Walt
Whitman e as Folhas de Relva
Eduardo Pitta
Walt Whitman é um dos
símbolos da América — libertário, aventureiro, entusiasta. Eduardo Pitta
acompanha a par e passo o caminho da vida e obra de um dos mais polémicos
poetas do seu e nosso tempo. No fundo, «as doutrinas libertárias dos sixties, o
folclore hippy, o pacifismo, a ressaca dos «guerreiros» do
Vietnam (que seria uma espécie de ressaca «sulista» actualizada, como num
processo de transfert), as conquistas da ecologia, as exigências do
black power e a afirmação planetária do movimento gay, pese
sempre o americaníssimo tiro de partida, tudo situações que a obra de Whitman
prenunciou». Um pretexto para, como leitores, revisitarmos Leaves of
Grass.
Walt Whitman nasceu em West Hills, Huntington (Long
Island), a 31 de Maio de 1819, e foi educado com a rigidez característica dos quakers,
comunidade de que sua mãe, Louisa Van Velsor, de origem holandesa, fazia parte.
É do domínio das enciclopédias. Mas há um ponto obscuro em que os biógrafos de
Walt Whitman divergem: é na abordagem que fazem do caso de Southold. Aconteceu
mesmo ou tudo não passou de um boato sórdido? O futuro autor de Leaves of
Grass terá sido apontado publicamente como violador de um rapaz. A acusação
(1841) encontrou eco no púlpito da igreja local, e o mestre-escola não teve
alternativa. Abandonou as funções e a terreola. O incidente parece não ter tido
outras consequências. Justin Kaplan considera a história apócrifa, uma «lenda»,
a juntar a outras. David S. Reynolds, autor de Walt Whitman's America: a
Cultural Biography (1995), sustenta que tudo não passou de um golpe sujo,
de origem corporativa. O perfil de Whitman, que começara como paquete no
escritório de um advogado e fora aprendiz de tipógrafo, era considerado pouco
ortodoxo para um mestre-escola. Havia sido (1838-39) o editor-fundador do Long-Islander,
um semanário de Huntington onde publicou poesia e prosa e, durante a campanha
eleitoral de 1840, participou da fracassada tentativa de reeleger como
presidente o democrata Martin Van Buren, que era contra a anexação do Texas
(perdeu para o conservador W. H. Harrison — e o Texas foi anexado em 1845).
Também se preocupava excessivamente em estimular o gosto pela vida ao ar livre
e pelos valores da natureza. Não espanta que a tradição oral do pequeno burgo
fosse malévola. Mas, sobre Southold, parece haver esqueletos no armário. Porém,
activistas e historiadores da condição homossexual (ou como tal «apropriados»
pelos sectores militantes da crítica gay), coevos de Whitman, casos de,
entre outros, os escritores ingleses John Addington Symonds [1840--1893],
Edward Carpenter [1844-1929] e Henry Havelock Ellis [1859-1939], omitem o
facto. Do outro lado, há quem argumente com o imaginário sadista das prosas da
juvenília. Seja como for, a legenda do propagador da adhesiveness parece
ter começado aí. Adhesiveness era como no século XIX chamavam à sodomia,
um eufemismo pateta equivalente ao gay love contemporâneo: «Por caminhos não
percorridos,/ Pela vegetação das margens das lagunas,/ Fugindo da ostensiva
vida,/ De todas as normas já promulgadas, dos prazeres, benefícios,
convenções,/ Tudo isso com que, demasiado tempo, alimentei a minha alma [...]
Sem envergonhar-me mais (pois neste lugar distante como em nenhum outro posso
abandonar-me)/ Entregue à vida que não se revela ainda que tudo contenha,/
Decido-me hoje a cantar apenas os cantos de viril afecto/ Projectando--os ao
longo da plena vida,/ Legando, desde já, as formas de másculo amor,/ Pela tarde
deste delicioso Setembro dos meus quarenta e um anos,/ Dirijo--me a todos os
homens que são ou foram jovens,/ Conto-lhes o segredo das minhas noites e dos
meus dias,/ Celebro a necessidade de companheiros.» Este poema, escrito em
1860, abre o Calamus, terceira sequência de Leaves of Grass. Na
versão portuguesa (muito concisa mas de assinalável qualidade), da autoria de
José Agostinho Baptista, a ordem dos poemas não segue o original. É pena,
porque «In Paths Untrodden» tem a ressonância de um manifesto. Ele aí está, a
abrir Whitman's Men (1996), homenagem recente de sete fotógrafos (Mark
Beard, John Dugdale, Robert Flynt, Bill Jacobson, Russell Maynor, Steve
Morrison e Frank Yamrus), feita a partir da «encenação» fotográfica de poemas
de Calamus. O cálamo é apenas uma erva, mas, de entre todas, é aquela
que tem «o caule maior e mais duro, assim como um fresco, aquático e penetrante
aroma», disse o bardo.
Os anos do jornalismo Em todo o caso, foi em 1841 que se mudou para
Manhattan (na infância e adolescência tinha vivido largas temporadas em
Brooklyn). Na grande metrópole, ele foi engrossar o «batalhão ligeiro dos
publicistas». A expressão é de John Burroughs [1837-1921], que se tornou seu
amigo (conheceram-se em Washington durante a guerra civil) e foi o primeiro dos
seus biógrafos. Trabalha como jornalista no Broadway Journal, dirigido
então por Edgar Allan Poe, no Columbia Magazine, em New World e
no Brooklyn Eagle (1846-48), de que foi despedido pelas suas posições
anti-esclavagistas. Ecléctico, assina crítica de ópera e teatro, relatos de
jogos de baseball, crónicas do quotidiano, artigos sobre a questão
esclavagista, pequenos contos, ficção «gótica», guias de viagem, etc. É também
dessa época a publicação de Franklin Evans (1842). Participa com ardor da vida
da cidade, e, apesar da reputação de dandy, não deixa de frequentar
night-clubs e bares de má nota, nem prescinde de conviver com operários e
marinheiros. Tem 29 anos quando lhe oferecem um lugar na redacção do Crescent,
de Nova Orleães. Põe-se a caminho na companhia do irmão Jeff. Atravessa o Ohio
e desce o Mississipi, «o rio mais importante do globo». Mais tarde, dirá: «Para
melhor compreendermos quanto a poesia importada de Inglaterra ou de qualquer
outro modo reproduzida e imitada aqui nos parece anacrónica [...], é
necessário, asseguro-vos, ter viajado durante bastante tempo no Mississipi.»
Instala-se no Vieux Carré, um bairro boémio (a antítese do preconceituoso
Garden District), a miscigenação cultural da cidade fascina-o, mas a segregação
social típica da Louisiana provoca nele uma rejeição natural. Ao fim de três
meses, parte precipitadamente. Antes de regressar a Nova Iorque, onde editará o
Brooklyn Freeman (1948-49), visita St. Louis e Chicago, atravessa o
Michigan e vai até às cataratas do Niagara. Volta como free-lancer ao
jornalismo, ajuda o pai na construção civil (com o mesmo desembaraço com que na
adolescência havia alugado os braços à lavoura), trabalha numa papelaria e
especula no imobiliário.
Leaves of Grass A morte do pai, Walter Whitman, ocorre em 1855. É o ano da primeira
edição (anónima) de Leaves of Grass. O volume, de 100 páginas, não traz
o nome do editor, nem o do autor. Apenas um retrato do poeta em mangas de
camisa. O copyright é de Walter Whitman. Inclui doze cantos, sem título,
o primeiro dos quais virá mais tarde a ser o emblemático «Song of Myself», que
representa metade do conteúdo dessa edição inaugural: «Celebro-me e canto-me,/
E aquilo que assumo tu deves assumir,/ Pois cada átomo que a mim pertence a ti
pertence também.// Vagueio e convido a minha alma,/ À vontade vagueio e inclino-me
a observar a erva do Verão [...] Eu, aos trinta e sete anos, de perfeita saúde
começo,/ Esperando que só a morte me faça parar.» O seu estilo determinado não
atraiu o público e a generalidade da crítica. Um homem, porém, não hesita: R.
W. Emerson [1803-1882] escreveu ao poeta, confessando ter «esfregado os olhos
para ver se esse raio de luz não passava de uma visão», dizendo textualmente:
«Encontro coisas incomparáveis, incomparavelmente ditas, como o devem ser.» A
carta é naturalmente privada, mas Whitman publica-a, juntamente com a resposta,
na 2.ª edição (1856). Na contracapa, aparece a célebre frase: «Saúdo-o no
início de uma grande carreira.» E, em contraponto, transcreve no posfácio o
conjunto dos insultos (mesmo os mais soezes) que a estreia provocou. Acusam-no
de arrivismo por ter usado o nome impoluto e prestigiado de Emerson em proveito
próprio. O volume vem assinado e inclui 32 poemas com título. É, como a
primeira, uma edição de autor. A sociedade puritana da época reage com aspereza
à ousadia de Whitman, a imprensa não o poupa, há quem peça o julgamento do
autor, por «obscenidade». Na North American Review, escreve-se que o
livro «não contém uma só palavra que se destine a atrair o leitor pela sua
grosseria», e, no Intelligencer, de Boston, lê-se que «o autor devia ser
corrido a pontapés de qualquer sociedade decente, por pertencer a um nível
inferior ao das bestas». Na comunidade quaker, fazem-se autos-de--fé. O
escândalo atemoriza os agentes, Fowler & Wells, que se desresponsabilizam. Emerson
desloca-se de Concord (um subúrbio elegante de Boston) a Brooklyn, para o
conhecer pessoalmente, e traz do encontro uma funda impressão. A poesia não o
afasta do jornalismo. No Times, de Brooklyn, que edita entre 1857-59,
escreve anoninamente textos laudatórios sobre si mesmo e acerca de Leaves of
Grass. É a reacção à barragem hostil da crítica institucional, que via nele
um «monstro». Alguns jornais chamam-lhe «itifálico», uma forma muito arrevesada
de o injuriar, rotulando-o de homossexual (itifálicos seriam, por associação
com o linga sânscrito da tradição hindu, os adoradores do falo). Emerson
não desiste e envia um exemplar da obra a Carlyle [1795-1881], que ajudará a
projectar o seu prestígio na Inglaterra. Quando, em 1860, vai a Boston para o lançamento
da 3.ª edição (aumentada para 154 poemas), é já um autor reconhecido.
Celebridades como Bronson Alcott, pedagogo e místico [1799--1888], H. D.
Thoreau, escritor [1817--1862], ou Breck Trowbridge, arquitecto [1862-1925],
não regateiam elogios e amizade. Trowbridge fala da emoção de um encontro
comparável ao de Sócrates ou Salomão. O editor, Thayer & Eldridge, vai à
falência no ano seguinte. Mas, como consequência do crescente sucesso junto
daquele público que provavelmente teria inclinações «frenológicas»..., aparece
nas bancas uma edição pirata de Leaves of Grass. Whitman é o ponto de
chegada dos contrários: atacado violentamente pelos filisteus e incensado por
amigos e correligionários. Tinha nascido a lenda: «[...] Os ecos estrilam com
os nossos berros obscenos, e agarro no primeiro para amigo meu,/ Que seja um
marginal, rude, analfabeto, marcado já por coisas que tem feito./ Vou deixar-me
de representar, porque hei--de exilar-me de meus pares ?/ Ó vós, ó perseguidos,
eu não vos persigo./ Eis que venho para o meio de vós a ser o vosso poeta,/
Mais serei vosso do que de todos os outros.» Jorge de Sena dirá que Whitman foi
«um Verlaine sem senso do pecado, e com um sentido da grandeza e da majestade
do mundo e da vida, que Verlaine não teve».
A Guerra da Secessão Whitman tinha quase 42 anos quando rebentou a guerra civil (1860--65).
Estava então em Brooklyn, na companhia da mãe, e colaborava num semanário, o Standard.
Tinha uma preocupação: encontrar editor para a 4.ª edição de Leaves of
Grass. O irmão mais novo, George, tinha-se alistado como voluntário. O
patriotismo de Whitman vai encontrar eco em Drum--Taps (1865), núcleo de
poemas patrióticos que chegou a ter edição em volume. Na edição definitiva de Leaves
of Grass (considera-se como tal a 7.ª, de 1881), esse conjunto, aumentado
com os poemas de Sequel to Drum-Taps (1866), corresponde a uma das
sequências autónomas. Os anos da guerra foram uma dolorosa experiência. Em
Dezembro de 1862, tinha recebido a notícia do ferimento do irmão, durante a primeira
batalha de Fredericksburg (Virgínia). Partiu imediatamente para Washington, fez
uma busca exaustiva nos hospitais de campanha, instalados em igrejas e mansões,
mas tudo em vão. O périplo deu-lhe uma imagem inescapável do conflito. Vai
então para o front e encontra George, cujo ferimento não era grave. Mas,
pela primeira vez na vida, viu a morte de muito perto. Mais de uma vez,
assistiu a amputações. As epidemias alastram, o tifo e as desinterias são
implacáveis. Está cercado de feridos e moribundos. Na ronda dos hospitais, onde
se tornou uma figura familiar junto dos soldados, conforta esses rapazes na
medida das suas possibilidades: incute-lhes coragem, escreve por eles as
cartas, lê (histórias infantis, a Bíblia, poemas seus), ou faz-lhes
simplesmente companhia. O relato dessa experiência foi mais tarde publicado em Memoranda
During the War (1875-76). Durante a sua permanência em Washington, arranja
emprego como escriturário, numa repartição pública ligada ao Departamento do
Interior, graças ao empenho de Charles Eldridge, seu futuro editor, e de
William Douglas O'Connor, um influente anti-esclavagista. No Inverno de 1865
conhece um adolescente irlandês, Peter Doyle, que se tornará o seu lendário
companheiro. Escreve um diário e envia artigos para jornais do Norte: «Os
sulistas, desesperados, cometem atrocidades, atacam os comboios, massacram
feridos e prisioneiros. Os federados punem, vingam-se. A luta fratricida
torna-se cada vez mais inumana [...] O Inferno, de Dante, com todas as suas
dores, os seus tormentos imundos, não ultrapassa o espectáculo dessas
prisões... e os mortos... os mortos... os nossos mortos.» Na opinião de Sena,
as suas «reportagens da Guerra Civil da Secessão são obras-primas». A guerra
provoca nele uma evolução ideológica decisiva, à luz da qual devem ser lidos
poemas como «Beat! Beat! Drums!», «Bathed in War's Perfume» ou «Solid, Ironical, Rolling
Orb». Na capital, assiste à segunda
investidura de Lincoln: «Nunca vejo este homem sem deixar de sentir que é o
tipo de pessoa por quem ficamos atraídos.» Porém, amargurava--o o facto de ver
o presidente como símbolo da divisão do país. A guerra prossegue. Whitman
dinamiza uma cadeia de solidariedade social (algo afim daquilo que hoje são
algumas ONG) que recolhe e administra fundos e donativos oriundos de toda a
nação americana.
Amante das nove musas Os burocratas são o que são, e, um dia, James Harlan,
Secretário do Interior, demite Walt Whitman do modesto posto que este ocupava
em Washington. O móbil era a «indecência» de Leaves of Grass... Nem a
influência de Trowbridge demoveu o futuro senador, e a exoneração consumou-se.
Até o vestuário de Whitman serviu de pretexto: evocava a «clássica silhueta do
plantador sulista»! Um grupo de amigos bem colocados intercede junto dos
círculos oficiais, e o Procurador-Geral acolhe-o no Ministério da Justiça, como
assalariado (1865-74). Entretanto, uma gripe afasta-o por uns tempos da
capital. Regressa antes da capitulação do general Lee, a 9 de Abril de 1865. A
União triunfou. Dias depois, a 14, Lincoln morre às mãos de um sulista
fanático, John Wilkes Booth. Whitman era um unionista convicto, e o assassinato
de Lincoln provocou nele uma angústia desmedida. Escreve, sob o efeito da
tragédia, «When Lilacs Last in the Dooryard Bloom'd», uma elegia que é
considerada um dos textos mais tocantes da literatura americana de todos os
tempos (Whitman editou-a numa pequena brochura, acolhida com indiferença no
tumultuado rescaldo do conflito). O eco da sua reputação alastra: Burroughs
publica na Galaxy um ensaio sobre o homem e o poeta, enquanto William
Douglas O'Connor edita um panfleto apologético, O Bom Poeta dos Cabelos
Grisalhos, onde, sem rodeios, faz a defesa desassombrada do amigo. Também
se deve a O'Connor o plano de divulgação, nas páginas do New York Times,
da 4.ª edição (1867) de Leaves of Grass, custeada pelo autor. Inclui
oito novos poemas. A crítica «oficiosa» continua alérgica: «[...] Sou tão
delicado com os intestinos como com a cabeça e o coração,/ Para mim a cópula
não é mais grosseira do que a morte.// Creio na carne e nos apetites,/ A vista,
o ouvido, o tacto, são milagres, e cada parte, cada migalha de mim, é um
milagre.// Sou divino por dentro e por fora, e santifico tudo o que toca ou me
toca,/ O odor destas axilas é mais belo que uma oração,/ Esta cabeça mais do
que os templos, as bíblias e todos os credos [...].» Vendem-se apenas 100
exemplares. Mas, na Inglaterra, Carlyle, Ruskin, Swinburne (que o punha ao
nível de Blake) e Anne Gilchrist, com quem se correspondeu regularmente e que se
tornará uma das suas maiores amigas, fazem com que seja um autor respeitado. O
pré-rafaelita William M. Rossetti (irmão do pintor Dante Gabriel Rossetti),
edita Poems by Walt Whitman (1868), e Edward Dowden, uma autoridade em
estudos shakespearianos, escreve Poesia e Democracia a pretexto de Leaves of
Grass. Na Alemanha, em França e na Dinamarca, a ressonância é menor, mas a
sua obra começa a ser um património comum. Em 1915 (isto é, com o proverbial
atraso de sempre), Portugal entra no coro. Pela boca de Álvaro de Campos,
Pessoa saúda-o num poema torrencial: «De aqui de Portugal, todas as épocas no
meu cérebro,/ Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,/ Eu, de monóculo
e casaco exageradamente cintado,/ Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,/ Não
sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser.../ Eu tão contíguo à
inércia, tão facilmente cheio de tédio,/ Sou dos teus, tu bem sabes, e
compreendo--te e amo-te [...]». O engenheiro sensacionista não fez a coisa por
menos e comparou a obra de Whitman a «uma erecção abstracta e indirecta no
fundo da minha alma». Ofélia Queiroz nunca foi capaz de tanto.
The
Good Gray Poet O ano de 1871 é o
da emancipação dos negros e da XIV Emenda à Constituição (que lhes dá o direito
de votar). É também o ano da Exposição Internacional de Nova Iorque, onde
Whitman declama alguns poemas inéditos, e o da 5.ª edição de Leaves of Grass,
de que são feitas duas tiragens com poucos meses de intervalo. A colectânea
colige agora um total de 273 poemas. Publica, ainda nesse ano, Democratic
Vistas. O estilo é seco e descritivo. A obra questiona a corrupção social e
política daqueles tempos. No ano seguinte vai a Hanover, no New Hampshire, a
convite do Dartmouth College, uma universidade de tradições liberais. E, em
1873, sofre dois reveses significativos. A 23 de Janeiro, fica paralisado do
lado esquerdo. Corolário da temida «malária dos hospitais», que lhe havia sido
diagnosticada em 1869? Peter Doyle não abandona a sua cabeceira. Os tratamentos
eléctricos e a robustez física fazem o resto. Em Abril, recuperou parte da
antiga agilidade. Mas, a 23 de Maio, Louisa Van Velsor, sua mãe, morre. Foi
para ele o mais rude dos golpes. Tem crises de hemiplegia pertinaz, deixa-se
abater, está um farrapo. Vai viver para casa do irmão George, em Camden (New
Jersey). Ainda não recuperado da depressão, fisicamente debilitado, é
informado, em Julho de 1874, da sua demissão do Ministério da Justiça. A
imprensa sensacionalista lançara outra onda de insinuações torpes: perde o
emprego. Não desiste. Em 1876, faz sair dos prelos a 6.ª edição de Leaves of
Grass (chamada «do centenário» por coincidir com o centenário da declaração
de independência dos Estados Unidos), manualmente composta por si, em Camden,
na tipografia de um amigo. A obra aparece desta vez em dois volumes: o 1.º
reproduz a edição anterior e no 2.º aparecem os ensaios e vinte poemas
inéditos. Divide agora o seu tempo entre Camden e Filadélfia, onde vivia Anne
Gilchrist [1828-1885]. A autora de Life of Etty (1855), estudiosa e
biógrafa de Blake e Mary Lamb, grande admiradora da poesia de Whitman, viveu
nos Estados Unidos entre 1876-1879, tendo ajudado a aglutinar à volta do amigo
um elo de apoios materiais e cumplicidades electivas. Em 1879, Whitman faz a
sua primeira viagem ao Oeste. Está meio-paralítico, tem 60 anos, mas vai até ao
outro lado do continente: parte de Filadélfia e atravessa as Montanhas
Rochosas. Em Specimen Days (1882), dirá: «Interrogo--me, na verdade,
sobre se os habitantes deste interior do Continente, do Oeste Americano, sabem
que arte de primeira ordem possuem nestas pradarias. [...] Se soubessem como
essas pradarias correspondem absolutamente em grandeza ao firmamento e ao
oceano com as suas vagas? Como elas alargam, acalmam, alimentam a nossa alma?»
Sena traça com impressionante nitidez o retrato do poeta: «Os seus costumes, a
sua franqueza, o seu erotismo, o seu radicalismo político, a sua expressão
anaforicamente tumultuária e repetitiva, o seu gosto das apóstrofes e das
enumerações, o seu verso esplêndidamente livre, é muito escândalo junto para
ele ser o poeta nacional que ninguém foi como ele, ainda que muito mais por
crença na democracia que por nacionalismo.»
Ícone panteísta
Em 1882 publica Collect, que inclui relatos do tempo da guerra civil. É
ainda nesse ano que conhece Oscar Wilde, então com 28 anos. Wilde está de
visita a Nova Iorque para uma série de conferências a pretexto do lançamento do
seu primeiro livro de poemas. Por essa altura, a opinião pública volta a ser
agitada com o espectro dos bons costumes. Uma auto-intitulada Sociedade Para a
Supressão do Vício patrocina, no Literary World, um inquérito público,
de contornos duvidosos, com o intuito de bloquear futuras edições de Leaves
of Grass. No ano anterior havia sido publicada a 7.ª, com o canon
definitivo. Mesmo entre escritores e intelectuais, as opiniões dividem-se.
Henry James [1843-1916], por exemplo, considerava a sua poesia «ofensiva» da
arte. Não é de admirar. Sobre Oscar Wilde [1854-1900], que encontrou em Nova
Iorque numa reunião social, debita que se trata de «um porco enfatuado». Os
ânimos exaltam-se, o editor James R. Osgood, de Boston, suspende a distribuição
da obra (devido a pressões do promotor público), a imprensa popular enfatiza os
insultos, Douglas O'Connor contrapõe com veemência no New York Tribune,
enquanto outro jornal, o Herald Tribune, toma partido por Whitman. A
polémica atravessa o Atlântico. Os libertários fazem dele a sua bandeira. É
natural. Um poema como «I Sing the Body Electric», de 1855, sintetiza todo um
programa de libertação (e mística) sexual. Na Inglaterra, na Alemanha e em
França, é a glória. Os novos editores são Rees Welsh e David McKay, ambos de
Filadélfia. Em 1888 sofre novo ataque de paralisia, mais grave que os
anteriores. Nesse ano, com o apoio mecenático de Horace Traubel, vê publicados
dois novos volumes: November Boughs, que reúne 62 poemas inéditos, e Complete
Poems and Prose of Walt Whitman, um catarpácio de 900 páginas. A 8.ª
edição (1889), publicada simultaneamente em Glasgow, na Escócia, esgota
rapidamente: «Quando soube ao fim do dia que o meu nome fora aplaudido no
Capitólio, mesmo assim nessa noite não fui feliz,/ E quando me embriaguei ou
quando se realizaram os meus planos, nem assim fui feliz [...] E quando pensei
que o meu querido amigo, meu amante, já vinha a caminho, então fui feliz [...]
Porque aquele a quem mais amo dormia a meu lado sob a mesma manta na noite
fresca,/ Na quietude daquela lua de outono o seu rosto inclinava-se para mim,/
E o seu braço repousava levemente sobre o meu peito — nessa noite fui feliz.»
Porém, quando John Addington Symonds, num ensaio justamente célebre, «explica»
os poemas de Calamus à luz da homossexualidade do poeta, Whitman reage
indignado: «I have had six children.» É um desabafo ridículo, uma coisa não tem
nada a ver com a outra. Whitman sabia-o. Estaria ele a piscar o olho à
posteridade «respeitável»? Infelizmente o argumento fez escola, mesmo, ou
sobretudo, entre autores que, ainda hoje, reivindicam o estatuto de artiste
maudit. Mais tarde, D. H. Lawrence [1885--1930] faria notar aquilo que
considerava os aspectos disfóricos e o desespero suicida da escrita
whitmaniana. A 9.ª edição de Leaves of Grass, também conhecida por
«deathbed edition», foi preparada numa altura em que o poeta se encontrava já
muito doente. Fez as correcções finais e deu por «authorized» um corpus de 411
poemas. A 26 de Março de 1892, aos 72 anos, morre paralítico. Foi sepultado em
Camden (New Jersey). Tinha sobrevivido três semanas ao lançamento de Complete
Prose Works, que McKay editou num único volume. Setenta anos mais tarde,
seria o ícone subliminar de duas gerações contestatárias. As doutrinas
libertárias dos sixties, o folclore hippy, o pacifismo, a ressaca dos
«guerreiros» do Vietnam (que seria uma espécie de ressaca «sulista»
actualizada, como num processo de transfert), as conquistas da ecologia, as
exigências do black power e a afirmação planetária do movimento gay,
pese sempre o americaníssimo tiro de partida, tudo situações que a obra de
Whitman prenunciou. Ezra Pound [1885-1972] havia feito o diagnóstico correcto,
quando escreveu que ele era um génio «porque tem consciência do que é, e da sua
função. Sabe que é um ponto de partida e não uma obra acabada à maneira
clássica». O culto à sua memória tem-se manifestado sob todas as formas. Uma
das mais bizarras relaciona-se com o misterioso desaparecimento dos seus Notebooks:
roubados em 1942 da Biblioteca do Congresso, em Washington, foram devolvidos em
1995, precisamente no dia 24 de Fevereiro. A 10.ª edição de Leaves of Grass
foi publicada cinco anos depois da sua morte, incluindo os seis poemas de Old
Age Echoes, até então inéditos. O conjunto da sua obra (poesia e prosa)
encontra-se coligido em The Collected Writings of Walt Whitman, 24
volumes editados entre 1961 e 1984.
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