Cartas de James Joyce para sua mecenas serão reunidas em livro
Maria
Fernanda Rodrigues
O
Estado de S. Paulo - 13 Junho 2015
Escritor será lembrado esta semana por causa do Bloomsday, cuja programação começa hoje em SP; livro infantil também está no prelo
James Joyce (1882- 1941) estava em Paris, no dia
27 de junho de 1924, quando escreveu uma de suas inúmeras cartas a Harriet
Weaver (1876-1961), sua benfeitora. Fazia 17 dias que ele tinha feito uma
cirurgia no olho, a que ele se referiu como: “Mais desagradável do que eu
esperava seja pela pouca cocaína usada seja pelo meu estado nervoso - a última
razão provavelmente”. Mas mais importante do que suas reclamações acerca da
saúde, uma constante em seus escritos, lemos, nesta carta, a primeira
referência ao Bloomsday, celebrado anualmente no mundo todo em 16 de junho, dia
em que o escritor irlandês situa sua obra-prima, Ulysses (1922).
O autor. Ele escrevia sobre tudo - de falta de leitores a esparadrapos
Ele escreve: “Há um grupo de pessoas que celebram
aquilo que eles chamam de Bloom’s day - 16 de junho. Eles me enviaram
hortênsias, brancas e azuis, tingidas. Tenho de convencer a mim mesmo que
escrevi esse livro. Eu era capaz de falar com inteligência sobre ele. Se por
acaso agora tento explicar às pessoas o que supostamente estou escrevendo eu
vejo o assombro reduzi-las ao silêncio”. Este fragmento (leia a íntegra
abaixo) está em um dos textos - extensos e econômicos em vírgulas - que
integrarão Cartas à Minha Benfeitora (título provisório), organizado e
traduzido por Dirce Waltrick do Amarante e por Sérgio Medeiros, e que a
Iluminuras pretende lançar no último trimestre.
A quem pensa que esse fetiche todo poderia
incomodar o autor, Dirce responde que ele, surpreso com a recepção da obra,
ficou feliz com o Bloomsday. “Ele coloca na carta que foi um alívio, depois
daqueles problemas de vista que ele teve, saber dessa festa, mas meio que dá uma
reclamadinha dizendo que o próximo, o Finnegans Wake, não atingiria
tantas pessoas assim”, conta Dirce, que prepara, ainda, um volume de ensaios
sobre Joyce e seu universo.
Este não é o primeiro livro de correspondências
de James Joyce que o casal organiza. Tudo começou com Cartas a Nora,
de 2012. Depois eles pensaram em se debruçar sobre as cartas para o irmão, mas
lendo biografias do autor foram percebendo o papel central que a mecenas teve
na vida do escritor.
“Quando falamos em Joyce, pensamos logo em Sylvia
Beach (1887-1962; dona da lendária livraria Shakespeare and Company e editora
de Ulysses), mas Harriet Weaver foi importantíssima. Ela não era apenas
sua benfeitora; ela escutava, dava conselho, ajudava sua família, tanto que
pagou o enterro dele e de Nora, cuidou da filha deles”, explica Dirce. A
organizadora cita uma carta que comprova essa proximidade toda, embora os dois
tenham se encontrado poucas vezes. “Ele estava falido, sem dinheiro para mais
nada, já que ele gastou tudo no tratamento da filha, e diz: ‘Você não pode me
culpar de ter gasto todo o meu dinheiro com a minha filha e ter ido à falência
por causa disso porque você mesma gastou todo o seu dinheiro comigo’”.
Harriet Weaver. Eles se encontram
poucas vezes, mas ela foi figura central na vida de Joyce
As cartas vão de 1914 a 1936. Elas serão
organizadas cronologicamente e será possível acompanhar seu caminho como
escritor, já que entre seus assuntos preferidos estavam as dificuldades de
conquistar leitores e vender livros, a falta de espaço na imprensa para
resenhas e as idas e vindas com suas obras. Ele também gostava de falar sobre a
fragilidade de sua saúde e questões domésticas, como as frequentes mudanças de
cidades e a dificuldade de levar a família, que a cada novo lugar tinha de
aprender uma língua. Há momentos engraçados, também, como quando ele decide
comentar todos os boatos que circulavam sobre ele - que era louco, perverso,
libidinoso, espião da C.I.A., milionário, etc.
Os organizadores pensaram em traduzir todas as
missivas, mas se deram conta de que ele era muito repetitivo. “Quisemos mostrar
desde o Joyce escritor ao Joyce humano e preparamos um panorama geral do que
ele escrevia para ela”, diz. Não se tem notícia das respostas.
Confira a
carta de 1924
Para
Harriet Shaw Weaver
27 de
junho de 1924
Victoria
Palace Hôtel
6 rue
Blaise Desgoffe, Paris
Cara senhorita Weaver: Passaram-se dezessete dias
desde a cirurgia que foi mais desagradável do que eu esperava seja pela pouca
cocaína usada seja pelo meu estado nervoso - a última razão provavelmente. O
olho ainda está coberto de ataduras mas consigo ler com o outro tão bem quanto
possível. Estou com muita dúvida sobre o resultado. Até agora não há
praticamente nenhuma melhora na visão e isso me deprime muito. Eu gostaria de
ir embora mas o Dr. Bosh continua a me assegurar que a visão vai voltar. A
culpa não é dele. Até fico contente que ele tenha feito uma iridectomia pois é
o único recurso seguro contra o glaucoma se eu tiver outro ataque de irite
- que talvez o destino não permita.
Eles dizem que eu estou muito bem e uma pessoa
amável me presenteou com um apetite. Mas duvido do poder da íris de absorver os
depósitos no olho. O duro trabalho maçante e os contratempos em Trieste
(raramente eu comia alguma coisa, lecionava até tarde toda noite e comprei uma
muda de roupa em nove anos, mas o movimento literário irlandês finalmente se
deu conta da minha existência) e também o trabalho de Ulisses devem ter
arruinado a minha força. Fui envenenado de muitas maneiras. Menciono isso
porque toda vez que sou obrigado a me deitar com os olhos fechados eu vejo um
filme passando sem parar e isso me faz lembrar de coisas que eu havia quase
esquecido.
A visão que tenho agora é suficiente para eu ir
tocando a vida, mas não para fazer o tipo de trabalho que me sinto estimulado a
fazer exceto com muito vagar e sofridamente e em condições muito favoráveis de
luz e clima que Paris não oferece. (Anexo uma carta da agência de Nice.
Enviei-lhes o contrato de volta para a inserção de uma cláusula que me
permita sublocar e aqui está a resposta. Se eu posso me expressar assim a
senhora não parece ser uma "boa" sogra.) Ainda espero que o Dr. Bosch
esteja certo.
Há um grupo de pessoas que celebram aquilo que eles
chamam de Bloom's day -- 16 de junho. Eles me enviaram hortênsias, brancas e
azuis, tingidas. Tenho de convencer a mim mesmo que escrevi esse livro. Eu era
capaz de falar com inteligência sobre ele. Se por acaso agora tento explicar às
pessoas o que supostamente estou escrevendo eu vejo o assombro reduzi-las
ao silêncio. Por exemplo Shaun, depois de uma palestra quaresmal extensa
absurda e para lá de incestuosa para Izzy, sua irmã, despede-se dela "com
uma meia olhadela de maroto irlandês sob o tufo das sobrancelhas paralelas
dele". Essas são as palavras que o leitor verá mas não aquelas que ele
ouvirá. Ele também alude a Shem como meu irmão "soamheis" ; ele quer
dizer siamês.
Este é um quarto melhor, pé direito alto e mais
iluminado. Eu acho que a minha memória está ficando fraca então na clínica eu
comecei a decorar a Dama do Lago de sir Walter Scott, primeiro Baronet.
Em três dias eu decorei 500 linhas e posso repeti-las sem cometer erros. Nenhum
dos meus filhos consegue fazer isso. Não é um sinal de inteligência (preciso
continuar com a caneta da minha filha) mas é muito útil. Eu mesmo inventei todo
um sistema - uma grande parte dele é bem pueril - graças ao qual evito que o
meu cérebro se enfraqueça mas estou sendo forçado a renunciar a boa parte disso
em razão do modo grotesco como vivo agora. Eu mostrei ao Sr. Larbaud os sinais
que eu estava usando nas minhas anotações HCE Anna Livia [ Shem ?
Shaun. Ele riu deles mas isso economiza tempo. Espero que vocês se encontrem. É
um prazer conversar com ele. Ele sabe o que quer dizer, mais ou menos, diz e
escreve o que tem que dizer.
Sim, o Sr. Tuohy é a pessoa de quem eu lhe
falei. Fico feliz que você tenha gostado do retrato. Eu gosto das pregas do
paletó e da gravata. Ele não lhe contou tudo sobre a posse do retrato porque
ele está indo tratar de um pequeno assunto com uma pessoa em Dublin primeiro.
Como você deve ter visto pelos olhos dele ele é muito malicioso - no bom
sentido da palavra se ela tem um. Posso imaginar a cena e ela me diverte também
mas eu não faria isso.
Tentei deixar esta carta alegre e não perderei a
esperança.
(Tradução
Dirce Waltrick do Amarante e Sérgio Medeiros)
Postal
enviado para Stephen Joyce em 1937 vira livro
Quando
James Joyce termina de escrever Finnegans Wake, conta Dirce
Waltrick do Amarante, já muito cansado, ele diz que a partir dali se dedicaria
à literatura para crianças. “Pena que não deu tempo”, comenta sua tradutora.
Mas ele deixou material que seria transformado em publicações para crianças,
como Os Três Macaqueiros de Zurique, feito com base em postal
enviado ao seu neto e encontrado no meio da correspondência dele. A obra,
também no prelo da Iluminuras, ganhou ilustrações de Michaella Pivetti. É uma
história breve, mas muito criativa, explica Dirce, e uma boa forma de começar a
apresentar o complexo universo de Joyce aos pequenos.
http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,cartas-de-james-joyce-para-sua-mecenas-serao-reunidas-em-livro,1705454
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