terça-feira, 26 de junho de 2012

FERREIRA GULLAR, ALGUNS POEMAS


FERREIRA GULLAR, ALGUNS POEMAS
Trecho de Poesia completa, teatro e prosa, de Ferreira Gullar
Poemas inéditos em livro


Publicado no Suplemento Dominical do Diário de Pernambuco,em 1950.

Soneto para a mão direita de São Francisco
(edição de 30/04/1950)

Estranha mão que sobre mim te espalmas,
Limpa como os primeiros sofrimentos,
Procura adormecer meus pensamentos
Com essa tua ternura de águas claras,
Essa mansa canção de gestos lentos,
Mão que salvaste pássaros e almas,
Afaga as minhas mãos, em cujas palmas
Crescem desejos de estrangulamentos.
E me salva estas mãos de magros dedos:
Mostra-lhes a beleza dos martírios,
Na renúncia do gozo e dos brinquedos.
E todos vejam, quando enfim desfeitas,
As mãos do poeta rebentando em lírios,
Lírios: (carícias que não foram feitas)
São Luís do Maranhão, 1950

Publicado na revista Afluente (de São Luís do Maranhão), nº 4, junho de 1950.
O mirante
Por detrás das ruas
e por cima das casas
e das árvores,
o mirante me espreita
(sinto que me espreita)
Uma flor vermelha
nasce da penumbra
brota na janela.
Mas só eu percebo
que uma flor vermelha
brota na janela.
Voz, cabelos, lágrimas,
lábios, mãos me afagam,
poderosos e ásperos.
(o mirante espreita
meus mínimos gestos).
Desconheço a estranha
louca atmosfera
que força as paredes
sujas do mirante.
Talvez na parede
permaneça o vulto
de seu corpo ausente
cujas grossas coxas
se desenvolveram
silenciosamente
dias, dias, dias,
dentro do mirante.
Talvez lá se encontrem
vestígios que guardem
essa que tornou
ao mar que a trouxera
Desconheço a angústia
que alucina as sombras
dentro do mirante.
Ou talvez me engane?
Penso num mirante
deserto e pacífico
onde um vento fresco
despetala um livro
com dedicatória,
lido e abandonado.
Súbita alvorada:
a estancada seiva
rompe as tábuas podres.
Então crescem plantas
sob o teto escuro
como num canteiro
bem alimentadas
pelo assoalho fértil.
Certo dormem pássaros
nos seus ramos tenros
que vertem silêncio
Quem no escuro assiste
ao escoar da noite
dentro do mirante?
quem observa a lua?
quem suporta os gritos
dentro do mirante?
Meus pés desconhecem
o morno contato
desse chão fecundo.
Mas que outros devassem
o enigma que
sustenta o mirante.
Quero imaginá-lo
como necessito.
Basta a flor vermelha
que ninguém percebe
cantar na janela
e a mim se transmite
a energia poética
tensa, que circula
dentro das paredes
sujas do mirante.
São Luís do Maranhão, 11/03/1950


Publicado no jornal Folha de S. Paulo, 12/06/1994.

O gol
A esfera desce
Do espaço
Veloz
Ele a apara
No peito
E a pára
No ar
Depois
Com o joelho
A dispõe à meia
Altura onde
Iluminada
A esfera espera
O chute
Que
Num relâmpago
A dispara
Na direção
Do nosso
Coração

Poemas publicados no jornal O Globo, caderno Prosa & Verso, 02/09/2000.

Nova canção do exílio
Para Cláudia

Minha amada tem palmeiras
Onde cantam passarinhos
e as aves que ali gorjeiam
em seus seios fazem ninhos
Ao brincarmos sós à noite
nem me dou conta de mim:
seu corpo branco na noite
luze mais do que o jasmim
Minha amada tem palmeiras
tem regatos tem cascata
e as aves que ali gorjeiam
são como flautas de prata
Não permita Deus que eu viva
perdido noutros caminhos
sem gozar das alegrias
que se escondem em seus carinhos
sem me perder nas palmeiras
onde cantam os passarinhos

Estranheza do mundo
Para Cláudia

Olho a árvore e indago:
está aí para quê?
O mundo é sem sentido
quanto mais vasto é.
Esta pedra esta folha
este mar sem tamanho
fecham-se em si, me
repelem.
Pervago em um mundo estranho.
Mas em meio à estranheza
do mundo, descubro
uma nova beleza
com que me deslumbro:
é teu doce sorriso
é tua pele macia
são teus olhos brilhando
é essa tua alegria.
Olho a árvore e já
não pergunto "para quê"?
A estranheza do mundo
se dissipa em você.

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