sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O Médico e o Monstro por Vladimir Nabokov



O Médico e o Monstro
por Vladimir Nabokov



Mais do que uma trama policial ou de mistério, “O Estranho Caso de Dr. Jekylle Mr. Hyde” é uma fábula que flerta com o poético. A Cosac Naify está reeditandoo romance de Robert Louis Stevenson como parte da coletânea “O Clubedo Suicídio”, que reúne seis histórias do autor escocês.
por Vladimir Nabokov

REVISTA BRAVO - Edição 166 - Julho 2011

O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde foi escrito na cama em 1885, em Bournemouth, no canal da Mancha [Inglaterra], entre uma e outra hemoptise, sendo publicado em janeiro de 1886. Dr. Jekyll é um médico gordo e bonachão, não isento de fraquezas humanas, que vez por outra, usando uma poção, se projeta (ou se concentra, se precipita) num indivíduo malévolo e brutal chamado Hyde, sob cuja personalidade comete uma série de crimes. Durante algum tempo, é capaz de retomar a personalidade original de Jekyll – há uma droga para ir e outra para voltar –, porém gradualmente a parte melhor de sua natureza se enfraquece até que, por fim, a poção que lhe permite voltar a ser Jekyll falha e ele se envenena quando está prestes a ser desmascarado. Essa é a essência da trama.
E eis aqui minha principal recomendação: por favor, trate completamente de esquecer, deslembrar, apagar, desaprender, jogar no lixo qualquer noção que você possa ter de que Jekyll e Hyde seja uma espécie de história ou filme de mistério ou de detetive. Não há a menor dúvida de que o pequeno romance de Stevenson é um dos ancestrais das modernas histórias de mistério. Mas essas narrativas modernas são a própria negação do estilo, constituindo, na melhor das hipóteses, exemplos de literatura convencional. A história de Stevenson – Deus guarde sua alma pura – é defeituosa como história de detetive. Nem é uma parábola ou alegoria, pois seria de mau gosto como uma ou outra. Ela tem, contudo, um encanto próprio se a considerarmos como um fenômeno estilístico. Não é apenas uma boa “história de terror”, como Stevenson exclamou ao despertar de um sonho em que a visualizara (...). É também, e com maior importância, “uma fábula que está mais próxima da poesia do que da prosa comum” [segundo o biógrafo irlandês Stephen Gwynn], pertencendo assim à mesma categoria artística, por exemplo, dos romances Madame Bovary ou Almas Mortas.
Lê-se esse livro como quem bebe um bom vinho; na verdade, ao longo da história se bebe um volume notável de vinho de boa qualidade (...). Cintilante e reconfortante, esse líquido é muito diferente do reagente mágico que Jekyll prepara em seu poeirento laboratório e que, ao provocar o efeito camaleônico, causa pontadas gélidas de dor. Tudo é relatado de modo muito apetitoso. Gabriel John Utterson [um dos personagens da trama], que mora na Gaunt Street, pronuncia as frases de forma voluptuosa; há um toque gostoso no friozinho matinal de Londres e certa riqueza de tons na descrição das horríveis sensações que Jekyll sofre durante o processo de metamorfose. Stevenson dependeu muito de seu poder estilístico para executar o truque que lhe permitiu superar as duas dificuldades principais com que se defrontava: 1. Fazer da poção mágica uma droga plausível com base em ingredientes usados por qualquer químico; e 2. Dar credibilidade ao lado mau de Jekyll antes e depois das “hydeizações”. (...)
Os nomes Jekyll e Hyde são de origem escandinava, e suspeito que Stevenson os extraiu da mesma página de um velho livro sobre nomes de família onde também fui procurá-los. Hyde vem do anglo-saxão hyd, que corresponde ao dinamarquês hide, ou haven em inglês [algo como “refúgio” em português]. Jekyll vem do nome dinamarquês Jökulle, que significa “pingente de gelo”. Desconhecendo tais derivações simples, seria natural encontrar todo tipo de significados simbólicos nesses sobrenomes, especialmente em Hyde, sendo o mais óbvio o de que se trataria de um local onde o Dr. Jekyll se escondia, no qual o alegre médico e o assassino se combinavam.
Como o livro é pouco lido, três pontos importantes costumam se perder completamente quando a história é lembrada, a saber:
1. Jekyll é bom? Não, ele é um ser composto, uma mescla do bem e do mal, um preparado com 99% de “jekyllita” e 1% de “hydita” (ou “hidátide”, do grego “água”, que em zoologia significa um quisto no corpo de um homem e outros animais contendo um fluido límpido com larvas de vermes – um arranjo delicioso, ao menos para os vermes. Assim, Mr. Hyde é de certo modo um parasita do Dr. Jekyll, porém devo deixar claro que Stevenson não sabia disso ao escolher o nome). A postura moral de Jekyll é sofrível quando julgada pelos padrões vitorianos. Trata-se de um hipócrita, que oculta cuidadosamente seus pecadilhos. É vingativo (...). É imprudente. Hyde está misturado a ele, está dentro dele. Nessa mistura de bem e de mal que existe no Dr. Jekyll, o mal pode ser separado sob a forma de Hyde, que é um precipitado de maldade pura, precipitado no sentido químico, uma vez que algo do Jekyll composto permanece presente ao se horrorizar com as ações de Hyde.
2. Jekyll realmente não se transforma em Hyde, e sim projeta um concentrado de maldade pura que se torna Hyde – mais baixo do que Jekyll, um homem grandalhão, para indicar o maior volume de bem que Jekyll possui.
3. Na verdade, existem três personalidades: Jekyll, Hyde e uma terceira, o resíduo de Jekyll quando Hyde assume o controle. (...)
Gostaria de dizer, ainda, algumas palavras sobre os últimos momentos de Stevenson. (...) Há algo na morte do autor, em 1894, que de forma curiosa imita os temas do vinho e da transformação presentes em sua fantasia. Ele acabara de apanhar no porão e abrir na cozinha uma garrafa de seu Borgonha predileto quando de repente gritou para sua mulher: “O que que há comigo? Que coisa estranha é essa? Meu rosto mudou?” E caiu no chão. Uma veia estourara em seu cérebro, tudo terminou em poucas horas.
Vladimir Nabokov (1899-1977), ficcionista norte-americano de origem russa, escreveu os romances Lolita e Fogo Pálido, entre outros. Traduzido por Jorio Dauster, o ensaio publicado nesta edição é parte de uma aula que Nabokov ministrou na Universidade Cornell, em Ithaca (Estados Unidos). O texto completo encontra-se na coletânea O Clube do Suicídio.
http://bravonline.abril.com.br/materia/classico-do-mes-o-medico-e-o-monstro

2 comentários:

Willians disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Willians disse...
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