sábado, 18 de janeiro de 2014

O rebelde, por Claudio Willer



O rebelde
Claudio Willer


Rimbaud aspirava à síntese de rebelião e revolução e queria a liberdade total e intransitiva. Sua obra foi marcada pelo inconformismo absoluto


“Espero tornar-me um louco muito mau”: essa frase de “Vidas”, uma das Iluminações, poderia ser sua epígrafe geral. Foi muito louco e muito mau. Sua maldade deve ser entendida dialeticamente, como negação criadora. Faltou – estranhamente – o capítulo Rimbaud em A literatura e o mal, de Georges Bataille.
No quesito loucura, sua poética é do delírio, do desregramento dos sentidos. O resultado, observou Antonio Candido, é uma “obra difícil, feita para despistar leitores e desanimar intérpretes”, pois “a relação da textura vocabular com as mensagens é tão brilhantemente arbitrária, e ao mesmo tempo tão necessária, que o leitor percebe sem perceber, a não ser nos poemas mais claros, nunca tem certeza” (“As transfusões de Rimbaud”, em Rimbaud no Brasil, UERJ, organizado por Carlos Lima).
Marcelin Pleynet, no ensaio “A liberdade livre” (em Poetas que pensaram o mundo, organizado por Adauto Novaes, publicado pela Companhia das Letras) amplia, acertadamente, a noção do “desregramento dos sentidos” da “Carta do Vidente”: não são apenas os cinco sentidos da percepção, mas a razão, o bom senso cartesiano (em francês, sentido e senso são a mesma palavra, sens); o “senso comum, o sentido moral e o sentido da liberdade”, até mesmo na acepção kantiana, transcendental. E, acrescento, o próprio sentido das palavras: a relação de significação no modo unívoco, substituído pela liberdade de significar.
Já foi questionada a qualificação de Rimbaud como “poeta maldito” (inclusive por Pleynet). Mas nele a maldição é programática, constitutiva da poética e visão de mundo. Se o Nerval de “Anteros” e o Baudelaire de “Abel e Caim” se declararam amaldiçoados, Rimbaud deu um passo adiante. Em Uma temporada no Inferno, criou o monólogo do exilado no mundo – “Por ora sou maldito, tenho horror à pátria” – que perdeu a memória – “De nada mais me lembro anterior a essa terra e o cristianismo” – e tem o “sangue mau”. Um selvagem da “raça inferior”, além de longínqua: “meus pais era escandinavos: vazavam o flanco, bebiam o próprio sangue”. Identifica-se aos marginais e párias; aos criminosos: é “o forçado intratável contra quem se encerram as grades da prisão”. E especialmente aos negros, metáforas do outro, da diferença: “sou um bicho, um negro”; por isso, verberou os “falsos negros”.
Compromisso com o mal
Uma contribuição recente à bibliografia sobre Rimbaud, em A folie Baudelaire de Roberto Calasso (Companhia das Letras), o retrata como “adolescente selvático das Ardenas”, nascido e criado “numa terra renitente a civilizar-se”. A selvageria e o compromisso com o mal já estão em seus primeiros poemas; aqueles enviados a Théodore de Bainville, o consagrado poeta, editor do Parnasse contemporain. O mais extenso da série, “Sol e carne”, expressa, diz Calasso, “a afasia diante do horror cósmico”: é o “horror do espaço”, levando-o a observar que “isso é puro Rimbaud – um Rimbaud pascaliano”.
Rimbaud, o poeta perverso. Entre aqueles poemas iniciais, “Os poetas de sete anos”, em que se descreve como menino que “Teimava em se trancar no frescor das latrinas / Para pensar em paz, arejando as narinas”. Encontra-se com uma “pirralha infernal”, filha de oito anos do “operário ao lado”, que lhe pula às costas: “Ele por baixo então lhe mordiscava as popas, / porquanto ela jamais andava de calcinha”. Observa Calasso: “Até então a literatura vivera ignorando tudo isso. Nenhum escritor, nem mesmo Baudelaire, ousara mencionar cenas desse tipo”.
Da mesma ordem é sua adesão à Comuna de Paris, a sangrenta revolta de março a maio de 1871 da qual não conseguiu participar (menor de idade e viajando sem dinheiro, foi detido e mandado de volta para Charleville). Seus poemas mais militantes mostram que a Comuna atraía como destruição. “As mãos de Jeanne-Marie” elogia as “petroleuses”, mulheres que, nas últimas horas antes da ofensiva das tropas de Versalhes, munidas de querosene, puseram-se a incendiar prédios públicos, sedes de instituições, esperando que nada sobrasse para os ocupantes. Para ele, “nobres damas” que, com suas “Mãos sagradas, / em vosso punho, onde acolheis / Nossas bocas jamais saciadas, / Gritam grilhões de alvos anéis!”. Em “A orgia parisiense ou Paris se repovoa”, reclama da cidade voltar ao normal e a burguesia retomar seus afazeres. Antecipa o “Mau sangue”: “O poeta irá tomar o pranto dos Infames, / Os ódios do Forçado, as queixas dos Malditos; / E as mulheres serão flageladas de amor. / Seus versos saltarão: Ei-los! Ei-los! bandidos!”. Poeta e bandido: para Rimbaud, sinônimos.
Há um tipo de maldade mais sutil, da qual o soneto “O adormecido do vale” pode servir como exemplo: bucólico, aparente louvação à natureza, só no último verso é revelado que descreve um cadáver, o jovem soldado com “dois furos rubros no peito”, caído na guerra franco-prussiana. Engana o leitor, dizendo uma coisa à primeira vista, e seu oposto. Mesmo procedimento, entre outros lugares, em “Infância”, a segunda das Iluminações: “No bosque há um pássaro, seu canto vos detém e vos faz enrubescer. / Há um relógio que não toca. / Há uma vala com um ninho de bichos brancos”. Um mundo encantador. Porém, “há, enfim, quando se tem fome e sede, alguém que nos expulsa”. Tudo se inverte: contrastando com o cenário bucólico, a infância é miséria e rejeição. Nesse poema em versos livres, “há uma catedral que desce e um lago que sobe”. As inversões, que vêm junto com seus duplos sentidos: o alto no lugar do baixo; o mundo às avessas que se multiplica nas Iluminações.
“O barco ébrio”, que levou a Paris para mostrar a Verlaine e demais integrantes do futuro simbolismo, proclama seu ideal de liberdade absoluta. A tripulação do barco é morta, permitindo-lhe vogar à vontade. Para Calasso, “a cerimônia inaugural da literatura que soltou as amarras”, pois “O barco navega sem tripulação, porque para guiá-lo bastam solidão monologante e frio delírio”. É arguto seu paralelo com os também programáticos versos finais de “A viagem”, com que Baudelaire encerrou As flores do mal: “Queremos, tanto o cérebro nos arde em fogo, / Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa? / Para encontrar no Ignoto o que ele tem de novo!”.
Provavelmente, Rimbaud aprendeu algo sobre ocultação do sentido e linguagem cifrada com as leituras esotéricas na biblioteca de Charleville. A bibliografia relacionando sua poesia à simbologia alquímica em especial, e esotérica em geral, talvez seja superada em volume pelos textos negando essa relação, ou alegando que em nada contribui para a sua interpretação. Mas a interpretação alquímica do soneto “Vogais” é inevitável, pela citação em “Alquimia do Verbo”. Contudo, nem precisava haver lido obras tratando de alquimia, hermetismo e ocultismo, como o comprovaram biógrafos. Sua adesão ao princípio hermético das correspondências não veio apenas daquelas leituras, mas do que já conhecia de poesia romântica, incluindo o Nerval de Versos dourados e, principalmente, Baudelaire.

UM POETA CONTRA A BARBÁRIE
A censura retorna pela porta dos fundos, a pretexto de restauração da moral ou do politicamente correto. Verbetes de dicionário são alvo de ações judiciais. Tentam impedir a adoção didática de obras de Monteiro Lobato. Livros declarados pornográficos foram confiscados por ordem judicial em Macaé, RJ. Uma lei instituindo programas em defesa da moral e bons costumes foi aprovada no Rio de Janeiro. Retrógrados de toda sorte mobilizam-se. Novas eclosões de obscurantismo vêm aí.
É hora de reler Rimbaud.
Reacionários atualizam sua rebelião. Convidam à difusão dos impropérios contra os beatos em “Os pobres na igreja”, na tradução de Ivo Barroso: “Todos, babando fé de mendicante e inválido, / Recitam sua queixa infinita a Jesus / Que sonha, amarelado à luz do vitral pálido”. E também contra os burocratas, em “Os assentados” e “Os aduaneiros”; contra o Imperador, detentores do poder em geral e, por extensão, Deus, que “ri nas toalhas dos altares”, em “O Mal”; contra o beletrismo em “O que dizem ao poeta a respeito das flores”; contra os valores estéticos na “Vênus Anadiômene” que mostra “a bela hediondez de uma úlcera no ânus”; contra os bons sentimentos em geral em “O homem justo”. E, no extenso “As primeiras comunhões”, contra Jesus Cristo: “ladrão eterno de energias, / Há dois mil anos deus que à palidez votaste / As faces que no chão encravam, de vergonha / E de cefalalgia, as mulheres em dor”. Por isso, Rimbaud recusou os sacramentos na “Canção da Torre mais Alta”: “Mas quem rezaria / À Virgem Maria?” – e também, biograficamente, a extrema unção ao morrer. (C.W.)

Claudio Willer,
doutor em letras pela Universidade de São Paulo, é poeta e ensaísta. Traduziu Lautréamont, Ginsberg e Artaud. Recentemente publicou Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio; Geração Beat, ensaio; e Estranhas experiências, poesia

http://revistacult.uol.com.br/home/2013/04/o-rebelde/

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