sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Porque, Carlos Drummond de Andrade



Porque
           Carlos Drummond de Andrade

Amor meu, minhas penas, meu delírio,
Aonde quer que vás, irá contigo
Meu corpo, mais que um corpo, irá um'alma,
Sabendo embora ser perdido intento
O de cingir-te forte de tal modo
Que, desde então se misturando as partes,
Resultaria o mais perfeito andrógino
Nunca citado em lendas e cimélios
Amor meu, punhal meu, fera miragem
Consubstanciada em vulto feminino,
Por que não me libertas do teu jugo,
Por que não me convertes em rochedo,
Por que não me eliminas do sistema
Dos humanos prostrados, miseráveis,
Por que preferes doer-me como chaga
E fazer dessa chaga meu prazer?

Poema de Sete Faces, Carlos Drummond de Andrade



Poema de Sete Faces

Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

 As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo, vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

A higiene do corpo, Affonso Romano de Sant’Anna



Affonso Romano de Sant’Anna


Toda manhã a barba
cresce sobre a face
da terra e do homem
pedindo o orvalho
                            – e a navalha.
Presto, acordo a lâmina
e deslizo um óleo santo
sobre o imolado rosto da manhã.
Do chuveiro escorre a água
sobre as partes circundadas pela mão
alegre. Os poros se aliviam
descendo brancas bolhas perna abaixo.
É o banho: ritual aquático e diário
Daquele que se purifica e matinal
Desdobra as felpas da toalha
E sai ungido em veste pura.
Te vestirei com meu suo,
Te banharei toda manhã,
Te alimparei , te cuidarei
Nas unhas e dentições .
Os teus pelos polirei,
Os teus fios cortarei
E como potro bravio
Pelos pastos crescerei.

Canto e Palavra - Affonso Romano de Sant’Anna



Affonso Romano de Sant’Anna



                1
Todo homem é vário .
Vário e múltiplo. Eu sou
menos: sou um duplo
e me contento com o que sou.
Fosse meu nome legião,
meu destino talvez fosse
a fossa e o abismo onde
a vara de porcos me emborcou.
Não sou tantos, repito,
sou um duplo
e me contento com o que sou.
                              2
Sou primeiro o canto
e o que cantou
e só depois – palavra
e o que falou.
Meu corpo testifica este conflito
quando entre palavras e canto
não se  perde ou se dissipa,
mas se afirma
e me redime.
O homem primeiro é o canto.
só depois se organiza,
                 se acrescenta
                 se articula,
se clareia de palavras
e dissipa o que são brumas.
Se o canto é o eu fluindo,
a palavra é o eu pensado.
na palavra eu sempre guio,
mas no canto eu sou guiado.
O canto é o que atinjo
(ocultamente) sem me oferecer,
e quando, de repente,
eu me descubro
                 – sem querer.
A palavra, ao contrário,
é o ato claro,
o talho e o atalho
                – no objeto,
embora seja como o corpo
um ser concreto
e como o mito
               – um ser incerto.
                              3
Quereis saber
como eu faço
ou de mim como eu quero?
É fácil:
                  Cultivo em mim os meus contrários
                   e a síntese dos termos cultivo,
sabendo que o canto é quando
e a palavra é onde ,
e que ela o ultrapassa
mais que o complementa .
E certo que o homem
embora sinta e pense,
                 cante e fale
seus conflitos nunca  vence,
é que eu tranqüilo me exponho,
em fala me traduzo,
em canto me componho:
pois um homem somente se organiza
e completo se apresenta
quando com seus contrários se acrescenta.
                                  4
Difícil é demarcar
o limite, o dia, o instante
em que o homem
de seu canto se destaca.
O limite, o dia, o instante
em que o homem se desfaz
da imponderável música-novelo-e-ovo
e configura-se no gesso,
e do que era um homem-canto
emerge um homem-texto.
Difícil é dizer como e onde,
não o porque,
um dia a gente se observa,
                          Se admira,
Mais que isto:
um dia o ser do homem todo denuncia:
já não se flui
como fluía,
nem se esvai
como esvaía,
edo organismo informe e vago
emerge a vida organizada.
Nada se perdeu
nem jamais se perderia
neste homem que de novo se formou.
Algo duro nele se passa
e em seu trajeto se passou,
quando  indo do canto à palavra
a si mesmo ultrapassou.