quinta-feira, 23 de outubro de 2014

A fantasia da mudança, Lúcio Flávio Pinto



A fantasia da mudança
Lúcio Flávio Pinto



 22 de outubro de 2014

Menos de um ano e meio depois das manifestações de junho de 2013, a palavra de ordem dos protestos por mudança teve uma tradução adulterada ao longo da campanha eleitoral.
A vida dos brasileiros não mudou desde então. As causas da indignação e revolta continuam presentes: transtornos graves e prejuízos consideráveis no deslocamento das pessoas nas aglomerações urbanas, violência desenfreada nas ruas, atendimento ruim e insuficiente nas unidades de saúde, péssima qualidade de ensino na maioria das escolas, e uma sensação de que os bons frutos da atividade humana são colhidos por poucos no Brasil. Restam – ao grosso da população – as sobras desse banquete de bilionários.
Por que então a principal responsável por esse estado de coisas, personificação das moléstias que levaram principalmente os jovens às ruas, persiste como a favorita para vencer a eleição do 2º turno para a presidência da república no próximo dia 26?
Porque há um gosto de frustração no paladar da massa de eleitores. Ela, indecisa ou abstêmia, decidirá essa disputa entre Dilma Roussef, do PT, em busca da reeleição, e Aécio Neves, do PSDB, a surpresa do 1º turno, ameaçado de perder essa condição na nova votação, quando a vitória já se lhe apresentava no horizonte próximo, ao alcance dos tucanos, depois de 12 anos de jejum no mais alto posto da administração pública brasileira.
A terceira via, encarnada por Marina Silva, a herdeira de Eduardo Campos, do PSB, e dos 20 milhões de votos dela própria em 2010, foi a solidez que se desmanchou no ar. Em grande parte pela campanha rasteira, desleal e mentirosa do seu partido original, o PT, contra a traidora, a convertida, na melhor tradição da nomenklatura do partido único.
Mas em boa parte pela fragilidade intrínseca da candidata, do que fez prova sua foto ao lado do ex-governador de Minas Gerais, o momento final a contraditar a sua biografia, que encolheu. Foi a imagem fúnebre da terceira via, da possibilidade (ou ilusão) de uma terceira via de verdade.
Se o Brasil não melhorou de fato, por que parece que melhorou?
Porque o PT, além da máquina do poder ao seu dispor, traço principal de diferença com os demais partidos, lançou mão de um carisma que ressoa e influencia por inércia do eco da legenda, mas também é impulsionado pela manipulação de massa.
O feiticeiro do marketing político, em especial o comandante dessa feira de bugigangas e paetês emotivos, João Santana, é o grande vencedor desta eleição. Se o povo pode eleger Dilma, quem a criou para esse fim foi o marqueteiro.
Quando parecia que os dias da presidente estavam contados até o fim do seu mandato, em1º de janeiro de 2015, ele deve ter-lhe ordenado que abandonasse o manche e deixasse a candidatura em piloto automático, não uma máquina convencional, mas o próprio Santana.
Monitorando as pesquisas qualitativas diárias, mais eficientes do que as sondagens registradas na justiça eleitoral para divulgação pública, ele foi modelando a candidata. Desse molde foi dispensada a coerência, a preocupação pelo passado, a sinceridade e até mesmo a autonomia mental. Os movimentos de Dilma foram comandados pelos choques elétricos da manipulação das pessoas.
O cenário no qual ela agrediu constantemente os fatos, se desviou da verdade, baixou sua expressão ao subterrâneo da política paroquial e forjou realidades, comportando-se como marionete, se tornou uma tela de imagens fabulísticas, de um Brasil inventado. Não por inteiro, é verdade. Por esse Brasil, tendo que decidir entre manter a ficção favorável ou mudar para o incerto, que pode ser o mais antigo ainda, o povo tem suas razões de reconduzir a autora do feito.
A questão é que esse Brasil, esse mesmo, que o distinto leitor vê enquanto me lê, já é passado. O novo Brasil é o país que vai pagar pela conta dos enfeites que edulcoram o cenário de cores alegres e dadivosas da propaganda da candidata oficial.
Os graves problemas que motivaram a irrupção urbana de junho do ano passado foram colocados no armário ou empurrados para debaixo do tapete. Como o volume excede o espaço disponível, vão estourar a partir do próximo ano, quando as eleições, o natal e o carnaval passarem. Só então haverá consciência social sobre a atualidade do Brasil.
Quem verá a face verdadeira do gigante? Quem perceberá o seu dedo revelador? Quanto de discernimento circulará ainda pelas redes sociais, transformadas num matadouro ideológico? O que restará da capacidade de análise original, de pensamento autônomo, de avaliação crítica nessa geleia geral dos juízos de valor, dos opiniáticos, do que parece – sem ser – ouro e balança, mas não cai?
A imprensa nacional – e, com um senil e aviltante destaque negativo, a péssima imprensa do Pará – contribuiu bastante para erodir a autonomia do pensar cidadão, tal as fraudes e artifícios utilizados para favorecer o parceiro e atacar o adversário. O Brasil democrático que organiza e realiza eleições se distancia do Brasil capaz de ver a realidade antes de julgá-la e sentenciá-la. O Brasil estigmatizado e estandardizado parece ter-se dissociado do Brasil complexo, que o define.
Que mudança efetiva foi oferecida realmente no mercado dos votos? A rigor, nenhuma. Desde Fernando Henrique Cardoso o Brasil segue num trilho adredemente fixado. O primeiro mandato de FHC trouxe o mais eficiente ataque ao maior dos males republicanos brasileiros, a inflação, com a criação de uma moeda sugestivamente intitulada de real. Uma moeda de verdade outra vez.
A incrível rejeição ao príncipe dos sociólogos foi um justo castigo pelos erros – deliberados ou involuntários – que ele cometeu, especialmente no segundo mandato (impossível antes dele, que sancionou essa excrescência). Mas também um produto de certa manobra que aplainou as arestas do seu sucessor e antagonista.
Lula manteve por oito anos o banqueiro (do Banco Boston) Henrique Meireles no comando do Banco Central, mesmo porque não teria força para tirá-lo do lugar. Pelo contrário: ele era sua garantia de que teria recursos a destinar aos mais pobres, ignorados ou subestimados pelo governo do grande sociólogo, em tese com seu trabalho intelectual a eles dedicado (paradoxo raras vezes resolvido pela elite nacional). O PT que verbera acremente contra a independência do BC é o mesmo que a tornou sagrada, sem precisar de qualquer regra escrita.
É inquestionável que o Brasil melhorou na continuação de Lula, personagem muito mais próximo do povo (e a ele sensível) do que o empostado FHC. Mas é igualmente inegável que os mais ricos se tornaram ainda mais ricos, bilionários em série. E que o preço do favorecimento aos até então excluídos foi a perda da autonomia e mesmo da soberania nacional. O dinheiro que entra do exterior e o crédito a qualquer custo mantiveram a máquina funcionando e a lusitana rodando.
As imagens de trens em operação, caminhões circulando por estradas, portos bem frequentados e máquinas operando em circuitos produtivos, exibidas para ser o grande trunfo da propaganda da presidente pela televisão, ainda o mais eficiente veículo de massa, são de um Brasil que está quase sendo arrancado do seu território, na forma de matérias primas, para ser transformado em mercadorias industriais em países distantes.
Os oásis de consumo espalhados pelo Brasil são exatamente isso: oásis. Saciam e anestesiam as consciências, que deixam de ver que, depois desse banquete, por mais que o país continue a ser pujante, por sua grandeza territorial e demográfica, terá perdido o comando da sua própria história.
A mudança obtida, por qualquer via, através de qualquer candidato, será cosmética. A mudança profunda não esteve e continua a não estar como questão nesta eleição. É um desafio e uma ameaça ao sentido real da democracia brasileira.

http://lucioflaviopinto.wordpress.com/2014/10/22/a-fantasia-da-mudanca/

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