Cartas de Dalton Trevisan em acervo no Rio detalham
processo criativo do escritor mais recluso do país
RAQUEL
COZER
MARCO RODRIGO ALMEIDA
ENVIADOS ESPECIAIS AO RIO
MARCO RODRIGO ALMEIDA
ENVIADOS ESPECIAIS AO RIO
FOLHA DE SÃO PAULO, 01/08/2015
Uma pequena parte de uma das biografias mais
misteriosas do cenário literário brasileiro repousa há décadas nos arquivos da
Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio.
Ela aparece na forma de 49 cartas e bilhetes que
Dalton Trevisan, o mais recluso escritor do país, enviou desde o início da
carreira a colegas cujos acervos estão hoje na instituição, vinculada ao
Ministério da Cultura.
Aos 90 anos, e há quase 50 sem dar entrevistas, o
contista conhecido como Vampiro de Curitiba -nome de livro que lançou em 1965-
contou com a discrição de escritores com quem se correspondeu, mas não pôde
evitar que, com a morte deles, suas cartas fossem parar em acervo público.
Os documentos, enviados de 1946 a 1994 a Carlos
Drummond de Andrade, Pedro Nava, Antonio Callado, Carlos Castello Branco e José
Geraldo Vieira, estão disponíveis para pesquisa na mesma instituição, que,
neste ano, esteve no noticiário graças a papéis secretos de seu acervo -a carta
em que Mário de Andrade comenta sua sexualidade.
Com frases afiadas, características de um autor
que domina a prosa curta, as cartas de Dalton são em geral de uma página e
datilografadas. Numa, de 1960, para Castello, vê-se que o Vampiro usou
papel-carbono -ou seja, guarda as cartas que escreve.
A informação de que mantém cópias veio à tona em
2010, quando saiu "Desgracida", seu único livro que inclui também
cartas que escreveu -para Otto Lara Resende e Rubem Braga, entre outros.
Do acervo da Casa de Rui, a única presente no
livro é uma em que compara a escrita do amigo Nava a de outros grandes, como
Euclydes da Cunha e Graciliano Ramos.
A figura que emerge do material é um escritor
violentamente autocrítico ("Tinha-me decidido a não mais escrever, por
nojo das palavras", relatou a José Geraldo Vieira, em 1948) e ansioso
("Estou esperando, aflito, carta sua.
Diga-me o que achou dos contos -seja duro, implacável", diz a Castello, em 1959).
Diga-me o que achou dos contos -seja duro, implacável", diz a Castello, em 1959).
E também irônico ("Como você verá, são
histórias de violência e morte, estupro e suicídio; logo você fica sabendo que
não melhorei da colite", informa a Castello, em 1960) e carinhoso
("Bem me lembro, ahimè [ai de mim, em italiano], de como éramos jovens e
tanto nos queríamos", diz a Callado, em 1994).
A correspondência mais alentada é para Castello,
das quais estão guardadas 17 cartas, de 1957 a 1963, período em que Dalton
preparava e lançava seus primeiros livros.
O jornalista teve grande influência sobre a
produção do escritor na época em que ele estreava em âmbito nacional, a
coletânea de contos"Novelas Nada Exemplares" (1959).
Dalton pede opinião sobre contos, demonstra
admiração, agradece por sugestões. "A esculhambação é, para mim, o melhor
estímulo."
Conta que reduziu um conto de 46 para 26 páginas
após ouvir o amigo. "Apertei as malhas, como você recomendou. Com umas 15
páginas pode ser que fique boa história."
Em 26 de novembro de 1957, informa que as
sugestões foram "de grande auxílio no caso das NNE" e avisa que
pretende "ameaçá-lo com um [original de] livro por ano".
Em 18 de junho do ano seguinte, relata ter se
divertido escrevendo uma novela, "o que deve ser mau sinal; se me deu
prazer ao escrevê-la não o dará por certo a quem ler". Diz que o texto
deveria ser pornográfico, mas teve de mudar os planos porque uma
"solteirona" datilografava seus contos. "Fico-lhe devendo
portanto uma descrição de 69."
Embora não haja, na Casa de Rui, cópias das
cartas enviadas por Castello, sabe-se, pela resposta de Dalton, que o amigo não
gostou da novela.
O jornalista Carlos Marchi, autor de "Todo
Aquele Imenso Mar de Liberdade", biografia de Carlos Castello Branco, cita
brevemente no livro a relação do jornalista com Dalton Trevisan.
Embora não tenha chegado a ler as cartas de
Dalton para Castello, o biógrafo cita uma de Castello para Otto Lara Resende,
em que o primeiro se mostra "irritadíssimo com Carlinhos Oliveira, que
publicou um artigo no JB ['Jornal do Brasil'] desancando a literatura de
Trevisan".
Em carta de 20 de junho de 1959, o próprio Dalton
deixara claro a Castello o quanto havia se incomodado com a resenha negativa
sobre "Novelas Nada Exemplares".
"As cartas entre eles tinham sempre alguma
sacanagem", relata Marchi, referindo-se ao grupo de amigos que incluía
também Otto e Fernando Sabino.
Dalton enviou pelo menos 320 cartas a Otto -mas
estas estão no Instituto Moreira Salles, indisponíveis a pesquisadores, a
pedido de Dalton e dos herdeiros de Otto. Provavelmente há muitas outras cartas
de Dalton para amigos íntimos, como Nava, Drummond e Castelo, que não estão no
acervo da Rui Barbosa.
A correspondência com Pedro Nava depositada na
instituição, totalizando 20 papéis, começa com a relação paciente-médico, em
24/5/1974, com Dalton chamando-o de "Caro dr. Pedro Nava", e segue
até 29/12/1983, passando a incluir também comentários sobre a produção
literária do agora amigo, a quem Dalton chama de "meu caro Nava".
"Obrigadinho pelo fabuloso 'Galo das
Trevas'". Já estou lendo aos poucos e me deliciando -pura broinha de fubá
mimosa", diz em 1981, sobre o livro do amigo.
As cartas mais antigas são para Drummond,
enviadas entre 4/6/1946 a 26/9/1955.
Nas primeiras mensagens, o curitibano era então
um jovem prestes a completar 21 anos, que escrevia com muita formalidade ao
ídolo em busca de conselhos literários. Uma missiva de agosto de 1946 começa
assim: "Sr. Carlos Drummond de Andrade".
Dalton foi um dos fundadores, naquele ano, da
revista de "Joaquim", que circulou até 1948. Na edição número dois aparece
um poema de Drummond, "Caso do Vestido".
Nos anos seguintes, Dalton enviou livrinhos de
cordel que editava por conta própria ao poeta, que recomendava ao jovem
abandonar "as bonitas palavras, as frases de efeito".
"Além de ter opinião, você tem a honestidade
de dizê-la, doa ou não. Você não diz, como os outros: o rapaz quer elogio,
atiro-lhe uns bombons e ele me deixará em paz", escreveu Dalton em 1955.
LABORATÓRIO
Cartas revelam formação do escritor curitibano
Cartas revelam formação do escritor curitibano
31/8/48
PARA JOSÉ GERALDO VIEIRA
Meu caro José Geraldo Vieira: li o seu artigo
sobre o 7 anos num instante de profundo abatimento. Tinha-me decidido a não
mais escrever, por nojo das palavras. Foi nesta hora de abatimento que li o seu
generoso artigo, que me infunde maior confiança e, sem duvida, é motivo de
estímulo grandemente sentido. Se, algum dia, escrever outra linha deverei à sua
compreensão e bondade a coragem que me faltava para tentá-lo. Sou, muito grato,
o seu amigo
CONTEXTO Em sua única carta manuscrita das
49 disponíveis na Casa de Rui, Dalton agradece ao crítico (1897-1977) por texto
elogioso sobre seu "Sete Anos de Pastor", livro que depois ele
renegaria. A crítica sairia dois meses depois, em outubro, na revista
"Joaquim", editada pelo curitibano
25/11/54
PARA CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Meu caro Carlos Drummond de Andrade: segue mais
uma novela. Meu Deus, mais uma, dirá você. Lá vem ele (eu) com pedidos de
elogio. A questão não é de elogios, eu explico. Se não me publico em cadernos,
como aprender os meus erros? A autocrítica não basta. Se lhe digo que em
Curitiba posso dar com a cabeça na parede, não se ouve nem som na parede...
[...] Me diga, Carlos, se algum dia, por desfastio, lera "Morte dum
Gordo", o que achou dela, mesmo num simples bilhete de duas palavras:
"não gostei". Com grande abraço
CONTEXTO Pelo menos desde 1946 Dalton já
mandava contos a Drummond (1902-1987), pedindo conselhos. "A Morte dum
Gordo" foi publicado numa edição de cordel de mesmo nome, financiada por
Dalton, em 1954, ao lado de "O Beco" e "Boa Noite Senhor"
8/1/55
PARA CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Meu caro Drummond,
"...Alguma coisa a contar, você tem... É ir
se desapegando da visão literária das coisas e procurando fixá-las na sua
expressão própria, na sua complexidade e mistério, abandonando sugestões
fáceis, as comparações que são quase sempre insuficiência de expressão, as
bonitas palavras, as frases de efeito. Mas você me declara que tem 20 anos, e
não preciso dar-lhe lições daquilo que irá aprender por si...". Por que
não passei do bom começo? Duas razões me explicam, se bem que não me
justifiquem: eu e Curitiba. Admito, para argumentar, que tenho boa vontade,
ousadia, facilidade de escrever. Boa vontade não é talento, facilidade de
escrever é escrever mal, a ousadia era dos 20 anos, hoje passados. [...]
CONTEXTO Dalton reproduz comentário feito
pelo poeta em carta de 1946, sobre "Sonata ao Luar", livro que Dalton
lançou um ano antes e depois renegou
21/2/59
PARA CARLOS CASTELLO BRANCO
Meu caro Castello: a sua carta é a ponte sobre as
águas. Você tem razão em toda a linha. Confesso amargamente que a decepção de
vocês -sua e do Fernando- não é menor que a minha: minha literatura é merda e
eu que esperava tanto de mim! Seja merda (a própria escolha dos temas era um
aviso ), mas estou decidido a purificá-la até onde puder. Sozinho seria bem
mais difícil -com o auxilio de você, do Fernando, do Otto, espero ser menos
ruim escritor do que deveria ter sido. Curitiba não tem culpa nenhuma.
CONTEXTO Muito autocrítico, Dalton sempre
pedia sugestões e seguia à risca conselhos dos amigos Carlos Castello Branco
(1920-1993), Fernando Sabino (1923-2004) e Otto Lara Resende (1922-1992). Em
1957, já avisava Castello de que pretendia "ameaçá-lo com um livro por
ano"
20/6/59
PARA CARLOS CASTELLO BRANCO
Castello
[...] Já o artigo de Carpeaux é a resposta, com 10 anos de atraso, ressentimento, a dois editoriais da revista "Joaquim": "Cartas de Mário" e "500 Artigos". Basta ver a referência, numa crítica literária, à minha "comodidade burguesa". Mas não pense, meu caro Castello, que por não aceitar a opinião do Carlinhos e do Carpeaux, esteja enganado sobre o valor das "Novelas", que me parece bem pequeno. Ele tem razão ao assinalar o provincianismo da minha literatura, o que aliás nunca neguei. Nesta merda de Curitiba eu me imerdo -e a colite não será uma fatalidade do lugar?
[...] Já o artigo de Carpeaux é a resposta, com 10 anos de atraso, ressentimento, a dois editoriais da revista "Joaquim": "Cartas de Mário" e "500 Artigos". Basta ver a referência, numa crítica literária, à minha "comodidade burguesa". Mas não pense, meu caro Castello, que por não aceitar a opinião do Carlinhos e do Carpeaux, esteja enganado sobre o valor das "Novelas", que me parece bem pequeno. Ele tem razão ao assinalar o provincianismo da minha literatura, o que aliás nunca neguei. Nesta merda de Curitiba eu me imerdo -e a colite não será uma fatalidade do lugar?
CONTEXTO Dalton comenta as resenhas
negativas de Otto Maria Carpeaux (1900-1978) e José Carlos Oliveira (1934-1986)
sobre seu livro de estreia oficial, "Novelas Nada Exemplares" (1959),
creditando a má vontade do primeiro a uma vingança tardia por textos publicados
na revista que ele editara mais de dez anos antes
15 /12/94
PARA ANTONIO CALLADO
Callado, meu caro,
Obrigadinho pelas palavras doces e generosas. Bem
me lembro, ahimé, de como éramos jovens e tanto nos queríamos. Pascaliano ou
dannunziano, esporrento e lírico, o nosso Helio era um alexandrino em marcha.
Você, o único escritor inglês do Brasil, sereno e lúcido entre a multidão
ululante de bárbaros. E o grande e querido Otto, coruscante e iluminado, de
todos o mais generoso, uma infinita paciência comigo, o Autran, o Nelson e
quantos mais! até alcançar afinal a santidade, outro Simão Cireneu na agonia do
Rubem. Maior obra literária decerto realizaria, não se tivesse doado tanto com
tanta paixão a tantos.
CONTEXTO Na carta mais recente, Dalton
celebra os velhos tempos com o amigo Antonio Callado (1917-1997), lembrando
colegas como Hélio Pellegrino
(1924-1988) e Otto Lara Resende e citando o apoio
que este deu a ele e a escritores como Autran Dourado (1926-2012), Nelson
Rodrigues (1912-1980) e Rubem Braga (1913-1990)
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/08/1663176-cartas-de-dalton-trevisan-em-acervo-no-rio-detalham-processo-criativo-do-escritor-mais-recluso-do-pais.shtml
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