sábado, 3 de outubro de 2015

Cartas de James Joyce para sua mecenas serão reunidas em livro, por Maria Fernanda Rodrigues



Cartas de James Joyce para sua mecenas serão reunidas em livro

Maria Fernanda Rodrigues

O Estado de S. Paulo - 13 Junho 2015

Escritor será lembrado esta semana por causa do Bloomsday, cuja programação começa hoje em SP; livro infantil também está no prelo

James Joyce (1882- 1941) estava em Paris, no dia 27 de junho de 1924, quando escreveu uma de suas inúmeras cartas a Harriet Weaver (1876-1961), sua benfeitora. Fazia 17 dias que ele tinha feito uma cirurgia no olho, a que ele se referiu como: “Mais desagradável do que eu esperava seja pela pouca cocaína usada seja pelo meu estado nervoso - a última razão provavelmente”. Mas mais importante do que suas reclamações acerca da saúde, uma constante em seus escritos, lemos, nesta carta, a primeira referência ao Bloomsday, celebrado anualmente no mundo todo em 16 de junho, dia em que o escritor irlandês situa sua obra-prima, Ulysses (1922). 


O autor. Ele escrevia sobre tudo - de falta de leitores a esparadrapos

Ele escreve: “Há um grupo de pessoas que celebram aquilo que eles chamam de Bloom’s day - 16 de junho. Eles me enviaram hortênsias, brancas e azuis, tingidas. Tenho de convencer a mim mesmo que escrevi esse livro. Eu era capaz de falar com inteligência sobre ele. Se por acaso agora tento explicar às pessoas o que supostamente estou escrevendo eu vejo o assombro reduzi-las ao silêncio”. Este fragmento (leia a íntegra abaixo) está em um dos textos - extensos e econômicos em vírgulas - que integrarão Cartas à Minha Benfeitora (título provisório), organizado e traduzido por Dirce Waltrick do Amarante e por Sérgio Medeiros, e que a Iluminuras pretende lançar no último trimestre.
A quem pensa que esse fetiche todo poderia incomodar o autor, Dirce responde que ele, surpreso com a recepção da obra, ficou feliz com o Bloomsday. “Ele coloca na carta que foi um alívio, depois daqueles problemas de vista que ele teve, saber dessa festa, mas meio que dá uma reclamadinha dizendo que o próximo, o Finnegans Wake, não atingiria tantas pessoas assim”, conta Dirce, que prepara, ainda, um volume de ensaios sobre Joyce e seu universo.
Este não é o primeiro livro de correspondências de James Joyce que o casal organiza. Tudo começou com Cartas a Nora, de 2012. Depois eles pensaram em se debruçar sobre as cartas para o irmão, mas lendo biografias do autor foram percebendo o papel central que a mecenas teve na vida do escritor. 
“Quando falamos em Joyce, pensamos logo em Sylvia Beach (1887-1962; dona da lendária livraria Shakespeare and Company e editora de Ulysses), mas Harriet Weaver foi importantíssima. Ela não era apenas sua benfeitora; ela escutava, dava conselho, ajudava sua família, tanto que pagou o enterro dele e de Nora, cuidou da filha deles”, explica Dirce. A organizadora cita uma carta que comprova essa proximidade toda, embora os dois tenham se encontrado poucas vezes. “Ele estava falido, sem dinheiro para mais nada, já que ele gastou tudo no tratamento da filha, e diz: ‘Você não pode me culpar de ter gasto todo o meu dinheiro com a minha filha e ter ido à falência por causa disso porque você mesma gastou todo o seu dinheiro comigo’”.
                                                                             

          Harriet Weaver. Eles se encontram poucas vezes, mas ela foi figura central na vida de Joyce

As cartas vão de 1914 a 1936. Elas serão organizadas cronologicamente e será possível acompanhar seu caminho como escritor, já que entre seus assuntos preferidos estavam as dificuldades de conquistar leitores e vender livros, a falta de espaço na imprensa para resenhas e as idas e vindas com suas obras. Ele também gostava de falar sobre a fragilidade de sua saúde e questões domésticas, como as frequentes mudanças de cidades e a dificuldade de levar a família, que a cada novo lugar tinha de aprender uma língua. Há momentos engraçados, também, como quando ele decide comentar todos os boatos que circulavam sobre ele - que era louco, perverso, libidinoso, espião da C.I.A., milionário, etc.
Os organizadores pensaram em traduzir todas as missivas, mas se deram conta de que ele era muito repetitivo. “Quisemos mostrar desde o Joyce escritor ao Joyce humano e preparamos um panorama geral do que ele escrevia para ela”, diz. Não se tem notícia das respostas.

Confira a carta de 1924
Para Harriet Shaw Weaver
27 de junho de 1924                                              
Victoria Palace Hôtel
6 rue Blaise Desgoffe, Paris

Cara senhorita Weaver: Passaram-se dezessete dias desde a cirurgia que foi mais desagradável do que eu esperava seja pela pouca cocaína usada seja pelo meu estado nervoso - a última razão provavelmente. O olho ainda está coberto de ataduras mas consigo ler com o outro tão bem quanto possível. Estou com muita dúvida sobre o resultado. Até agora não há praticamente nenhuma melhora na visão e isso me deprime muito. Eu gostaria de ir embora mas o Dr. Bosh continua a me assegurar que a visão vai voltar. A culpa não é dele. Até fico contente que ele tenha feito uma iridectomia pois é o único recurso seguro contra o glaucoma se eu tiver outro ataque de irite  - que talvez o destino não permita.
Eles dizem que eu estou muito bem e uma pessoa amável me presenteou com um apetite. Mas duvido do poder da íris de absorver os depósitos no olho. O duro trabalho maçante e os contratempos em Trieste (raramente eu comia alguma coisa, lecionava até tarde toda noite e comprei uma muda de roupa em nove anos, mas o movimento literário irlandês finalmente se deu conta da minha existência) e também o trabalho de Ulisses devem ter arruinado a minha força. Fui envenenado de muitas maneiras. Menciono isso porque toda vez que sou obrigado a me deitar com os olhos fechados eu vejo um filme passando sem parar e isso me faz lembrar de coisas que eu havia quase esquecido.
A visão que tenho agora é suficiente para eu ir tocando a vida, mas não para fazer o tipo de trabalho que me sinto estimulado a fazer exceto com muito vagar e sofridamente e em condições muito favoráveis de luz e clima que Paris não oferece. (Anexo uma carta da agência de Nice. Enviei-lhes o contrato  de volta para a inserção de uma cláusula que me permita sublocar e aqui está a resposta. Se eu posso me expressar assim a senhora não parece ser uma "boa" sogra.) Ainda espero que o Dr. Bosch esteja certo.
Há um grupo de pessoas que celebram aquilo que eles chamam de Bloom's day -- 16 de junho. Eles me enviaram hortênsias, brancas e azuis, tingidas. Tenho de convencer a mim mesmo que escrevi esse livro. Eu era capaz de falar com inteligência sobre ele. Se por acaso agora tento explicar às pessoas o que supostamente estou escrevendo  eu vejo o assombro reduzi-las ao silêncio. Por exemplo Shaun, depois de uma palestra quaresmal extensa absurda e para lá de incestuosa para Izzy, sua irmã, despede-se dela "com uma meia olhadela de maroto irlandês sob o tufo das sobrancelhas paralelas dele". Essas são as palavras que o leitor verá mas não aquelas que ele ouvirá. Ele também alude a Shem como meu irmão "soamheis" ; ele quer dizer siamês.    
Este é um quarto melhor, pé direito alto e mais iluminado. Eu acho que a minha memória está ficando fraca então na clínica eu comecei a decorar a Dama do Lago  de sir Walter Scott, primeiro Baronet. Em três dias eu decorei 500 linhas e posso repeti-las sem cometer erros. Nenhum dos meus filhos consegue fazer isso. Não é um sinal de inteligência (preciso continuar com a caneta da minha filha) mas é muito útil. Eu mesmo inventei todo um sistema - uma grande parte dele é bem pueril - graças ao qual evito que o meu cérebro se enfraqueça mas estou sendo forçado a renunciar a boa parte disso em razão do modo grotesco como vivo agora. Eu mostrei ao Sr. Larbaud os sinais que eu estava usando nas minhas anotações   HCE  Anna Livia [ Shem ? Shaun. Ele riu deles mas isso economiza tempo. Espero que vocês se encontrem. É um prazer conversar com ele. Ele sabe o que quer dizer, mais ou menos, diz e escreve o que tem que dizer.
Sim, o Sr. Tuohy  é a pessoa de quem eu lhe falei. Fico feliz que você tenha gostado do retrato. Eu gosto das pregas do paletó e da gravata. Ele não lhe contou tudo sobre a posse do retrato porque ele está indo tratar de um pequeno assunto com uma pessoa em Dublin primeiro. Como você deve ter visto pelos olhos dele ele é muito malicioso - no bom sentido da palavra se ela tem um. Posso imaginar a cena e ela me diverte também mas eu não faria isso. 
Tentei deixar esta carta alegre e não perderei a esperança.
(Tradução Dirce Waltrick do Amarante e Sérgio Medeiros)

Postal enviado para Stephen Joyce em 1937 vira livro
Quando James Joyce termina de escrever Finnegans Wake, conta Dirce Waltrick do Amarante, já muito cansado, ele diz que a partir dali se dedicaria à literatura para crianças. “Pena que não deu tempo”, comenta sua tradutora. Mas ele deixou material que seria transformado em publicações para crianças, como Os Três Macaqueiros de Zurique, feito com base em postal enviado ao seu neto e encontrado no meio da correspondência dele. A obra, também no prelo da Iluminuras, ganhou ilustrações de Michaella Pivetti. É uma história breve, mas muito criativa, explica Dirce, e uma boa forma de começar a apresentar o complexo universo de Joyce aos pequenos. 


http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,cartas-de-james-joyce-para-sua-mecenas-serao-reunidas-em-livro,1705454

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