Cansinos. O fato
  de haver dedicado boa parte de sua vida a elogiar escritores muito inferiores
  a ele (saibam que dedicou livros a Concha Espina, que elogiou em excesso -
  segundo penso - a Gabriel Miró, bastante inferior a ele no mesmo tipo de
  prosa musical e pictórica), tudo isto, creio, debilitou o juízo que outros tiveram
  dele. Mas isto ocorreu porque Cansinos era um grande poeta: da mesma maneira
  que para um grande poeta um por de sol, ou uma rosa, ou uma rua, ou o rosto
  entrevisto de uma mulher, pode ser o ponto de partida para um poema, assim
  ocorria para Cansinos com a leitura de um livro medíocre, pois não escrevia
  sobre o livro mas sim sobre o que o livro poderia ser. Esta seria uma das
  razões para o esquecimento em que caiu Cansinos-Asséns e que eu,
  pessoalmente, fiz o possível para corrigir. Outra coisa: Cansinos publicou a
  primeira tradução espanhola de As mil e uma noites. Trata-se de um
  escândalo que na Espanha, o país da Europa que está mais vinculado ao Islã,
  já que os árabes viveram ali durante tantos séculos, não houvesse outra coisa
  senão traduções do livro As mil e uma noites feitas de segunda mão, ou
  seja, versões do inglês e do francês. Isto quer dizer que Cansinos-Asséns,
  por incrível que pareça, foi o primeiro escritor espanhol que no século XX
  publicou uma tradução direta deste livro, que teve sua publicação impedida na
  Espanha porque o Estado julgou que não convinha publicar livros islâmicos,
  além do mais nem sempre decorosos. Por isso a Editorial Aguilar teve que
  publicar essa versão no México, pois na Espanha isso era e é impossível.  
Mas vejamos, já
  que mencionei Cansinos-Asséns, quero mencionar também um grande escritor e
  sobretudo um grande pensador e grande conversador argentino, Macedonio
  Fernández[15], que tinha seu cenáculo aqui. Mas
  tudo isto resulta anacrônico porque a paixão de nosso tempo é a política e
  não a literatura, embora por aqueles anos - estou falando de mil novecentos e
  vinte e tantos - existisse uma paixão literária, ou seja, era possível que se
  reunissem grupos jovens e ficassem até de madrugada discutindo se convinha ou
  não usar rimas ou metáforas, se convinha a poesia narrativa, a poesia
  descritiva ou a poesia musical, simbólica. E isso ocorria de tal maneira que,
  se penso em meus amigos daquela época, não sei que opiniões políticas tinham
  - salvo em alguns casos. Quero dizer que a literatura podia ser uma paixão
  naqueles anos, enquanto que atualmente não sei se a literatura é uma paixão
  entre a gente jovem ou se a literatura está sujeita ao que se chama
  “littérature engagée” etc.  
AP/IAB - Contudo,
  se diz que Martín Fierro foi dissolvido por um problema político a
  propósito da candidatura de Irigoyen.  
JLB - Não sei, o
  que recordo daquela época é que houve uma polêmica entre dois grupos: o grupo
  de Boedo e o de Florida, e me consta que essa polêmica foi organizada por
  Ernesto Palacios, do grupo de Florida e por Roberto Mariani, do grupo de
  Boedo, e que me inscreveram no grupo de Florida. Por aqueles anos, eu
  escrevia poemas sobre os subúrbios, sobre as margens de Buenos Aires, e teria
  preferido estar no grupo de Boedo, mas já me haviam inscrito no grupo de
  Florida; e, além do mais, ninguém levava muito a sério essa polêmica. Creio
  que tudo isso ocorreu, simplesmente, com o fim de se estar à la page:
  já que havia polêmicas e grupos literários em Paris, então não podiam faltar
  em Buenos Aires. Mas não creio que isso tenha tido maior transcendência,
  apesar de haver logo sido levado a sério e agigantado pelos historiadores da
  literatura.  
AP/IAB - No entanto,
  tem havido particularizações ultimamente acerca da falta de importância que
  teve esse incidente.  
JLB - Não teve
  absolutamente nenhuma importância, tanto é assim que lembro o caso de um
  poeta, Nicolás Olivari, que pertencia a ambos grupos e não ocorreu a ninguém
  censurá-lo, isto porque estávamos todos mais ou menos de acordo, sabíamos que
  tudo isso correspondia… não sei, a um mecanismo de publicidade. Na França,
  certamente, esses mecanismos de publicidade literárias estão muito mais
  desenvolvidos do que aqui; em primeiro lugar porque a França é um país
  literário; além disso, os franceses têm uma consciência literária, ou seja, a
  um francês lhe agrada saber exatamente o que está fazendo, inclusive aqueles
  franceses que são revolucionários contra uma tradição mas que não ignoram que
  essa revolução formará parte ulteriormente da tradição. Ao contrário, pelo
  menos neste sentido, nós nos parecemos com os ingleses que são
  individualistas, e aqui poderíamos recordar aquilo de Novalis[16], que disse que “cada inglês é uma
  ilha”, ou seja, a um escritor inglês não lhe preocupa tanto localizar-se,
  situar-se em uma escola literária. Por isso ensinar a literatura inglesa por
  escolas não tem maior sentido porque estamos diante de indivíduos e não
  diante de grupos coletivos.  
AP/IAB - O
  fato de que na Europa um escritor possa chegar a subsistir materialmente
  graças à literatura lhe parece que é de importância para a obra em si?  
JLB - Não, talvez
  seja de importância para a obra. Creio que André Gide disse: “il faut
  décourager la littérature”; ou seja, creio que se um homem tem vocação
  literária - escrevi um soneto sobre isso, não? -, então as desventuras
  pessoais, tudo isso, podem ser um alimento para sua obra e, se me permitem
  incorrer em exemplos muito elementares, e muito evidentes, não creio que o
  cárcere de Cervantes ou de Verlaine[17] ou a cegueira de Milton[18] lhes impedissem escrever a poesia
  que ainda admiramos. Mas vejamos, em geral creio que seria mais conveniente
  para a obra literária que se seguisse a tradição judia, ou seja, a tradição
  que faz com que o rabino, que viria a ser também o homem de letras, exerça ao
  mesmo tempo um ofício qualquer, e conviria, segundo me parece, que esse
  ofício não fosse o jornalismo, porque o jornalismo se assemelhava perigosamente
  à literatura e poderia contaminar a obra do autor. Me parece melhor, digamos,
  o caso de Spinoza polindo lentes e polindo um sistema filosófico, tudo isto
  ao mesmo tempo.  
AP/IAB - Como
  vê o atual desgaste da palavra literatura ou literato?  
JLB - Creio que
  os literatos temos alguma culpa nisto porque, que eu saiba, os pintores não
  falam mal da pintura nem os escultores da escultura; Ao contrário, como o
  instrumento do literato é a palavra, essa palavra tem sido usada também para
  desprestigiar a literatura e aqui há um exemplo famoso, que é aquela famoso
  verso de L’art poétique onde se diz:  
Que ton vers soit la bonne aventure  
eparse ao vent
  crispé du matin  
qui va fleurant la menthe et le thim  
Neste caso a
  palavra literatura está usada depreciativamente, de maneira que os
  próprios literatos temos alguma culpa disto.  
Mas no que se
  refere à República Argentina, o homem de letras possui bastante menos
  prestígio do que em outras repúblicas americanas. Sem ir muito longe, no
  Uruguai, por exemplo, podem me apresentar em uma reunião a um poeta ou
  escritor Fulano de Tal, enquanto que em Buenos Aires, diante de uma
  apresentação assim poderíamos pensar que há uma certa sornice nisso. Também
  na Colômbia me parece que o literato é uma pessoa não somente admitida mas
  também admirada e essa admissão e essa admiração podem ser anterior ao
  conhecimento de sua obra, ou seja, há algo já respeitável na idéia de um
  literato.  
AP/IAB - Acredita
  que há uma resistência particular do espanhol à poesia?  
JLB - Não, mas
  creio, com Unamuno[20], que uma maioria de escritores
  espanhóis são oradores por escrito. Agora, quanto à resistência do idioma,
  creio que não temos direito a falar disto se lemos a Noche oscura del alma
  ou se lemos Góngora[21] ou Darío[22] ou Lugones ou Enrique Banchs -
  além do mais, não se trata de acumular nomes aqui para demonstrar que o
  idioma é capaz de poesia.  
Agora, já que
  estamos neste tema, o espanhol teria uma desvantagem: é que a maioria das
  palavras são, me parece, excessivamente longas. E isso se nota quando se quer
  traduzir, digamos, um soneto de Shakespeare para o espanhol. No verso inglês
  - em sua parte germânico-saxã, o inglês é praticamente monossilábico - cabe
  muito mais do que no verso espanhol. Esta abreviação seria um tipo de
  perfeição. Pois bem, outro inconveniente - já que vocês me levaram a este
  tema - é que nos advérbios o acento cai, no espanhol, na parte não
  significativa. Por exemplo, se alguém diz alegremente ou tristemente
  o que se ouve é mente e isto corresponde a um mero mecanismo do
  idioma. Ao contrário, se alguém diz sadly, gaily, darkly,
  lithly, o acento cai sobre a parte significativa, ou seja, sobre o
  adjetivo e não sobre -ly, que simplesmente nos diz que é advérbio.  
Mas que não se
  possa escrever poesia em espanhol me parece uma afirmação aventurada. Recordo
  agora que a única vez que conversei com Pablo Neruda[23] - mas foi uma conversa sem rigor,
  uma conversa que queria ser mais amistosa do que exata - chegamos à conclusão
  de que o espanhol era um idioma renitente à poesia, e que era absurdo
  tentá-la. Mas creio que nenhum de nós acreditava nisto e a prova está em que
  tratamos - ele com êxito, certamente - de escrever em espanhol. Ao contrário,
  se tivéssemos pensado que estávamos tratando de manipular uma matéria de todo
  rebelde, não o teríamos feito.  
AP/IAB - Por
  que você escreveu dois poemas em inglês?  
JLB - Bem, a
  primeira razão que me ocorre é que os pensei em inglês, ou seja, que não os
  escrevi em espanhol e os traduzi para o inglês, mas sim que os senti
  diretamente em inglês. E a segunda razão - mas isto é um mero acidente genealógico
  - é que uma de minhas avós era inglesa. Meu pai tinha uma excelente
  biblioteca inglesa. Escrevi alguma vez que eu nunca havia saído dessa
  biblioteca, que havia passado a vida lendo e relendo esses livros. E em casa
  falávamos indistintamente inglês e espanhol. De maneira que lhes peço que não
  creiam que se trata de um pedantismo. Em absoluto. Os poemas saíram em
  inglês. A minha vontade pouco influiu. Além do mais, não tenho por que
  ocultar o fato de que me agrada muito o inglês e vocês já sabem que há cinco
  anos estou estudando inglês antigo ou anglo-saxão e que há um mês empreendi o
  estudo do idioma dos vikings, que se falou na Inglaterra como também se falou
  em tantas partes do mundo, nas ruas de Constantinopla, na Groenlândia.  
AP/IAB - É que
  o inglês lhe parece o idioma mais propício para esses poemas?  
JLB - Creio que
  não, porque lembro que esses poemas eu os escrevi espontaneamente e sem ter
  uma teoria prévia à escritura em inglês. Os poemas se escreveram, digamos
  assim, em inglês, e somente dois poemas se escreveram em inglês; e depois
  nunca voltei a tentá-lo. Agora, algumas vezes usei títulos ingleses; por
  exemplo, há um soneto meu que se chama “Everness” e não “Eternidad”; mas eu o
  chamei “Everness” porque a palavra “Everness”, que é uma palavra inglesa
  cunhada no século XVII pelo bispo Wilkins, me parece uma palavra mais
  expressiva do que a palavra eternidade ou a palavra comum inglesa eternity,
  tomada do francês ou do latim. E já que estamos falando disto, quero
  dizer-lhes que Wilkins cunhou outra palavra - os poetas ingleses foram tão
  torpes que não a recolheram nunca -, que tem muito mais força do que o “never
  more” usado por Poe[24]. Wilkins cunhou a palavra “neverness”,
  ou seja, aquilo que nunca ocorreu, que não pode ocorrer nunca. Embora Keats[25] use por duas vezes a muito
  expressiva palavra “nothingness”, é uma lástima que não tenha recolhido a
  palavra “neverness” que ficou sozinha, como se o próprio sentido houvesse
  influído em sua solidão, como se tivesse havido uma operação mágica.  
AP/IAB - Por
  que a literatura francesa ocupa menos lugar em sua leitura e em sua produção
  crítica do que a inglesa ou a alemã?  
JLB - Se pensamos
  que a literatura francesa produziu La chanson de Roland, e que
  produziu Victor Hugo e Verlaine, e que produziu poetas menores cujas
  composições sei de memória, como Toulet, por exemplo, qualquer animadversão
  contra a literatura francesa seria absurda. Mas - e aqui se trata de uma
  idiossincrasia em particular, algo assim como a torpeza de minha voz ou a cor
  de meus olhos - há algo que me faz sentir de um modo muito mais intenso a
  literatura inglesa e a literatura alemã, e agora a antiga literatura inglesa,
  a poesia anglo-saxã épica e elegíaca. Mas não quero impor estas preferências
  a ninguém. Entendo que isto é mais ou menos como se discutíssemos a vantagem
  do café sobre o chá. A verdade é que sinto com mais profundidade a poesia
  inglesa que conheço bem. Quanto ao alemão, eu o conheço menos mas o
  suficiente para poder sentir profundamente uma poesia de Angelus Silesius, de
  Hofmannsthal[26] ou de Heine.  
AP/IAB - Por
  que acredita que Martínez Estrada e Lugones são os melhores poetas
  argentinos?  
JLB - Bem, aqui
  estamos em um terreno de sensibilidade. Pessoalmente estou muito afastado de
  Martínez Estrada que, como amigo, é uma pessoa muito difícil. Mas creio, em
  primeiro lugar, que Martínez Estrada é um discípulo de Lugones, ou seja, que
  a poesia de Martínez Estrada é inconcebível sem a poesia prévia de Lugones.
  Ao mesmo tempo, penso que Lugones era um homem relativamente simples, que
  sentia profundamente certas coisas fundamentais: o amor, a pátria etc., e que
  inventou uma maneira complexa de versificar: inventou um sistema de rimas e
  metáforas complicadas. Então, há certa discórdia muitas vezes entre o que
  Lugones está dizendo, que é relativamente simples, e a maneira complexa em
  que o diz. Ao contrário, Martínez Estrada recolhe a tradição de Lugones e
  também, em boa parte, a de Darío: na obra de Martínez Estrada notam-se ambas
  influências. Além do mais, Darío influiu sobre Lugones, como se costuma
  dizer. Mas acredito que Martínez Estrada fez bem, porque Martínez Estrada é
  essencialmente um homem complexo. E esse sistema complexo de poesia se ajusta
  mais ao seu caráter do que ao caráter relativamente elementar e simples de
  Lugones.  
AP/IAB - Está
  de acordo com a afirmação feita por alguns de seus críticos de que sua poesia
  é um debate entre a lírica e a épica?  
JLB - Eu não
  sabia disso. Ignorava essa afirmação. Mas, quanto a mim, pessoalmente, o que
  me emociona mais é a épica e, além disso, não é inútil recordar que a poesia
  começou pelo épico. Ou seja, a poesia é anterior à prosa, como vocês não
  ignoram. Há literaturas que não chegaram nunca à prosa, que são puramente
  poéticas. Mas uma literatura sem épicas é, pelo menos no Ocidente,
  inconcebível. Parece que a literatura começa, como a Eneida, pelo
  “arma virunque”, ou seja, pelas façanhas e o homem, pelas armas e o homem.
  Agora, pessoalmente, o que sinto mais é o épico. Me aconteceu, e não tenho
  por que ocultá-lo, de ir ao cinema e sentir, de imediato, que tenho os olhos
  cheios de lágrimas. Isso não ocorreu jamais em filmes sentimentais. Isso
  ocorreu em filmes de guerra ou em filmes de faroeste, que também são uma
  forma da épica. Já que os poetas resolveram abandonar a épica, alguém tem que
  cuidar dela, porque a épica é uma das necessidades fundamentais da alma
  humana. E o fato de que tenha tomado forma de cowboys não me parece
  censurável de maneira alguma: é uma forma da épica. E além do mais, neste
  país temos o Martín Fierro, que é nossa épica. Mesmo que tenha sido
  escrito simplesmente por motivos políticos - o que Hernández[27] queria era censurar o Ministério
  da Guerra e as levas que eram feitas para mandar gente à fronteira e à guerra
  do Paraguai -, Hernández escreveu sem que se tenha proposto, e acaso sem
  sabê-lo, um poema que tem sabor épico: creio que não há dúvida quanto a isto.
  Em todo caso, o sentimos como épico, que é muito mais importante do que a
  intenção do autor.  
AP/IAB - Considera
  que seus contos são uma forma de poesia?  
JLB - Sim. Agora
  que minha cegueira, ou minha quase cegueira, me impede de escrever contos,
  noto que em quase todos os meus poemas há algo narrativo. Quanto a ser realista,
  no sentido que se costuma dar a esta palavra, é algo que não me preocupa, por
  aquilo de que “a realidade não é verbal”. E tanto é assim que meu único conto
  que se pode chamar de realista, “Emma Zunz”, é um conto cujo argumento foi
  inventado por uma excelente amiga minha, Cecilia Ingenieros, que me disse que
  não tinha vocação literária e me deu o argumento. E vi que esse argumento
  exigia um tratamento realista e assim tratei de fazê-lo. Não sei como saiu o
  conto. Quanto ao outro conto meu que é demasiado famoso, “Hombre de la
  esquina rosada”, não é realista. E até poderia explicar por que não o é.
  Tenho 64 anos e vou completar 65. Bem, presenciei provocações entre gente criolla,
  marginal. E as provocações nunca se faziam - e disto eu sabia perfeitamente
  ao escrever o conto - da maneira em que estão colocadas no conto, ou seja,
  jamais um indivíduo teria se apresentado ou dito: “Sou fulano de tal, um
  homem do Norte, me disseram que aqui há alguém com fama de valentão”. Jamais
  teria sido assim; a provocação teria sido muito mais lenta; teria começado
  lisonjeando o outro. Depois, esse lisonjeio não teria sido tão excessivo no
  caso de ser uma zombaria. Em seguida, viria o desafio, depois de uma longa e
  desconcertante conversa. De tudo isto eu sabia quando escrevi o conto. Mas o
  escrevi, também, influenciado pelos filmes de Sternberg[28], influenciado pelo ballet, ou
  seja, quis fazer algo muito vívido, muito visual, muito dramático, e me
  desconcertou muito quando esse conto foi lido como se fosse um conto de compadres[29] ou um conto realista. Realmente,
  os compadres não agem assim. Eu só estava tratando de fazer uma
  fantasia bastante visual sobre um tema criollo. E se vocês recordam o
  conto, verão que tudo é visual. Por exemplo, o homem provocado não somente
  renuncia a lutar como também pega a faca e joga-a pela janela para que
  vejamos o fulgor do aço. Isto não era necessário. A intenção, muito
  diferente, era, digamos, meramente decorativa.   
[1] Lugones, Leopoldo (1874-1938), poeta
  argentino, autor de Las montañas del oro (As montanhas de ouro)
  e El libro fiel (O livro fiel).  
[3] Kipling, Rudyard (1865-1936), romancista
  inglês, autor de Kim e The nauhlahka, este último escrito em
  parceria com seu agente, Wolcott Balestier.  
[4] Hugo, Victor (1802-1885), poeta e
  dramaturgo francês, autor de Les misérables (Os miseráveis) e Hernani.
   
[5] Goethe, Johaan Wolfgang (1749-1832),
  poeta e dramaturgo alemão, autor de Faust (Fausto) e Der
  König in Thule (O rei de Thule).  
[6] Shaw, George Bernard (1856-1950), dramaturgo
  irlandês, autor de Pygmalion (Pigmaleão) e Mrs. Warren’s
  profession (A profissão da Sra. Warren).  
[7] Chesterton, Gilbert Keith (1874-1936),
  ensaísta e romancista inglês, autor de Twelve types (Doze tipos)
  e The scandal of father Brown (O escândalo do padre Brown).  
[9] Wordsworth, William, poeta inglês, autor
  de Lyrical ballads (Baladas líricas) e The prelude (O
  prelúdio).  
[10] Personagem central da tragédia homônima
  de William Shakespeare (1564-1616), dramaturgo inglês, também autor de Hamlet
  e King Lear (Rei Lear).  
[11] Personagem central de Crime e castigo,
  de Fyodor Dostoievsky (1821-1881), romancista russo, também autor de The
  brothers Karamazov (Os irmãos Karamazov).  
[14] Alighieri, Dante (1265-1321), poeta
  florentino, autor de Vita nuova (Vida nova) e Commedia (Divina
  comédia).  
[15] Fernández, Macedonio (1874-1952), poeta
  argentino, autor de Una novela que comienza (Uma novela que começa)
  e Muerte es beldad (Morte é beldade).  
[16] Novalis,
  Friedrich Leopold Freiherr von Hardenburg, dito. Poeta alemão,
  autor de Hinos à noite e Aforismos.  
[17] Verlaine, Paul (1844-1896), poeta
  francês, autor de Romances sans paroles (Romances sem palavras)
  e Sagesse (Prudência).  
[18] Milton, John. Poeta e dramaturgo inglês,
  autor de Paradise lost (Paraíso perdido) e Adam unparadised
  (Adão expulso do paraíso).  
[19] “Que teu verso seja a boa aventura /
  esparsa ao vento crispado da manhã / que vai florindo o timo e a hortelã / E
  todo o resto é literatura.”  
[20] Unamuno, Miguel de (1854-1936), poeta
  espanhol, autor de Rimas de dentro e Romancero del destierro (Romanceiro
  do desterro).  
[22] Darío, Rubén (1867-1916), poeta
  nicaragüense, autor de Prosas profanas e Cantos de vida y esperanza.
   
[23] Neruda, Pablo (1903-1973), poeta
  chileno, autor de Residencia en la tierra (Residência na terra)
  e Odas elementales (Odes elementares).  
[24] Poe, Edgar Allan, poeta e ficcionista
  estadunidense, autor de The narrative of Arthur Gordon Pym (A
  narrativa de Arthur Gordon Pym) e Eureka.  
[26] Hofmannsthal, Hugo von. Poeta e
  romancista alemão, autor de Brief des Lord Chandlos (Carta do Lord
  Chandlos) e Der Schwierige (O homem difícil).  
[29] Compadre. Nome dado a um tipo
  rixento e presunçoso da classe baixa, espécie de valentões de periferia.  | 
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JORGE
  LUIS BORGES
  é uma histórica entrevista realizada pela grande poeta argentina Alejandra
  Pizarnik (1936-1972) e sua amiga Ivonne A. Bordelois. Foi publicada em
  Caracas, nas páginas da excelente revista que fundou e dirigiu por mais de
  dez anos o poeta venezuelano Juan Liscano (1915), Zona Franca
  (setembro de 1964), que teve a gentileza de me enviar este precioso exemplar.
  A presente tradução integra o volume, ainda inédito, Memória de Borges (um
  livro de entrevistas) [Organização, tradução, prólogo e notas de Floriano
  Martins]. | 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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