O CAFÉ
DE SILVANIRA
Jamil Damous
Todos os procedimentos foram tomados para
que o diabo
daquele café ficasse mais quente que o enxofre do inferno.
Tudo seria feito
rapidamente para que
ele chegasse quase
fervendo aos lábios de Silvanira. Maricota
ficaria de prontidão com a bandeja
na porta da cozinha
para que não houvesse tempo do líquido arrefecer um
grauzinho sequer. A xícara
seria fervida à parte. Em segundos, tudo iria do fogão
para a bandeja,
Maricota entraria o mais rápido que
pudesse na sala e começaria servindo
Silvanira. Minha avó, meu avô, mamãe, o velho agregado Adamastor – autor
do diabólico plano
– e todas as outras visitas esperariam um pouco antes de dar o primeiro gole. Tudo estava ensaiado. Dessa vez
eles queriam ver
se ela ia ter
coragem de cantar o velho estribilho:
- O café
está uma delícia, pena
que esteja um
pouquinho frio.
Todo fim de tarde o ritual
se repetia. O cafezinho na casa de vovô já era uma tradição
de há séculos e mais
antiga ainda
era a repetida reclamação de Silvanira.
A solteirona podia até não dizer bom dia ao chegar, ou não comentar o clima abafado
da tarde turiense, mas
nunca falhava no reclamar
da temperatura do café.
Mas agora ela ia ver. A vingança estava armada.
Pode deixar, Silvanira, que
tua batata, quer
dizer, teu café, está esquentando.
E chegou a tarde
em que
todo mundo
queria ver ela
dizer que o café estava frio.
Ela ia saber
o que é um
café quente
de verdade.
Os preparativos
correram como o previsto. Desde
o escaldamento de todo e qualquer continente
por onde
aquele conteúdo
líquido fervente houvesse
de passar até
a presteza com
que Maricota carregaria a bandeja rumo aos lábios
reclamões de Silvanira.
E Maricota entra na sala.
Silvanira deu o farto gole de meia xícara como era do seu jeito, e um silêncio se
fez, todos de olhos
fixos nela. Antes
de Adamastor perguntar se aquele
estava do seu gosto,
pergunta que
estava nos seus
planos, ela
mesma fez o comentário,
o primeiro a vir incompleto, sem
a segunda
parte,
em muitos
anos.
- O café
está uma delícia.
Nenhuma reação,
nenhum
músculo da sua
face se moveu. Mas
todos viram rolar
do seu olho
esquerdo uma lágrima
discreta. Vovó retomou a conversa,
alguma coisa sobre
os preparativos da festa
de inauguração da usina
elétrica.
No dia
seguinte, Silvanira não
apareceu pro cafezinho do fim de tarde. Dizem que
ela ficou em
casa, cuidando da língua.
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