DEBAIXO DA
MINHA JANELA
ELIAS RIBEIRO PINTO
COLUNA DESTA TERÇA (14/10/14) NO JORNAL DIÁRIO DO PARÁ
“Vocês vão fazer isso aqui
mesmo?”
1
“Eu juro, não vou te enganar. Olha, pode segurar a minha bolsa. Eu vou, tomo um
café, troco o dinheiro, e fico com quinze.”
2
“Não vai mesmo? Olha, eu tenho cinco trocado. Não pode ser?”
3
“Não, cinco não vale. Acredita em mim. Estou dizendo, fica com a minha bolsa.
Agora, se fores embora, vou atrás de ti, faço um escândalo.”
4
“Então prometes que trocas e trazes o resto de volta?”. “Juro, pelo amor da
minha filha.”
5
O diálogo acima (ou ao menos a tentativa de reprodução que dele tentei esboçar)
aconteceu bem debaixo da janela de casa. Era por volta das quatro da madrugada,
já no domingo do Círio.
6
A rua em que moro, a Ferreira Cantão, é daquelas que uma atendente novata de
pizzaria, ao anotar a solicitação, pede para confirmar o endereço. “Fica entre
o quê?” “Entre Caetano Rufino e Silva Santos”, respondo. O que era para
esclarecer, situar o perímetro, torna ainda mais confusa a localização para a
mocinha ao telefone. Mas ela não desiste: “Em que bairro, senhor?” “Campina”,
respondo, já com pena, mas tentando ver até onde vai sua resistência. Ela então
joga a toalha. “O senhor pode me dar alguma referência?”
7
Apesar de estar situado no centro de Belém, as ruas do bairro da Campina,
Ferreira Cantão, Silva Santos, Caetano Rufino, rua dos 48, ainda soam
desconhecidas para os atendentes de entrega de pizza, de açaí. Já houve quem
confundisse o nome do bairro com um homônimo, em Icoaraci. Só quando digo que
fica perto do Hilton, por trás do Olympia, sinto que se faz luz do outro da
linha.
8
Pois na madrugada de domingo do Círio a Ferreira Cantão, em geral uma rua
quieta, principalmente no ermo das noites, quando as ruas centrais da cidade
perdem o burburinho constante da gente que circula em torno de bancos, de
prédios públicos, da vida que se faz diariamente no centro, naquela madrugada o
movimento, intenso, fugia da rotina, da quietude.
9
Afinal, da noite da trasladação até o amanhecer com a procissão do Círio, a
circulação não cessa, de carros (por causa do trânsito interrompido mais acima,
na Presidente Vargas), de gente. E de cenas, digamos, paralelas, como se
acontecessem nos bastidores da grande festa religiosa (e profana).
10
Naquela noite, madrugada chegando, já tinha visto, lá na esquina, um casal que
se arrochava, daquele que quando alguém passa, de carro, grita: “Paga motel!”.
Em outro momento, uma mulher, conhecida na área, fumadora de crack, tossia
desesperadamente no meio-fio, buscando ar, como num acesso de asma. E aí fui
dormir.
11
Até que mais tarde, já por volta das quatro da madrugada, acordei com o diálogo
transcrito no início desta coluna, bem embaixo da minha janela. Logo percebi
que se tratava, digamos, de um acerto de contas. Acertava-se o valor de um
serviço sexual. Era, afinal, uma transação (anexar o trocadilho) de livre
mercado, lei de oferta e procura, de demanda reprimida, toma lá, dá cá.
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Aguardei que chegassem a um “denominador comum” e enfim partissem rumo a um dos
motéis baratos que abundam (sem anexar trocadilho) aqui na região. No entanto,
para minha surpresa, definidos os valores, o acerto parecia que ia se consumar
ali mesmo.
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Não acreditei. Levantei, abri e janela e me deparei com a cena que nem Dante
aceitaria liberar o adjetivo dantesco para descrevê-la. A mulher (a ouvi dizer,
um pouco antes, que de costas não, que se machucaria), já de quatro, se
oferecia ao homem, branco, parecendo um trabalhador, ou saído ou a caminho do
emprego, que arriava as calças. “Vocês vão fazer isso aqui mesmo?”,
surpreendi-os. Desnorteado, ele levantou as calças e disse, à guisa de
desculpa: “Vamos que a gente está incomodando”. Ela, depois do susto, saiu
imprecando: “A gente não pode nem trabalhar em paz”. Era a mesma que há pouco
se esganiçava, roncando em busca de ar. Só faltou que ele, antes de consumar o
“intercurso canino”, fizesse uma selfie pornô. Selfie dantesca. Perdoa aí,
Dante. E assim caminha a humanidade, se aliviando pela rua como cachorros.
14
E ele se foi com ela fazendo um escândalo às suas costas, como havia prometido.
https://www.facebook.com/elias.ribeiropinto/posts/10202997772526909
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