A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS
MARKUS ZUSAC
Tradução: Vera Ribeiro
Intrínseca
p r ó l o g o
Uma c o r d i l h e i r a
d e
e s c o m b r o s
o n d e n o s s a n a r r a d o r a
a p r e s e n t a :
ela mesma
as cores
e a roubadora de livros
M o r t e e C h o c o l a t e
Primeiro,
as cores.
Depois, os humanos.
Em geral, é assim que vejo as coisas.
Ou, pelo menos, é o que tento.
. e i s u m p
e q u e n o f a t o.
Você vai morrer.
Com absoluta sinceridade, tento ser
otimista a respeito de todo esse assunto, embora a maioria das pessoas sinta-se
impedida de acreditar em mim, sejam quais forem meus protestos. Por favor,
confie
em mim. Decididamente, eu sei ser animada, sei ser amável. Agradável. Afável. E esses são
apenas os As.
Só não me peça para ser simpática.
Simpatia não tem nada a ver comigo.
. r e a ç ã o a o f a
t o s u p r a c i t a d o .
Isso preocupa você?
Insisto — não tenha medo.
Sou tudo, menos injusta.
— É claro, uma apresentação.
Um começo.
Onde estão meus bons modos?
Eu poderia me apresentar
apropriadamente, mas, na verdade, isso não é necessário. Você me conhecerá o
suficiente e bem depressa, dependendo de uma gama diversificada de variáveis.
Basta dizer que, em algum ponto do tempo, eu me erguerei sobre você, com toda a
cordialidade possível. Sua alma estará em meus braços. Haverá uma cor pousada
em meu ombro. E levarei você embora gentilmente.
Nesse momento, você estará deitado(a).
(Raras vezes encontro pessoas de pé.) Estará solidificado(a)
em seu corpo. Talvez haja uma
descoberta; um grito pingará pelo ar. O único som que ouvirei depois
disso será minha própria respiração,
além do som do cheiro de meus passos.
A pergunta é: qual será a cor de tudo
nesse momento em que eu chegar para buscar você? Que dirá o céu?
Pessoalmente, gosto do céu cor de
chocolate. Chocolate escuro, bem escuro. As pessoas dizem
que ele condiz comigo. Mas procuro
gostar de todas as cores que vejo — o espectro inteiro. Um bilhão de sabores,
mais ou menos, nenhum deles exatamente igual, e um céu para chupar devagarinho.
Tira a contundência da tensão. Ajuda-me a relaxar.
. u m a p e q u e n a t e o r i a .
As pessoas só observam as cores do dia
no começo e no fim, mas, para mim, está muito claro que o
dia se funde através de uma multidão de
matizes e entonações, a cada momento que passa.
Uma só hora pode consistir em milhares de cores diferentes.
Amarelos céreos, azuis borrifados de
nuvens. Escuridões enevoadas.
No meu ramo de atividade, faço questão
de notá-los.
Já que aludi a ele, o único dom que me
salva é a distração. Ela preserva minha sanidade. Ajudame a agüentar,
considerando-se há quanto tempo venho executando este trabalho. O problema é:
quem poderia me substituir? Quem tomaria meu lugar, enquanto eu tiro uma folga
em seus destinospadrão
de férias, no estilo resort, seja ele tropical, seja da variedade
estação de inverno? A resposta, é claro, é ninguém, o que me instigou a tomar
uma decisão consciente e deliberada — fazer da distração minhas férias. Nem
preciso dizer que tiro férias à prestação. Em cores. Mesmo assim, é possível
que você pergunte: por que é mesmo que ela precisa de férias? De que precisa se distrair?
O que me traz à minha colocação
seguinte. São os humanos que sobram. Os sobreviventes. É para eles que não
suporto olhar, embora ainda falhe em muitas ocasiões. Procuro deliberadamente
as cores para tirá-los da cabeça, mas, vez por outra, sou testemunha dos que
ficam para trás, desintegrando-se no quebra-cabeça do reconhecimento, do
desespero e da surpresa. Eles têm corações vazados. Têm pulmões esgotados.
O que, por sua vez, me traz ao assunto
de que lhe estou falando esta noite, ou esta manhã, ou seja lá quais forem a
hora e a cor. É a história de um desses sobreviventes perpétuos — uma
especialista
em ser deixada para trás.
É só uma pequena história, na verdade,
sobre, entre outras coisas:
* Uma menina
* Algumas palavras
* Um acordeonista
* Uns alemães fanáticos
* Um lutador judeu
* E uma porção de roubos
Vi três vezes a menina que roubava
livros.
A o l a d o d a l i
n h a
f é r r e a
Primeiro
aparece uma coisa branca. Do tipo ofuscante. É muito provável que alguns de
vocês achem que o branco não é realmente uma cor, e todo esse tipo batido de
absurdo. Bem, estou aqui para lhes dizer que é. O branco é sem dúvida uma cor
e, pessoalmente, acho que você não vai querer discutir comigo.
. u m a n ú n c i o t r a n q ü i l i
z a d o r .
Por favor, mantenha a calma, apesar
da ameaça anterior.
Sou só garganta...
Não sou violenta.
Não sou maldosa.
Sou um resultado.
Sim, era branco.
Era
como se o globo inteiro estivesse vestido de neve. Como se houvesse enfiado
aquilo, do jeito
que se enfia um suéter. Junto à linha
de trem, as pegadas afundavam até as canelas. As árvores usavam cobertores de
gelo.
. . .
Não podiam simplesmente deixá-lo ali no
chão. De momento, não era um problema tão grande, mas, logo, logo, a linha
seria desobstruída mais adiante e o trem precisaria seguir viagem. Havia dois
guardas. Havia uma mãe com sua filha. Um cadáver.
A mãe, a menina e o cadáver continuaram
obstinados e calados.
— Bem, o que mais você quer que eu
faça?
Os guardas eram um alto e um baixo. O
alto sempre falava primeiro, embora não fosse o responsável. Olhava para o
menor, mais rechonchudo. O do rosto vermelho e suculento.
— Bem — foi a resposta — não podemos só
deixá-los assim, não é?
O alto estava perdendo a paciência. —
Por que não?
E o baixote por pouco não explodiu.
Ergueu os olhos para o queixo do altão e gritou:
— Spinnst du?!
Você está variando? – A aversão em suas bochechas adensava-se a cada momento. Sua
pele foi-se alargando. — Vamos — disse, tropeçando na neve. — Levaremos todos
os três de volta, se for preciso. Faremos a notificação na próxima parada.
Quanto a mim, eu já havia cometido o
mais elementar dos erros. Não consigo lhe explicar a intensidade de minha
decepção comigo mesma. Originalmente, eu tinha feito tudo certo:
Estudei o céu ofuscante, branco feito
neve, que estava na janela do trem em movimento. Praticamente o inalei, mas, mesmo assim, titubeei. Cedi —
fiquei interessada. Na menina. Fui vencida pela curiosidade e me resignei a
ficar o tempo que meu horário permitisse, e observei.
Vinte e três minutos depois, quando o
trem estava parado, desci com eles. Havia uma alminha em meus braços. Postei-me
meio à direita. A dupla dinâmica de guardas do trem voltou à mãe, à menina e ao
corpinho masculino.
Lembro-me claramente de que estava
respirando alto nesse dia. Fiquei surpresa com o fato de os guardas não me
notarem ao passarem por mim. Agora o mundo estava afundando, sob o peso de toda
aquela neve.
Uns dez metros à minha esquerda,
talvez, postava-se a menina pálida, de estômago vazio, enregelada. Sua boca
tremia. Seus braços frios estavam cruzados. Havia lágrimas cristalizadas no
rosto da roubadora de livros.
O e c l i p s e
Depois
vem uma assinatura preta, para mostrar os pólos da minha versatilidade, se
assim lhe agrada. Foi no momento mais escuro antes do alvorecer. Dessa vez, eu
tinha ido buscar um homem de uns vinte e quatro anos, talvez. De certo modo,
foi uma coisa bonita. O avião ainda tossia. A fumaça vazava de seus dois
pulmões.
Quando ele caiu, fez três sulcos
profundos na terra. Agora suas asas eram braços serrados. Nada
de bater, nunca mais. Não para aquela
avezinha metálica.
. o u t r o s p e q u e n o s f a t o
s .
Às vezes eu chego cedo demais.
Apresso-me,
e algumas pessoas se agarram
por mais tempo à vida do que seria
esperável.
Após uma pequena coleção de minutos, a
fumaça se esgotou. Não restava mais nada para acontecer.
Primeiro chegou um menino, com a
respiração desordenada e o que parecia ser uma caixa de ferramentas.
Com grande inquietação, aproximou-se do
cockpit e observou o piloto, avaliando se
estava vivo, o que aliás ainda estava, àquela altura. A roubadora de livros
chegou talvez trinta segundos depois.
Anos se haviam passado, mas eu a
reconheci. Estava arfante. Da caixa de ferramentas, o menino tirou, quem havia
de imaginar, um ursinho de pelúcia. Estendeu a mão pelo pára-brisa partido e o
colocou no peito do piloto. O ursinho sorridente sentou-se, aninhado entre os
destroços amontoados do homem e o sangue. Minutos depois, arrisquei a sorte. Era
o momento certo. Entrei, soltei a alma dele e a levei embora gentilmente.
Só restaram o corpo, o cheiro minguante
de fumaça e o ursinho de pelúcia sorridente.
Quando chegou toda a multidão, é claro
que as coisas haviam mudado. O horizonte começava a se acinzentar. O que
restava de negrume no alto já não passava de um rabisco, e desaparecia
depressa.
O homem, em comparação, estava cor de
osso. Pele cor de esqueleto. Uniforme amarrotado. Tinha
os olhos frios e castanhos — feito
manchas de café —, e a última garatuja lá do alto formou o que me pareceu ser
uma forma curiosa, mas conhecida. Uma assinatura.
A multidão fez o que fazem as
multidões. Enquanto eu passava, cada pessoa ficou brincando com a quietude
daquilo. Uma pequena mistura de movimentos desconexos das mãos, frases abafadas
e guinadas mudas, constrangidas.
Quando me virei e olhei para o avião, a
boca aberta do piloto parecia sorrir. Uma última piada obscena. Mais um final
de piada humano. Ele continuou amortalhado em seu uniforme, enquanto a luz mais
cinzenta fazia uma queda-de-braço no céu. Como acontecia com muitos outros, quando
comecei a me afastar, pareceu haver de novo uma sombra ligeira, um instante
final de eclipse — o reconhecimento da partida de outra alma.
Sabe, assim por um momento, apesar de
todas as cores que afetam e se atracam com o que vejo
neste mundo, comigo é freqüente captar
um eclipse quando morre um ser humano.
Já vi milhões deles.
Vi mais eclipses do que gosto de
lembrar.
A b a n d e i r a
Na
última vez que a vi, estava vermelho. O céu parecia uma sopa, borbulhando e se
mexendo. Queimado em alguns lugares. Havia migalhas pretas e pimenta riscando a
vermelhidão. Antes, houvera crianças pulando amarelinha ali, na rua que
lembrava páginas manchadas de gordura.
Quando cheguei, ainda era possível
ouvir seu eco. Os pés batendo no chão. As vozes infantis rindo, e
os sorrisos feito sal, mas se
estragando depressa.
Depois, bombas.
Dessa vez, foi tudo tarde demais.
As sirenes. Os gritos malucos no rádio.
Tudo muito tarde.
Em minutos, montes de concreto e terra
se superpuseram e empilharam. As ruas eram veias rompidas. O sangue escorreu
até secar no chão e os cadáveres ficaram presos ali, feito madeira boiando depois
da enxurrada. Estavam colados no chão, até o último deles. Um pacote de almas. Seria
o destino?
O azar?
Foi isso que os grudou assim?
É claro que não.
Não sejamos burros. Provavelmente, teve
mais a ver com as bombas atiradas, lançadas por seres humanos escondidos nas
nuvens.
Sim, agora o céu era de um vermelho
devastador, desses feitos em casa. A cidadezinha alemã fora rasgada com
violência, mais uma vez. Flocos de neve feitos de cinzas caíam tão encantadoramente,
que a gente ficava tentada a espichar a
língua para pegá-los, prová-los. Só que eles queimariam os lábios. Cozinhariam
a boca. Claramente, eu vi. Estava prestes a ir embora, quando a encontrei ajoelhada.
Uma cordilheira de escombros fora escrita, desenhada, erigida à sua volta. Ela estava
agarrada a um livro.
Afora todo o resto, a menina que
roubava livros queria desesperadamente voltar para o porão, escrever ou ler sua
história até o fim, uma última vez.
Olhando para trás, vejo tudo muito
óbvio em seu rosto. Ela morria de saudade daquilo — da segurança, da
familiaridade —, mas não conseguiu se mexer. Além disso, o porão já nem
existia. Era parte da paisagem mutilada.
Por favor, mais uma vez, peço-lhe que
acredite em mim.
Tive vontade de parar. Agachar-me. Tive
vontade de dizer:
— Sinto muito, menina. Mas isso não é
permitido.
Não me agachei. Não falei. Em vez
disso, observei-a por algum tempo. Quando ela conseguiu se mexer, acompanhei-a.
. . .
Ela deixou cair o livro. Ajoelhou-se. A
roubadora de livros uivou. Seu livro foi pisoteado várias vezes quando
começaram a limpeza e, embora tivesse havido ordens de que se limpasse apenas a
confusão de concreto, o objeto mais precioso da menina foi jogado num caminhão de
lixo, e foi nesse ponto que me senti obrigada.
Subi na caçamba e o peguei com minha
mão, sem me dar conta de que o guardaria e o olharia milhares de vezes, ao
longo dos anos. Observaria os lugares em que nos cruzássemos e me deslumbraria com
o que a menina viu e a maneira como sobre16 viveu. Isso é o melhor que posso fazer
— ver aquilo se encaixar em tudo o mais de que fui espectadora naqueles tempos.
Quando me lembro dela, vejo uma longa
lista de cores, mas são as três em que a vi em carne e osso que têm mais
ressonância. Vez ou outra, consigo flutuar muito acima daqueles três momentos.
Fico suspensa, até que uma verdade séptica sangra para a claridade. É aí que as
vejo numa fórmula.
. a s c o r e s .
vermelho: branco: preto:
Elas caem umas sobre as outras. A
assinatura rabiscada em preto sobre o branco global ofuscante, em cima do
vermelho espesso de sopa. Sim, lembro-me dela com freqüência e, num de meu
vasto sortimento de bolsos, guardei sua história para contar. É uma dentre a
pequena legião que carrego, cada qual extraordinária por si só. Cada qual uma
tentativa — uma tentativa que é um salto gigantesco — de me provar que você e a
sua existência humana valem a pena.
Aqui está ela. Uma dentre um punhado. A menina que roubava livros. Se quiser, venha comigo. Vou lhe
contar uma história. Vou lhe mostrar uma coisa.
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