O JORNAL E O LIVRO
MACHADO DE ASSIS
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente no Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 10 e 12/01/1859.
AO SR. MANUEL ANTONIO DE ALMEIDA
O espírito
humano, como o heliotrópio, olha sempre de face um sol que o atrai, e para o qual ele caminha sem cessar: — é a perfectibilidade.
A evidência deste princípio, ou antes deste fato, foi claramente
demonstrada num livro de ouro, que
tornou-se o Evangelho de uma religião. Serei
eu, derradeiro dos levitas da nova arca, que me abalance a falar sobre
tão debatido e profundo assunto?
Seria loucura tentá-lo. De resto, eu
manifestei a minha profissão de fé nuns versos singelos, mas
não frios de entusiasmo, nascidos de uma discussão. Mas então tratava-se do
progresso na sua expressão genérica. Desta vez limito-me a traçar algumas
idéias sobre uma especialidade, um sintoma do adiantamento moral da humanidade.
Sou dos menos inteligentes adeptos da nova crença, mas tenho consciência que dos de mais profunda convicção. Sou
filho deste século, em cujas veias ferve o licor da esperança. Minhas
tendências, minhas aspirações, são as
aspirações e as tendências da mocidade; e a mocidade é o fogo, a confiança, o futuro, o progresso. A nós, guebros modernos do fogo intelectual, na expressão de Lamartine, não importa este ou aquele brado de descrença e
desânimo: as sedições só se realizam contra os princípios, nunca contra
as variedades.
Não há contradizê-lo. Por qualquer face que se olhe o espírito humano
descobre-se a reflexão viva de um sol ignoto. Tem-se reconhecido que
há homens para quem a evidência das teorias é uma quimera;
felizmente temos a evidência dos fatos, diante da qual os São Tomés do século têm de curvar
a cabeça.
É a época das regenerações. A Revolução
Francesa, o estrondo maior dos tempos europeus, na
bela expressão do poeta de Jocelyn, foi o passo
da humanidade para entrar neste século. O pórtico era gigantesco, e era necessário um passo de gigante para entrá-lo. Ora, esta explosão do pensamento humano concentrado na rainha da Europa não é um sintoma de progresso? O que era a Revolução Francesa senão a idéia que se fazia república, o espírito humano que tomava a toga democrática pelas mãos do povo mais democrático do
mundo? Se o pensamento se fazia liberal é que tomava a sua verdadeira face. A
humanidade, antes de tudo, é republicana.
Tudo se regenera: tudo toma uma nova face. O jornal é um sintoma, um exemplo desta regeneração. A humanidade,
como o vulcão, rebenta uma nova
cratera quando mais fogo lhe ferve no centro.
A literatura tinha acaso nos moldes conhecidos em que preenchesse o fim
do pensamento humano? Não; nenhum era vasto como
o jornal, nenhum liberal, nenhum democrático, como ele. Foi a nova
cratera do vulcão.
Tratemos do jornal, esta alavanca que
Arquimedes pedia para abalar o mundo, e que o
espírito humano, este Arquimedes de todos os séculos, encontrou.
O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal?
A humanidade desde os primeiros tempos tem
caminhado em busca de um meio de propagar e perpetuar a idéia.
Uma pedra convenientemente levantada era o símbolo representativo de um pensamento. A geração que nascia vinha ali contemplar a
idéia da geração aniquilada.
Este meio, mais ou menos aperfeiçoado, não preenchia as exigências do
pensamento humano. Era uma fórmula estreita, muda, limitada. Não
havia outro. Mas as tendências progressivas da humanidade não se
acomodavam com os exemplares primitivos dos seus livros de pedra. De perfeição
em perfeição nasceu a arte. A arquitetura vinha transformar em
preceito, em ordem, o que eram então partos grotescos da fantasia dos povos. O
Egito na aurora da arquitetura deu-lhe a solidez e a simplicidade nas formas severas da coluna e da
pirâmide. Parece que este povo ilustre queria fazer eterna a idéia no monumento, como o
homem na múmia.
O meio,
pois, de propagar e perpetuar a idéia era uma arte. Não farei a história dessa
arte, que, passando pelo crisol das civilizações antigas, enriquecida pelo gênio da Grécia e de Roma, chegou ao seu apogeu na Idade Média e cristalizou a idéia
humana na catedral. A catedral é mais
que uma fórmula arquitetônica, é a síntese do espírito e das tendências daquela época. A influência da Igreja sobre os povos lia-se nessas epopéias de pedra; a arte
por sua vez acompanhava o tempo e
produzia com seus arrojos de águia as obras-primas do santuário.
A catedral é a chave de ouro que fecha a vida de séculos da arquitetura
antiga; foi a sua última expressão, o seu derradeiro crepúsculo, mas uma
expressão eloqüente, mas um crepúsculo palpitante de luz.
Era, porém, preciso um gigante para fazer morrer outro gigante. Que novo
parto do engenho humano veio nulificar uma arte que reinara por
séculos? Evidentemente era mister uma revolução para apear a realeza de um sistema;
mas essa revolução devia ser a expressão de
um outro sistema de incontestável legitimidade. Era chegada a imprensa,
era chegado o livro.
O que era a imprensa? Era o fogo do céu que um novo Prometeu roubara, e que vinha animar a estátua de longos
anos. Era a faísca elétrica da
inteligência que vinha unir a raça aniquilada à geração vivente por um meio melhor, indestrutível, móbil,
mais eloqüente, mais vivo, mais próprio a penetrar arraiais de
imortalidade.
O que era o livro? Era a fórmula da
nova idéia, do novo sistema. O
edifício, manifestando uma idéia, não passava de uma coisa local, estreita. O vivo procurava-o para ler a
idéia do morto; o livro, pelo
contrário, vem trazer à raça existente o pensamento da raça aniquilada.
O progresso aqui é evidente.
A revolução foi completa. O universo sentiu
um imenso abalo pelo impulso de uma dupla
causa: uma idéia que caía e outra que se levantava. Com a onipotência
das grandes invenções, a imprensa atraía
todas as vistas e todas as inteligências convergiam para ela. Era um crepúsculo que unia a aurora e o ocaso de
dois grandes sóis. Mas a aurora é a
mocidade, a seiva, a esperança; devia ofuscar o sol que descambava. É o
que temia aquele arcediago da catedral parisiense, tão bem delineado pelo poeta
das Contemplações.
Com efeito! a imprensa era mais que uma descoberta maravilhosa, era uma redenção. A humanidade galgava assim o
Himalaia dos séculos, e via na idéia
que alvorecia uma arca poderosa e mais capaz de conter o pensamento
humano.
A imprensa devorou, pois, a arquitetura. Era
o leão devorando o sol, como na epopéia do nosso Homero.
Não procurarei historiar o desenvolvimento desta arte-rei, desenvolvimento asselado em cada época por um progresso.
Sabe-se a que ponto esta
aperfeiçoada, e não se pode calcular a que ponto chegará ainda.
Mas restabeleçamos a questão. A humanidade
perdia a arquitetura, mas ganhava a imprensa;
perdia o edifício, mas ganhava o livro. O livro
era um progresso; preenchia as condições do pensamento
humano? Decerto; mas faltava ainda alguma coisa; não era ainda a tribuna comum, aberta à família universal, aparecendo sempre com o sol e sendo como ele o centro de um sistema planetário. A forma que correspondia a estas necessidades, a mesa popular para a distribuição do pão eucarístico da publicidade, é propriedade do espírito
moderno: é o jornal.
O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva
intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das idéias
e o fogo das convicções.
O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa
revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um
movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do
espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do
mundo social.
Quem poderá marcar todas as conseqüências desta revolução?
Completa-se a emancipação da inteligência e
começa a dos povos. O direito da força, o direito da autoridade bastarda
consubstanciada nas individualidades dinásticas vai cair. Os reis
já não têm púrpura, envolvem-se nas constituições. As constituições são os
tratados de paz celebrados entre a potência popular e a potência monárquica.
Não é uma aurora de felicidade que se entreabre no horizonte? A idéia de
Deus encarnada há séculos na humanidade apareceu enfim à luz. Os
que receavam um aborto podem erguer a fronte desassombrada: concluiu-se o pacto
maravilhoso.
Ao século XIX cabe sem dúvida a glória de ter
aperfeiçoado e desenvolvido esta grandiosa
epopéia da vida íntima dos povos, sempre palpitante de idéias. É uma
produção toda sua. Depois das idéias que
emiti em ligeiros traços é tempo de desenvolver a questão proposta: — O
livro absorverá o jornal? o jornal devorará o livro?
II
A lei eterna, a faculdade radical do espírito
humano, é o movimento. Quanto maior for esse
movimento mais ele preenche o seu fim, mais se
aproxima desses pólos dourados que ele busca há séculos. O
livro é um sintoma de movimento? Decerto. Mas estará esse
movimento no grau do movimento da imprensa-jornal? Repugno afirmá-lo.
O jornal, literatura quotidiana, no dito de um publicista contemporâneo, é reprodução diária do espírito do povo,
o espelho comum de todos os fatos e de todos os talentos, onde se reflete, não
a idéia de, um homem, mas a idéia popular, esta fração da idéia humana.
O livro
não está decerto nestas condições; — há aí alguma coisa de limitado e de estreito se o colocarmos em face do jornal. Depois, o espírito humano tem necessidade de discussão,
porque a discussão é — movimento. Ora,
o livro não se presta a essa necessidade, como o jornal. A discussão pela imprensa-jornal anima-se e toma fogo pela presteza e reprodução diária desta
locomoção intelectual. A discussão
pelo livro esfria pela morosidade, e esfriando decai, porque a discussão vive
pelo fogo. O panfleto não vale um artigo de fundo.
Isto posto, o jornal é mais que um livro, isto é, está mais nas
condições do espírito humano. Nulifica-o
como o livro nulificará a página de pedra? Não repugno admiti-lo.
Já disse que a humanidade, em busca de uma
forma mais conforme aos seus instintos, descobriu o jornal.
O jornal,
invenção moderna, mas não da época que passa, deve contudo ao nosso século o
seu desenvolvimento; daí a sua influência. Não
cabe aqui discutir ou demonstrar a razão por que há mais tempo não atingira ele a esse grau de
desenvolvimento; seria um estudo da época, uma análise de palácios e de
claustros.
As tendências progressivas do espírito humano
não deixam supor que ele passasse de uma forma superior a uma forma
inferior.
Demonstrada a superioridade do jornal pela teoria e pelo fato, isto é, pelas
aparições de perfectibilidade da idéia humana e pela legitimidade
da própria essência do jornal, parece clara a possibilidade de
aniquilamento do livro em face do jornal. Mas estará bem definida a superioridade do
jornal?
Disse acima que o jornal era a reação do
espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo
social, do mundo literário e do mundo
econômico. Do mundo literário parece-me ter demonstrado as vantagens que não
existem no livro. Do mundo social já o disse. Uma forma de
literatura que se apresenta aos talentos como uma tribuna
universal é o nivelamento das classes sociais, é a democracia prática pela inteligência. Ora, isto não é
evidentemente um progresso?
Quanto ao mundo econômico, não é menos fácil
de demonstrar. Este século é, como dizem, o
século do dinheiro e da indústria. Tendências mais
ou menos ideais clamam em belos hexâmetros contra as aspirações de uma parte da sociedade e parecem prescrever os princípios da economia social. Eu mesmo manifestei algumas idéias muito
metafísicas e vaporosas em um artigo publicado há tempos.
Mas, pondo de parte a arte plástica dessas
produções contra o século, acha-se no fundo pouco
razoáveis. A indústria e o comércio não são
simples fórmulas de uma classe; são os elos que prendem as nações, isto é, que
unem a humanidade para o cumprimento de sua missão. São a fonte da
riqueza dos povos, e predispõem mais ou menos sua importância política no
equilíbrio político da humanidade.
O comércio estabelece a troca do gênero pelo dinheiro. Ora, o dinheiro é um resultado da civilização, uma
aristocracia, não bastarda, mas
legitimada pelo trabalho ou pelo suor vazado nas lucubrações industriais. O
sistema primitivo da indústria colocava o homem na alternativa de adquirir uma fazenda para operar a compra de outra, ou o entregava às intempéries do tempo se
ele pretendia especular com as suas produções agrícolas. O novo sistema
estabelece um valor, estabelece a moeda, e para adquiri-la o homem só tem
necessidade de seu braço.
O crédito assenta a sua base sobre esta engenhosa produção do espírito humano. Ora, indústria manufatora ou
indústria-crédito, o século conta a
indústria como uma das suas grandes potências: tirai-a aos Estados
Unidos e vereis desmoronar-se o colosso do norte.
O que é o crédito? A idéia econômica consubstanciada numa fórmula
altamente industrial. E o que é a idéia econômica senão uma face, uma
transformação da idéia humana? É parte da humanidade; aniquilai-a, — ela deixa
de ser um todo.
O jornal, operando uma lenta revolução no globo, desenvolve esta indústria monetária, que é a confiança, a riqueza
e os melhoramentos. O crédito tem
também a sua parte no jornalismo, onde se discutem todas as questões, todos os problemas da época, debaixo da ação da idéia sempre nova, sempre palpitante. O
desenvolvimento do crédito quer o
desenvolvimento do jornalismo, porque o jornalismo não é senão um grande banco intelectual, grande monetização
da idéia, como diz um escritor moderno.
Ora, parece claro que, se este grande molde
do pensamento corresponde à idéia econômica como
à idéia social e literária, — é a forma que convém mais que nenhuma
outra ao espírito humano.
É ou não claro o que acabo de apresentar? Parece-me que sim. O jornal,
abalando o globo, fazendo uma revolução na ordem social, tem ainda a vantagem
de dar uma posição ao homem de letras; porque ele diz ao talento:
"Trabalha! vive pela idéia e cumpres a lei da criação!" Seria melhor
a existência parasita dos tempos passados, em que a consciência sangrava
quando o talento comprava uma refeição por um soneto?
Não! graças a Deus! Esse mau uso caiu com o dogma junto do absolutismo. O jornal é a liberdade, é o povo, é a
consciência, é a esperança, é o
trabalho, é a civilização. Tudo se liberta; só o talento ficaria servo?
Não faltará quem lance o nome de utopista. O
que acabo, porém, de dizer me parece racional.
Mas não confundam a minha idéia. Admitido o
aniquilamento do livro pelo jornal, esse aniquilamento não pode ser total. Seria loucura admiti-lo. Destruída a arquitetura,
quem evita que à fundação dos monumentos modernos presida este ou aquele axioma
d'arte, e que esta ou aquela ordem trace e levante a coluna, o capitel ou zimbório? Mas o que é real é que a arquitetura não é hoje uma arte influente, e que do clarão com que inundava os
tempos e os povos caiu num crepúsculo perpétuo.
Não é um capricho de imaginação, não é uma
aberração do espírito, que faz levantar este
grito de regeneração humana. São as circunstâncias,
são as tendências dos povos, são os horizontes rasgados neste
céu de séculos, que implantam pela inspiração esta verdade no espírito. É a
profecia dos fatos.
Quem enxergasse na minha idéia uma idolatria pelo jornal teria concebido
uma convicção parva. Se argumento assim, se procuro demonstrar a possibilidade do aniquilamento do livro diante do jornal, é porque o jornal é uma expressão, é um
sintoma de democracia; e a democracia é o povo, é a humanidade.
Desaparecendo as fronteiras sociais, a
humanidade realiza o derradeiro passo, para entrar o pórtico da
felicidade, essa terra de promissão.
Tanto melhor! este desenvolvimento da
imprensa-jornal é um sintoma, é uma aurora dessa época
de ouro. O talento sobe à tribuna comum; a indústria eleva-se à
altura de instituição; e o titão popular, sacudindo por toda a parte os
princípios inveterados das fórmulas governativas,
talha com a espada da razão o manto dos dogmas novos. É a luz de uma
aurora fecunda que se derrama pelo horizonte. Preparar
a humanidade para saudar o sol que vai nascer, — eis a obra das
civilizações modernas.
http://machado.mec.gov.br/images/stories/html/cronica/macr13.htm
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