David Grossman, um dos principais autores israelenses, lança livro sobre a adolescência
Maria
Fernanda Rodrigues
-
O Estado de S. Paulo
18 Fevereiro 2015
Publicado originalmente em 1991, 'O Livro da Gramática Interior' é situado em Jerusalém, às vésperas da Guerra dos Seis Dias
Quando começamos a acompanhar Aharon, o
protagonista de O Livro da Gramática Interior, ele tem 12 anos, bons
amigos e uma certa popularidade na escola. É criativo e divertido, faz truques
de mágica, toca violão, ajuda a mãe a descascar batatas, lê os jornais para a
avó. Aos poucos, porém, o garoto vai se encolhendo - ou, como diz o seu
criador, o escritor israelense David Grossman, ele entra no túnel da
adolescência. Ao sair de lá, aos 17 ou 18 anos, será totalmente diferente, novo
para ele mesmo. “É nesse período que descobrimos nossa sexualidade, o outro
sexo, o prazeroso e dolorido jogo entre meninos e meninas, a estrutura profunda
do amor e da família”, diz o autor em entrevista ao Estado por
telefone.
Não sabemos como e se Aharon
sairá do buraco. Presenciamos o início da sua adolescência, passamos por seu
bar mitzvah, quando, por ordem da mãe, ele aparece entre os convidados usando
um sapato com saltos. Enquanto os primos e amigos espichavam e viam suas vozes
engrossarem, o protagonista não conseguia se livrar do dente de leite, os pelos
não cresciam e as pernas permaneciam curtas e finas.
Obra se
passa no final dos anos 1960 e acompanha Aharon, que não se desenvolve
como os amigos
O livro lançado agora no País foi escrito entre
1990 e 1991. Grossman, então pai de dois garotos que logo chegariam à
puberdade, queria ser a voz do patriarca, mas no processo se reencontrou com o
menino que foi, filho de uma família de refugiados poloneses vivendo num
apertado apartamento popular de Jerusalém. Ele guarda todos os detalhes na
memória e diz que sente que tem uma espécie de livre acesso à sua infância e
adolescência. “Lembro-me tão bem da casa, dos cheiros, do vale que ficava na
frente. Nós, as crianças dessa vizinhança meio pobre, não podíamos ficar em
casa de tão pequenas e populosas que elas eram. Encontrávamos conforto fora, na
rua. Sinto como se estivesse lá, agora. A forma que eu via meus pais, a minha
luta por individualidade, a rebeldia diante deles. Essa é uma fotografia vívida
e vital dentro de mim.” Esse é, também, o retrato do personagem.
Aos 61, Grossman conta que este livro continua
muito vivo nele, que a experiência de escrevê-lo foi intensa e descreve sua
adolescência - e de todos - como um período frágil, de se abrir para o mundo,
decodificar a família, o comportamento e a linguagem. “Estamos inseguros com
relação à vida, ao corpo e ao que pensam de nós. É um tempo intenso. Nesse
sentido, não tenho certeza de que já ultrapassei essa fase, apesar da idade”,
brinca.
Narrado em terceira pessoa, O Livro da Gramática
Interior pode ser lido como a história de um garoto em sofrimento, que
tenta encontrar um lugar na sua família - e entre os fantasmas dessa família -
e que está desesperado por respeito e por um pouco de atenção. Um garoto que
não quer crescer tão rapidamente, mas que deseja sair, o menos traumatizado
possível, daquele ambiente claustrofóbico e cruel que algumas famílias sabem
proporcionar - para se ter uma ideia, a irmã mais velha de Aharon,
desobedecendo aos pais, troca o uniforme da escola pelo do exército.
Ao mesmo tempo, há um tanto de loucura, bagunça,
estruturas abaladas, ruínas, destruição. A presença da avó muda e inerte a
observar. A vizinha a provocar. O mal sempre à espreita. E a mochila de
reservista do pai, pronta à espera do chamado - que em Israel sempre vem. A
história se passa em 1967, às vésperas da Guerra dos Seis Dias, mas se o
cenário fosse transportado para o tempo presente ela seria a mesma.
“De uma certa forma, este é um livro sobre um
artista enquanto garoto e sobre como, às vezes, alguém se torna um artista
apenas para ter um lugar só para si, de privacidade e intimidade, mesmo
pertencendo a uma família tão intrusa e obsessiva”, conta o autor. Mesmo
vivendo num país em conflito. Para ele, Ahron percebe, intuitivamente, que a
única forma de continuar sendo ele mesmo é inventando esse lugar - no seu caso,
a linguagem. “Ele cria para ele um hospital para palavras doentes. As palavras
usadas por outros, poluídas, são purificadas numa cerimônia íntima”, explica.
Este foi o jeito que encontrou de ter seu lugar no mundo. Um espaço livre, sem
interrupção - embora nada possa ser tão íntimo com a mãe que ele tem. “Ela é
cruel, politicamente incorreta, como muitos israelenses eram no período
retratado no livro, e incapaz de se distinguir do filho. Ela acusa o menino de
não estar crescendo o suficiente, e isso é terrível de se dizer. É como se a
vergonha dele doesse nela”, diz o autor, que trata logo de avisar que embora
sua família seja muito parecida com a da história, ainda assim ela é diferente.
Há um certo mistério envolvendo o pai e a avó
paterna de Aharon, impedidos pela mãe autoritária de falar a língua original, o
polonês, em casa. O passado dos dois é contado discretamente aqui e ali, e
também aqui e ali faz lembrar as raízes do autor. Ele conta a sensação de ser
refugiado foi o que mais marcou os membros de sua família. “Três anos depois
que o meu pai fugiu da Polônia, começou a Segunda Guerra Mundial. Os pais da
minha mãe também vieram de lá. A geração dos meus pais foi muito frágil, e não
muito certa com relação à sua existência, procurando solidez de uma forma muito
desesperada. Comida era quase sagrada. Fico pensando em como pessoas que vieram
do inferno conseguiram ter alegria de viver, acolhimento, esperança. Em como,
vindo das cinzas, eles conseguiram construir uma nação. É um mistério e uma
sensação de que essas pessoas tão pequenininhas eram também gigantes.”
Uma curiosidade que teria aliviado alguns dramas
juvenis de Grossman. Gui’don, amigo descolado de Aharon, é inspirado num de
seus colegas de adolescência. Quando terminou o livro, pediu que ele lesse e
sua identificação foi com o encolhido protagonista. “Nem sempre reconhecemos a
pessoa que está ao nosso lado como solitária e isolada, insegura e desesperada
por nossa aprovação. Pensamos que somos mais frágeis, mais sozinhos. Quando
lemos o livro, ele nos lê e traz muitas lembranças à superfície. Esse amigo viu
sua vida interior vir à tona. A obra deu palavras a sentimentos negados por 20,
25 anos. Foi uma reação bonita. Se ele tivesse me dito isso há 25 anos, quando
eu desesperadamente precisava saber que ele também se sentia solitário, minha
vida teria sido diferente.”
Uma nova edição da obra está saindo em Israel 24
anos depois do lançamento. Há dois anos, David Grossman foi convidado a visitar
a escola em que estudou quando tinha a idade de Arharon. “Foi muito especial
ouvir de várias crianças que elas eram o Aharon.” O que mudou, comenta, é que
agora elas querem dizer claramente que se sentem sozinhas, que não são
compreendidas em sua individualidade. E é assim com crianças em todos os países
onde ele foi traduzido. Isso me deixa muito feliz porque o livro faz com que
não nos sintamos tão solitários.”
Israel. Grossman se diz um provinciano - sempre morou em
Jerusalém. “Hoje vivemos no subúrbio, e isso traz muitos benefícios. Vemos a
beleza da cidade estando longe dela e não sofremos de todo o extremismo e
fanatismo que há lá. Trata-se de um lugar muito bonito, mas insustentável
politicamente. Os nervos estão muito expostos. É o coração do conflito entre
Israel e Palestina. Sentimos isso ao entrar na cidade, onde até os grafites são
violentos.”
Com isso tudo, e mesmo tendo perdido um filho a
dois dias do cessar-fogo da guerra do Líbano e a três meses do término de seu
serviço militar, ele nunca pensou em sair. “Aqui é a minha casa. Há tanta coisa
que me amedronta e que é difícil de engolir, mas posso entender o comportamento
das pessoas, sei por que elas cometem os erros que cometem. Posso entender seus
medos - muitos dos quais são meus também. E posso entender como o medo pode
impor um comportamento. Mas a vida é terrivelmente curta e quero vivê-la no
único lugar que é relevante para mim.”
O escritor diz que não pode se dar o luxo de se
desesperar diante do cenário, da alternância de catástrofes, mas considera que
se a paz tivesse chegado ontem ela teria chegado tarde demais para todos.
“Algumas características como brutalidade, ódio e racismo estão dos dois lados.
Se vivemos nossa vida em guerra, e estamos em guerra há mais de 100 anos, é
natural que haja efeitos terríveis no nosso comportamento - mesmo em casa. A
violência foi formulada tão profundamente para você que ela aparece em muitos
aspectos da sua vida.” A paz é um sonho irreal, ele diz, e mais importante do
que resolver conflitos e disputas entre israelenses e palestinos, questões como
segurança, ocupação, terrorismo e formas de dividir a terra é, como diz, sentir
que a existência não corre risco. “Paz, para mim, é chance de recuperação e é
liberdade. Países que vivem em liberdade por
muito tempo acabam se esquecendo o que ela significa. Quando você deve estar o
tempo todo em alerta para identificar imediatamente qualquer perigo, ameaça ou
inimigo, você não é um indivíduo livre e esta não é uma sociedade livre. Ter
paz vai nos permitir ser livres, coisa que não somos há milhares de anos. E é
difícil desistir disso.”
Em Israel, os escritores de maior destaque e
respeito são aqueles com alguma militância política e aqueles que levam essas
questões para a obra. Para o autor, na literatura séria há sempre uma camada
política. “Ela afeta a vida do escritor e dos que vivem essa realidade. Alguns
autores viram as costas à essa realidade, nem todos escrevem de uma forma mais
política como Amos Oz, A. B. Yehoshua ou eu. Negar isso não deixa de ser um ato
político, mas é preciso se esforçar muito para negar a realidade de Israel e da
Palestina”, explica. Ele diz, no entanto, que há diferentes formas de se tratar
a questão. “Quando escrevo um artigo, tenho uma opinião e quero convencer o
outro. Quando faço literatura, tenho dúvidas e perguntas. Vou tentar mostrar
como a situação é cheia de contradições. O que a literatura deveria fazer é
lembrar o leitor da complexidade da situação num jeito que o envolva mesmo
quando você escreve sobre o inimigo do leitor.”
Confira trechos da obra:
“Ele jurou que mesmo quando for adulto e crescido e
cabeludo, com a pele grossa e dura como seu pai, como todos acabarão sendo, ele
se lembrará do menino que é agora, vai gravá-lo profundamente na memória,
porque talvez haja coisas que se esquecem nesse processo de se tornar adulto,
difícil dizer exatamente o que, mas com certeza existe algo que faz com que
todos os adultos se pareçam um pouco, não no rosto, é claro, nem no caráter,
mas numa coisa que existe em todos, uma coisa à qual todos eles pertencem, e à
qual até obedecem, e quando Aharon for assim, crescido como eles, vai sussurrar
para si mesmo pelo menos uma vez por dia I am go-ing; I am play-ing; I am
Aharoning; e assim se lembrará de que ele também é um pouco esse Aharon
particular, por baixo de todas essas coisas gerais. (...) Lentamente ele passa
os olhos pelas fileiras. É com isso que terá um dia de construir suas
lembranças?”
“Olhe bem, Aharon fica admirado: cada um parece
centrado em si mesmo, mergulhado em pensamentos e calado, até mesmo triste, e
no entanto nosso grupo é como um todo barulhento e parece alegre”
“Aharon se espantou porque a mãe está proibida de
gritar com Iochi, já faz quase dois anos que está proibida, porque isso provoca
assobios no ouvido dela.”
“No jantar o silêncio foi total. Todos se
concentraram em seus pratos. Junto à porta estava uma mochila preparada para o
serviço de reservistas do exército, e Aharon pensou como ia ser se o pai também
tivesse de ir e ele ficasse sozinho com a mãe.”
O LIVRO DA GRAMÁTICA INTERIOR
Autor:
David Grossman
Trad.:
Paulo Geiger
Editora:
Companhia das Letras (535 págs.; R$ 59,90; R$ 39,90 o e-book)
http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,david-grossman-um-dos-principais-autores-israelenses-lanca-livro-sobre-a-adolescencia,1636193
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