domingo, 27 de março de 2011

Truman Capote: Nem tudo é verdade, apesar de verdadeiro Por Matinas Suzuki Jr.


Truman Capote: Nem tudo é verdade, apesar de verdadeiro
Por Matinas Suzuki Jr.

O prazo parece descomunal para o jornalismo de nossos dias, mas o editor William Shawn e a revista The New Yorker esperaram seis anos para Truman Capote entregar a primeira versão de A sangue frio. Em novembro de 1959, Capote, que estava em dívida com a revista (recebera um grande adiantamento para uma reportagem sobre a vida na Rússia da Guerra Fria e não escrevera a matéria), leu nas páginas internas do The New York Times a notícia em uma coluna do assassinato de um fazendeiro e sua família em algum lugar remoto do estado do Kansas. Em princípio, o título da notícia não despertou interesse especial em Capote. Mas, depois de remoer a história em sua cabeça por um dia e meio, viu ali a oportunidade que procurava para realizar um projeto que marcaria para sempre as relações entre o jornalismo e a literatura.
Truman Capote, A sangue frio e a revista The New Yorker ficariam unidos para sempre na história das letras americanas, mas a relação entre os três esteve longe de ser um convescote. Em 1942, um belo jovem de cabelos dourados, vestindo roupas exóticas, desfilando com passos de bailarina pelos corredores e com uma visão cínica do pessoal da redação, Capote trabalhou como contínuo e apontador de lápis no departamento de arte da revista. Harold Ross, o fundador e publisher da The New Yorker, muito conservador no governo interno (não gostava, por exemplo, que mulheres trabalhassem na redação), perguntou na primeira vez em que viu a figura: "O que é isso?". Diz a lenda que Capote, encarregado de abrir a correspondência da revista, escondia debaixo da mesa os desenhos que chegavam pelo correio e que ele julgava sem qualidade para serem impressos nas páginas da publicação - famosa pelos cartuns e ilustrações (anos mais tarde, ele disse que isso não era verdade).
O jovem Truman Capote foi cortado da revista em 1944 porque teria se apresentado, sem autorização, como representante dela na Conferência de Escritores de Bread Loaf e desrespeitado o consagrado poeta Robert Frost (este achou que Capote caiu ao dormir durante a leitura de seus poemas; Capote dizia que havia sido picado no tornozelo por um mosquito e que despencou ao tentar se coçar). Frost, fechando o livro, protestou: "Se é assim que a New Yorker encara a minha poesia, vou parar a leitura". E retirou-se do lugar onde lia os poemas. Harold Ross recebeu de um antigo colaborador o relato do que ocorrera na Bread Loaf (ele dizia que Capote abandonara a sala durante a leitura de Frost). Em setembro de 1944, escreveu ao poeta declarando que Truman não fora enviado pela revista e que tinha vontade de pedir desculpas, mas não o fazia por não se sentir responsável pelo comportamento de Capote.
Segundo Truman Capote, Ross lhe pediu explicações, mas ele deu de ombros, uma vez que estava em férias e bancando suas próprias contas. Era o fim de seu primeiro capítulo com a The New Yorker. Anos depois, Capote declararia que se dava bem com Harold Ross, mas há muitas evidências de que, do lado de Ross, a coisa não era bem assim. Em 1947, ele escreveu em um dos memorandos ao editor Gus Lobrano: "Se Capote é grande, então vou embora do país". Mas, em 1949, depois de Capote ter ficado conhecido tanto pelos primeiros contos publicados quanto pelo seu primeiro livro (Others voices, others rooms), Katharine White, editora de ficção da revista e mulher do mestre do estilo E. B.White, ficou impressionada com um texto dele "Shut a final door" e ponderou a Ross: "Somos tolos de fechar os olhos para Capote só porque ele tem um caráter questionável". Em 27 de julho de 1949, Ross, atendendo a Katharine White, enviou outro memorando a Lobrano. Dessa vez, lembrava-o de pedir a alguém que ligasse para a agente de Truman e dissesse que a The New Yorker estava interessada em dar uma olhada em qualquer texto de Capote que não fosse "muito psicótico".
Harold Ross não viveu para ver isso (morreu em 1951), mas o tempo dado a Truman Capote para escrever A sangue frio, autopromovido pelo autor como o primeiro romance de não-ficção (ou sem ficção, como prefere Ivan Lessa na apresentação deste volume), revela muito da filosofia editorial da The New Yorker e do tipo de jornalismo que ele, Ross, e William Shawn procuravam publicar. Uma das grandes sacadas da dupla foi ter percebido que havia uma sedutora zona cinzenta entre o jornalismo e a literatura - e ter feito dessa área de névoas um dos pilares editoriais de uma publicação de periodicidade semanal. Para Shawn, interessavam pouco os detalhes, a descrição ou mesmo a violência do crime "naquelas planícies plantadas de trigo do oeste do Kansas". Como editor de uma revista que precisava publicar mais do que fatos, ele queria uma história que mostrasse os efeitos do crime, "a história de uma pequena cidade do Meio-Oeste respondendo a uma catástrofe sem precedentes", como disse Brendan Gill, autor do livro Here at New Yorker (uma brincadeira com o livro de E. B.White, Here at New York, traduzido para o português por Ruy Castro, com o título de Aqui está Nova York). Para ter um relato definitivo sobre como um trauma pode marcar as experiências humanas em um lugar provinciano, num momento em que a América explodia em conflitos sociais, Shawn poderia muito bem esperar mais de meia década.
Não deixa de ser curioso que, apesar de A sangue frio ter se tornado um dos maiores sucessos de venda em bancas da história da The New Yorker e um marco do jornalismo literário do século passado, muita gente na revista não ficou satisfeita com a série publicada em quatro edições seqüenciais, a primeira parte saindo em 25 de setembro de 1965. Renata Adler, que trabalhou durante trinta anos na publicação, recorda que foi até Shawn reclamar. Para ela, o relato violava princípios fundamentais do semanário, era sensacionalista e alguns de seus elementos cruciais pareciam sem sentido e falsos. "Ele não pareceu concordar ou discordar, nem mesmo desejar que eu deixasse sua sala", escreveu Adler em seu livro sobre a The New Yorker. William Shawn, apesar de homenageado no prefácio da edição em livro - que saiu em tempo recorde, três meses depois da publicação da série na revista - não ficou mesmo satisfeito com o resultado do trabalho de Capote. Brendan Gill disse que ele "teria relutado em dizer para Truman ir em frente se soubesse que A sangue frio seria o que acabou provando ser". Ben Yagoda, que examinou as laudas datilografadas do relato de Capote comentadas nas margens por Shawn, sugere em seu livro About town que as cenas violentas do texto e a falta de provas em algumas passagens devem ter chateado o editor, mas afirma que dificilmente essas preocupações foram discutidas com o autor. Vinte anos depois, em um almoço no Algonquin Hotel, localizado em frente ao prédio da antiga redação da The New Yorker, Bill Shawn disse a seu editor assistente Charles McGrath que lamentava ter publicado A sangue frio. Mas não explicou por quê. 

Truman Capote levou seis anos para escrever A sangue frio porque, dizia, não poderia terminá-lo sem saber o destino dos acusados. O final do livro - e das vidas de Richard Hickock e Perry Smith - seriam momentos marcantes também em sua vida (ele conta que foi tão difícil escrever as últimas seis ou sete páginas que sua mão ficou paralisada. Ele escrevia à mão). Capote não poderia assistir ao enforcamento dos dois, mas Hickock e Smith o indicaram como uma das três testemunhas a que tinham direito. Truman Capote foi o confidente dos dois ao longo dos anos de cárcere. Na véspera da execução, pediram para estar com ele pela última vez. Capote desmontou. Disse ao diretor das penitenciárias do Kansas, Charles McAtee, que estava tão perturbado emocionalmente que não conseguiria vê-los. Joe Fox, editor de Capote na Random House, conta no livro de depoimentos Truman Capote, organizado por George Plimpton, que um funcionário da prisão ligava e dizia que Perry e Dick estavam no escritório dele e queriam falar com Capote. "Truman respondia 'eu não consigo fazer isso'. Estava às lágrimas boa parte do tempo. Não dormia", relatou Fox. À noite, finalmente, mudou de idéia e foi ver os principais personagens de seu livro na antecâmara da morte.
De pé, junto das outras dezenove testemunhas, Truman Capote assistiu ao enforcamento de Richard Hickock (até o último momento, Hickock dizia ter participado da ação do crime, mas que não havia matado ninguém). Bennet Cerf, um dos fundadores da Random House, contou várias vezes que Capote teve náuseas e vomitou durante a primeira execução. À segunda, o autor não conseguiu assistir. Escapou da sala antes de Perry Smith ser enforcado. Havia uma grande empatia entre o personagem real, Smith, e o escritor Capote. Os policiais estavam certos que os dois eram amantes e que Truman subornava guardas para encontrar Smith. Joe Fox disse que, no avião, de volta para Nova York, Capote segurou sua mão e chorou durante quase toda a viagem. 

Em uma longa entrevista concedida a George Plimpton, publicada no suplemento de livros do The New York Times em 16 de janeiro de 1966, Truman Capote expôs o método de trabalho para chegar ao que batizou de "romance de não-ficção" (ou "sem ficção"). Ele dizia ter se inspirado nos escritos, entre outros, de Lillian Ross (sobretudo em Picture, a grande reportagem escrita enquanto John Huston rodava The red badge of courage) e Joseph Mitchell. Ele já havia realizado, cerca de dez anos antes, uma tentativa no gênero para a mesma The New Yorker, quando acompanhou a ida de uma montagem da ópera Porgy and Bess à União Soviética, naquela que foi a sua primeira incursão jornalística. Mas, em A sangue frio, a técnica estava madura:
1) Capote entrevistou por longo tempo um grande número de pessoas sem fazer anotações ou gravá-las. Segundo ele, a anotação e a gravação prejudicam o tempo dedicado à observação dos personagens e do ambiente, e intimidam os entrevistados, que perdem a naturalidade e deixam de fazer revelações importantes. Gay Talese, outro expoente do jornalismo literário, também condena o uso do gravador e das anotações na frente do entrevistado. Capote dizia ter treinado com um amigo uma técnica de prestar atenção absoluta ao que ouvia (o amigo lia longos trechos de um livro em voz alta, e depois Capote, qual um "fotógrafo literário", tentava reproduzir literalmente o trecho lido). Ele gabava-se de conseguir cerca de "95% de total precisão".
2) Como no texto jornalístico que se pretende objetivo, Capote evitou cuidadosamente evidenciar o autor na narrativa, esquivando-se das interpretações e dos comentários, em um procedimento que Chris Anderson chamou de "retórica do silêncio", a "renúncia ao privilégio da intervenção direta". Sob esse aspecto, ele diferenciava-se de outros expoentes do jornalismo literário, como Norman Mailer, que se colocava como personagem do que escrevia. Capote: "Acredito que, para a forma do romance de não-ficção ser inteiramente bem-sucedida, o autor não deve aparecer na obra".
3) Grande investimento de tempo no trabalho de pesquisa, na apuração dos dados e em entrevistas. Capote dizia ter feito investigações em mais de 8 mil páginas, incluindo aí os longos depoimentos compilados pela justiça. Ele refez o percurso de fuga de Richard Hickock e Perry Smith até a prisão em Las Vegas. Entrevistou as mesmas pessoas várias vezes, ao longo de três anos. A princípio, não só a provinciana população local, atemorizada pela violência do crime e ressabiada com a presença bizarra e cheia de perguntas de Truman Capote, não colaborou, como também os acusados Rick e Perry recusaram-se a falar (os detratores de Truman dizem que ele pagou cinqüenta dólares a cada um para conseguir um bate-papo inicial). Ao longo dos anos, gastou centenas de horas conversando exaustivamente com os mesmos personagens. E levou bastante a sério o trabalho de bater perna atrás de informação, exercitando incansavelmente o chamado mergulho em profundidade no tema, que é um dos procedimentos requeridos pelo melhor jornalismo literário.
O relato de Truman Capote entraria para a história das relações entre jornalismo e literatura, mas boa parte da sua grande reputação veio das polêmicas que gerou (em geral, mesmo aqueles que foram mais reticentes com A sangue frio não deixam de reconhecer que o texto tem dramaticidade e é muito bem escrito). Entre a série de reações negativas, três se destacam.
A primeira nasce do fato de ele ter dito que inaugurou um novo gênero, o romance de não-ficção. Vários caminhões de tinta e papel de jornais, revistas e livros foram utilizados para provar que, longe de ser um inventor, ele era o continuador de um gênero com ampla tradição nas letras anglo-saxônicas.
A segunda polêmica girou em torno de uma questão moral e teve no influente e bom-de-texto crítico teatral inglês Kenneth Tynan o principal sparring de Truman naquele momento. Tynan (e alguns outros) achavam que Capote, ao longo dos anos cobrindo os desdobramentos legais do crime, teve tempo, dinheiro e influência suficientes para provar a insanidade mental dos dois e, assim, evitar que Richard Hickock e Perry Smith fossem à forca. A execução seria uma atração adicional para o relato e Capote estava sendo acusado de se beneficiar, literária e financeiramente, da morte dos criminosos de Holcomb. "Pela primeira vez, um escritor influente do primeiro time foi colocado em posição de intimidade privilegiada com criminosos prestes a morrer, e - na minha maneira de ver - fez menos do que poderia para salvá-los", escreveu Tynan, na edição de 13 de março de 1966 do jornal The Observer. E completou: "Não há prosa que valha uma vida humana". (Tynan tinha uma implicância renitente com Truman, como se vê pelas várias observações a respeito em seus diários. Ved Mehta, à época colaborador da The New Yorker, relembra que encontrou Tynan em Londres, em 1965, e ele lhe disse que ia esculhambar A sangue frio de uma maneira "que todo mundo saberia, de Londres a Los Angeles". Passados alguns anos, na primeira vez que Tynan e Truman se reencontraram pessoalmente depois da resenha no Observer, Capote pôde mostrar ao inglês um pouco de sua ironia. Segundo relato de Kathleen, mulher de Tynan, o casal caminhava pelo corredor de um hotel em Nova York, quando viu que Capote vinha na direção deles. Kenneth balançou ligeiramente a cabeça para cumprimentá-lo. Truman respondeu: "Mr. Tynan, I presume", e seguiu adiante.) Capote defendeu-se das acusações. Uma das pessoas mais veementes a ficar a seu lado foi a crítica do The Nation Diana Trilling, que enviou uma carta ao Observer dizendo que a única obrigação moral do escritor com os assassinos era contar a história deles. Segundo Trilling, o jornal não publicou nenhuma das respostas à resenha de Tynan enviadas para a redação.
Mas a mais barulhenta polêmica se deu em torno da fidelidade de A sangue frio aos fatos realmente ocorridos naquela noite no Kansas. Em outras palavras, discutia-se o que era jornalismo e o que era ficção em A sangue frio. A polêmica, na verdade, começou com o próprio Capote dizendo, na entrevista a George Plimpton, que seu método, inspirado na reportagem jornalística, era "imaculadamente factual". Vários personagens citados em A sangue frio questionaram a falta de precisão nas transcrições dos depoimentos e na descrição do envolvimento deles nos fatos. Um autor, Philip K. Tompkins, dedicou-se a pesquisar discrepâncias entre passagens do livro e o que ele diz ter apurado como fatos reais. No seu artigo "In cold fact" ("A fato frio"), ele conclui que Capote pôs suas próprias observações na boca e na cabeça dos personagens, e, para piorar, criou um retrato irreal e romântico do assassino Perry Smith - o qual o crítico Harold Bloom, que alega ficar deprimido com a "imaginativa sublimação da identificação de Capote com os assassinos", afirma ser o "demônio ou outro eu de Capote".
Quando Capote fez a sua primeira reportagem para a The New Yorker depois da viagem à Rússia, foi acusado por Nancy Ryan, que estava com ele, de ter inventado uma passagem importante do relato. Mas a própria Ryan admitia que "ele não destruiu a verdade básica ou o espírito genuíno do todo". Segundo Ben Yagoda, como a revista tinha cuidado especial com a veracidade do que publicava, decidiu enviar um checador veterano para o Kansas. E ele afirmou que nunca vira um autor tão preciso nas apurações. Truman Capote dizia que as pessoas reclamavam porque é muito difícil fazer o perfil em profundidade de alguém sem, em certo grau, ofender este alguém. "A verdade parece ser que ninguém gosta de se ver descrito como realmente é", explicou a George Plimpton. 

A questão da veracidade factual é uma das mais críticas no jornalismo literário. No caso de A sangue frio, porém, há uma nuance especial. Diferentemente de outros autores considerados representativos do jornalismo literário - Tom Wolfe, Gay Talese, John Hersey, Joseph Mitchell, Lillian Ross -, Truman Capote nunca fez do jornalismo a sua principal atividade profissional. Foi sempre basicamente um escritor, um escritor que vislumbrou nas técnicas jornalísticas a possibilidade de trabalhar com uma dimensão diferente da ficção convencional. Tom Wolfe lembra que Capote nunca chamou seu relato de jornalismo; "longe disso: ele disse ter inventado um novo gênero". Mesmo assim, Wolfe incluiu trechos de A sangue frio em sua antologia do new journalism (foi o único texto publicado na The New Yorker, o veículo por excelência do jornalismo literário, a ser selecionado para esse livro).
Os bons jornalistas literários se dizem menos interessados na exatidão das palavras de suas entrevistas - como faz o jornalismo rotineiro - do que em vislumbrar os sentidos mais profundos mascarados pelas palavras dos entrevistados. Eles pretendem traçar o perfil da "alma" de seus personagens. Na introdução ao trecho de A sangue frio que incluiu na antologia The art of the fact [A arte do fato], Ben Yagoda diz que a questão do factual jamais será inteiramente resolvida na literatura de não-ficção, "mas é inegável que Capote, com o seu ouvido de romancista, ouviu o que seus personagens poderiam ter dito e transcreveu isso mais fielmente do que qualquer jornalista antes ou depois".

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