quarta-feira, 15 de outubro de 2014

DEBAIXO DA MINHA JANELA ELIAS RIBEIRO PINTO



DEBAIXO DA MINHA JANELA
ELIAS RIBEIRO PINTO


COLUNA DESTA TERÇA (14/10/14) NO JORNAL DIÁRIO DO PARÁ
“Vocês vão fazer isso aqui mesmo?”
1 “Eu juro, não vou te enganar. Olha, pode segurar a minha bolsa. Eu vou, tomo um café, troco o dinheiro, e fico com quinze.”

2 “Não vai mesmo? Olha, eu tenho cinco trocado. Não pode ser?”

3 “Não, cinco não vale. Acredita em mim. Estou dizendo, fica com a minha bolsa. Agora, se fores embora, vou atrás de ti, faço um escândalo.”

4 “Então prometes que trocas e trazes o resto de volta?”. “Juro, pelo amor da minha filha.”

5 O diálogo acima (ou ao menos a tentativa de reprodução que dele tentei esboçar) aconteceu bem debaixo da janela de casa. Era por volta das quatro da madrugada, já no domingo do Círio.

6 A rua em que moro, a Ferreira Cantão, é daquelas que uma atendente novata de pizzaria, ao anotar a solicitação, pede para confirmar o endereço. “Fica entre o quê?” “Entre Caetano Rufino e Silva Santos”, respondo. O que era para esclarecer, situar o perímetro, torna ainda mais confusa a localização para a mocinha ao telefone. Mas ela não desiste: “Em que bairro, senhor?” “Campina”, respondo, já com pena, mas tentando ver até onde vai sua resistência. Ela então joga a toalha. “O senhor pode me dar alguma referência?”

7 Apesar de estar situado no centro de Belém, as ruas do bairro da Campina, Ferreira Cantão, Silva Santos, Caetano Rufino, rua dos 48, ainda soam desconhecidas para os atendentes de entrega de pizza, de açaí. Já houve quem confundisse o nome do bairro com um homônimo, em Icoaraci. Só quando digo que fica perto do Hilton, por trás do Olympia, sinto que se faz luz do outro da linha.

8 Pois na madrugada de domingo do Círio a Ferreira Cantão, em geral uma rua quieta, principalmente no ermo das noites, quando as ruas centrais da cidade perdem o burburinho constante da gente que circula em torno de bancos, de prédios públicos, da vida que se faz diariamente no centro, naquela madrugada o movimento, intenso, fugia da rotina, da quietude.

9 Afinal, da noite da trasladação até o amanhecer com a procissão do Círio, a circulação não cessa, de carros (por causa do trânsito interrompido mais acima, na Presidente Vargas), de gente. E de cenas, digamos, paralelas, como se acontecessem nos bastidores da grande festa religiosa (e profana).

10 Naquela noite, madrugada chegando, já tinha visto, lá na esquina, um casal que se arrochava, daquele que quando alguém passa, de carro, grita: “Paga motel!”. Em outro momento, uma mulher, conhecida na área, fumadora de crack, tossia desesperadamente no meio-fio, buscando ar, como num acesso de asma. E aí fui dormir.

11 Até que mais tarde, já por volta das quatro da madrugada, acordei com o diálogo transcrito no início desta coluna, bem embaixo da minha janela. Logo percebi que se tratava, digamos, de um acerto de contas. Acertava-se o valor de um serviço sexual. Era, afinal, uma transação (anexar o trocadilho) de livre mercado, lei de oferta e procura, de demanda reprimida, toma lá, dá cá.

12 Aguardei que chegassem a um “denominador comum” e enfim partissem rumo a um dos motéis baratos que abundam (sem anexar trocadilho) aqui na região. No entanto, para minha surpresa, definidos os valores, o acerto parecia que ia se consumar ali mesmo.

13 Não acreditei. Levantei, abri e janela e me deparei com a cena que nem Dante aceitaria liberar o adjetivo dantesco para descrevê-la. A mulher (a ouvi dizer, um pouco antes, que de costas não, que se machucaria), já de quatro, se oferecia ao homem, branco, parecendo um trabalhador, ou saído ou a caminho do emprego, que arriava as calças. “Vocês vão fazer isso aqui mesmo?”, surpreendi-os. Desnorteado, ele levantou as calças e disse, à guisa de desculpa: “Vamos que a gente está incomodando”. Ela, depois do susto, saiu imprecando: “A gente não pode nem trabalhar em paz”. Era a mesma que há pouco se esganiçava, roncando em busca de ar. Só faltou que ele, antes de consumar o “intercurso canino”, fizesse uma selfie pornô. Selfie dantesca. Perdoa aí, Dante. E assim caminha a humanidade, se aliviando pela rua como cachorros.

14 E ele se foi com ela fazendo um escândalo às suas costas, como havia prometido.

https://www.facebook.com/elias.ribeiropinto/posts/10202997772526909

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