quarta-feira, 1 de abril de 2015

Onde você apoia seu coração? Vincenzo Percassi



Onde você apoia seu coração?*



Acabávamos de celebrar a festa de Natal em Misomali, uma pequena aldeia do Malawi, na África. Foi um momento de fé, de alegria alimentada pelos cantos: todas expressões para celebrar a vida, o mistério de uma maneira palpável. Depois, aos poucos, o povo voltou às próprias cabanas.
     De repente, alguém se aproximou angustiado: "Há um doente que precisa de você. Está morrendo". Andamos juntos, sem falar. Chegamos a uma cabana. Numa esteira, jazia uma criança de dez anos. Delirava de febre. A mãe lhe sustentava a cabeça e, de vez em quando, molhava seus lábios com água. Rezamos juntos. Depois eu disse que precisava levar a criança ao hospital. Saí e sentei num degrau da varanda, onde havia um ancião. Estava como que esperando alguém com quem falar.
     Fui eu que quebrei o silêncio: "Não se preocupe, atate (papai). Verá que ele vai sarar". Respondeu: "Espero. Porém, eu deixei cair meu coração no chão". "Não deve desanimar. Deus existe!" retruquei. "Sim - retomou - eu sei que Deus existe, mas não onde tem a dor". "Por que diz isso?" perguntei. "É o que nossos pais nos ensinaram", respondeu.
     E começou a contar que, muito tempo atrás, um homem pôs-se a caminho para visitar um parente que nunca tinha visto. Dele sabia somente que morava no sopé de uma montanha. Chegou e começou a pedir informações às pessoas. Mas todos o olhavam com desconfiança e ninguém queria ajudá-lo. Cansado, sentou-se à sombra de uma árvore. E eis uma voz: "É esta a aldeia". O homem levantou o olhar e viu só um nyamalibwato, um pequeno pássaro de canto melodioso, que pulava de um galho para outro e o convidava a segui-lo: "Siga-me, estrangeiro, e o levarei à felicidade e à boa sorte".
     O homem seguiu o pássaro até que chegou à entrada de uma gruta. Já tinha descido a noite. A entrada era fechada por uma porta de juncos e folhas de palma. Cansado, apoiou-se a ela. A estrutura de juncos se desfez e o homem rolou na gruta, envolvido pela poeira. O nyamalibwato cantou: "Consegui trazê-lo aqui". E desapareceu na noite.
     Quando o homem se recuperou um pouco, levantou-se e viu uma figura estranha agachada num canto. Tinha a barba longa e inculta, o seio seco de uma velha, a cabeça coberta de cabelos ralos como a pelugem de uma noz de coco e a pele suja e cheia de escamas, como se nunca tivesse ido ao rio lavar-se. Ao redor, havia muitas ânforas de barro, cuidadosamente lacradas.
     "Por que veio aqui?", perguntou a estranha criatura. "Procurava um lugar para dormir, respondeu o homem. Venho de longe e a noite é fria". Ela retrucou: "Você sabe que não é prudente dormir com quem não se conhece". Deitou no chão, logo imitada pelo homem.
No sono, o homem bateu inadvertidamente contra uma ânfora, depois contra a outra e uma outra ainda, até que todas se quebraram, deixando sair todos os mais repugnantes e perigosos gêneros de criaturas: gafanhotos, mosquitos, cobras e animais deste tipo. Num instante, todos aqueles seres saíram e se espalharam pelo mundo. Da última ânfora, saiu um cheiro nauseabundo, que se dispersou no vento.
     Na manhã seguinte, quando o homem abriu os olhos, viu que a estranha criatura estava sentada diante dele com aspecto muito severo: "Bobo e incapaz - ela gritou - deixou meus filhos saírem da gruta sem minha licença". "Quais filhos?", disse o homem aterrorizado. "Os que viviam nos cântaros que você destruiu enquanto dormia. Vocês homens vão pagar caro por isso".
     A estranha criatura tirou depois uma faca muito afiada: "Se quiser sair vivo daqui, deve tirar de meu corpo todas as escamas e a sujeira". Não foi uma tarefa fácil, porque sobre o corpo daquela criatura havia três camadas de escamas, duras e resistentes. Ele teve que pô-las em três recipientes. Quando terminou, chegou outra ordem: "Agora vá, mas sem virar para trás, até a borda da montanha e disperse as escamas ao vento". O homem obedeceu.
     Quando voltou à gruta, viu que aquela criatura tinha se transformado num jovem muito bonito. "Que aquelas escamas que você mesmo dispersou aos quatro ventos - disse ele - tornem-se como ferrões nas mãos de meus filhos, de maneira que você e todos os outros homens tenham que sofrer para sempre. O ar nauseabundo que deixou fugir do último cântaro torne-se causa de toda sorte de doenças, porque você violou aquilo que não deveria violar e não evitou aquilo que poderia evitar".
     O velho calou-se por alguns instantes. Depois virou para mim e disse: "Eis por que há o mal no mundo. É somente culpa do homem. Quanto a Deus, nós sabemos que se afastou muito, está no alto dos céus. Porque ele não pode ficar onde há dor e morte. Ele não pode sofrer".
     "Não posso dizer que você está errado - disse-lhe -. Num certo sentido, o sofrimento que existe no mundo é a conseqüência da estupidez e da maldade humana.". O velho anuiu com a cabeça: "O mal vem do homem, não de Deus".
     Mas eu senti a necessidade de dizer algo a mais: "Eu também tenho uma história para lhe contar. Na minha religião, se afirma que Deus conhece tudo e pode tudo. Agora, embora viva nos céus, não podia desconhecer o mal e a dor dos homens. E porque os amava muito, decidiu visitá-los. Procurou várias maneiras para ser acolhido por eles, mas eles não o reconheceram e o rejeitaram. Então decidiu tentar o caminho mais natural: ele se tornaria homem em todo sentido. Pediu, portanto, a dois noivos que consentissem que ele se tornasse seu filho. Os dois aceitaram.
     Quando veio o dia do nascimento, os noivos estavam viajando. Procuraram hospedagem nas famílias da aldeia, mas em vão. Finalmente, tiveram que contentar-se com uma gruta escura e suja. E foi ali, conta a história, que Deus nasceu. Era noite. E se diz também que da gruta saiu uma grande luz que iluminou a noite e todo o bem que há na terra. Naquele instante, todo o mal do mundo atirou-se sobre aquela criança, sem, porém, conseguir destruí-la. Ao contrário, foi a criança que, assumindo toda a dor, a derrotou, libertando assim o mundo de todo mal".
     O velho me olhou com ar perplexo. Depois me perguntou: "Está me dizendo que Deus pode sarar todo nosso mal?". Respondi: "Sim, Deus pode curar todas nossas dores". "Você - retomou - apoiaria seu coração sobre esta história?". Respondi: "Eu já apoiei todo meu coração sobre esta história. Muitos outros fizeram isso. Nesta mesma noite, pouco antes que você viesse aqui, nós, cristãos, nos reunimos para nos contar mais uma vez essa história. Rezamos e nos alegramos juntos. Porque, desde então, Deus não abandonou o mundo. Desde então, a vida voltou a morar entre os homens. Desde então, o mal não é mais sem remédio".
     Sorriu. Depois, passando pela última vez a mão no rosto da criança, disse-me: "Tinha deixado cair meu coração no chão. Talvez poderia eu também, apoiá-lo sobre tua história". No ano seguinte, foi ele quem contou à criança curada a história do Deus feito homem.



*Texto de Vincenzo Percassi in: www.pime.org.br/pimenet/ mundoemissao/culturaculnatal.htm


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