Nos 70 anos de morte de Mário de Andrade,
ainda é tempo de estudar sua obra
Silviano
Santiago – Especial para O Estado de S. Paulo
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Fevereiro 2015 | 03h 00
Crítico
literário questiona se a "eternidade" apenas o transformará no maior
intelectual brasileiro da primeira metade do século 20
No ano em que se completam os 70 anos da morte de
Mário de Andrade (25/2/1945) e em que a Flip se adianta e valoriza a data,
visto a pele de um incômodo Mallarmé e me pergunto se a “eternidade” apenas o
transformará no maior intelectual brasileiro da primeira metade do século 20.
Começo pela pergunta exigente porque são vários os obstáculos que dificultam
armazenar a figura e a obra de Mário no século 21.
Nos anos 1920 e nas duas décadas que se seguiram,
ninguém foi mais apaixonadamente modernista entre os nossos modernos. Com sua
inesgotável correspondência, de notáveis artigos críticos e de crônicas
jornalísticas doutrinárias, Mário se transformou no divulgador-mor da vanguarda
europeia que, pela rota do Atlântico, fazia às avessas a trajetória do café
paulista. Quis ser útil. Não fez arte pela arte, mas, sim, “arte de ação pela
arte”.
Em meados daquela década, sua condição de “papa”
do modernismo brasileiro é invocada de modo elogioso - e em seguida apedrejada por
Graça Aranha - na série de entrevistas que ele e cinco companheiros de geração
dão ao jornal A Noite. Ainda hoje vale a pena consultar o volume O
Mês Modernista (1994), em que Homero Senna reúne os recortes do jornal
carioca, guardados zelosamente por Pedro Nava.
Na década seguinte, em novembro de 1936, Mário dá
aos jovens cariocas uma sofrida resposta à pergunta sobre sua aterrissagem na
eternidade. Invoca primeiro sua condição de funcionário público na
administração paulista: “Eu tirava o escritor de foco, botando o foco no
funcionário que surgia. Me suicidei sim porque tinha medo de mim mesmo”.
Comenta em seguida: “Vocês não sabem que, ao pesar sem nenhuma piedade as
minhas forças de escritor, e reconhecendo elas fracas para uma eternidade,
orientei toda a minha obra pra uma utilidade momentânea, mesmo com sacrifício
de qualquer ideia de perfeição” (Cartas a Murilo Miranda).
Mário não foi menos contundente e menos dramático
em 1942, quando, em pleno Estado Novo, a Semana de Arte Moderna completou 20 anos.
O paulista abre a guarda no auditório do Itamaraty e proclama: “E se agora
percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me
vejo uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando
muito lhe fiz de longe umas caretas”.
As constatações dolorosas sobre o valor perecível
da obra se deslocam de modo unidirecional. Em diálogo franco com a
autocomiseração, a eternidade constatará o óbvio: os intelectuais e artistas
representativos do seu tempo acabam por espalhar pelo caminho cacoetes que se
assemelham aos bordões que tornam célebres atores medíocres. Bordões, Mário os
inventou, e muitos se tornaram - à semelhança do poema sobre a pedra no meio do
caminho de Carlos Drummond - amados, apropriados e repetidos à exaustão pelos
admiradores. Sua definição de conto (“será conto aquilo que seu autor batizou
com o nome de conto”) persegue jovens escritores e diletantes como a exitosa
Pasárgada de Manuel Bandeira.
Mas não há por que botar fé numa visão diminuída
dos artistas desbravadores do Brasil moderno. Não foram intelectuais
monolíticos. Pelo contrário. Não é Mário quem confessou em poema de Remate de
Males: “Eu sou trezentos... sou trezentos-e-cinquenta”? Como devoto de Cristo,
ele também nos teria alertado: Devagar com o andor, que o santo é de barro.
Mais apressado o caminhar com o andor, mais
palpável a atualidade de Mário. O santo é de barro. E é eterno. No chão do
século 21, vida e obra se espatifam em trezentos-e-ciquenta fragmentos
desvairados. Se apreendidos pela crítica, estarão sendo representados por uma
espécie de mapa ferroviário, que revelará a personalidade múltipla e ainda
desconhecida de Mário. Como personagem de Albert Camus, o modernista esteve
sempre a desenhar para os pósteros o caminho mais jeitoso e único. E a academia
e os historiadores caíram no engodo.
É preciso nos liberar da ditadura institucional
que trafegou pelo caminho jeitoso e único. É preciso atentar para a
multiplicidade dos ramais que se abrem nos centros de gravitação da obra e nos
levam a vários e imprevisíveis destinos. Na vasta obra de Mário, cada estação
de estrada de ferro é lugar - se não for motivo - para baldeação. Vida e obra
ainda estão para e por ser lidas no século 21. Comecemos por arregaçar as
mangas.
No milênio globalizado, Macunaíma parece entoar o
canto do cisne. No entanto, ensaístas da nova geração retomam com unhas
filosóficas e dentes ideológicos a questão indígena pelo viés da “apocalíptica
contracultura pós-moderna” (se me permitem a etiqueta). Associam-na à
contribuição do afro-brasileiro e à condição da pobreza mundial. Estamos
desgostosos de ser modernos e consumistas. Eduardo Viveiros de Castro afirma
que os índios “podem nos ensinar a voltar à Terra como lugar do qual depende
toda a autonomia política, econômica e existencial. Em outras palavras: os
índios podem nos ensinar a viver melhor em um mundo pior. Porque o mundo vai
piorar”.
Quando a nova geração de intelectuais picados
pela mosca azul do poder ocupa o ministério e as secretarias de cultura estaduais
e municipais, querendo fomentar uma arte motivada pelo povo e direcionada pelo
engrandecimento igualitário da nação, nada como ter na escrivaninha de trabalho
os escritos circunstanciais e definitivos de Mário sobre a recuperação da
memória artística popular, a máquina da burocracia, a mediocridade dos
políticos... Melhorariam as reflexões enganosas dos atuais donos do assento.
Por fim, elenco um tópico delicado, que permanece
como terra ignota. Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo,
Antonio Candido esclareceu que Mário “era um caso muito complicado, era um
bissexual provavelmente”. Acrescenta em seguida que ele “tinha uma
sensibilidade de homossexual”. E constata: “Isto é fora de dúvida, vê-se pela
obra dele”. Dá como exemplo os poemas de Girassol da Madrugada (1931),
hoje no Livro Azul. Pena que as iniciais do amigo a quem é dedicado o poema só
estejam decodificadas em carta a Manuel Bandeira que, por sua vez, se encontra
guardada a sete chaves na Casa de Rui Barbosa.
Mas compensa transcrever palavras irretocáveis de
outra carta que Mário envia a Manuel Bandeira. Está datada de março de 1931,
mês em que escreve os poemas de Girassol da Madrugada. Nela se lê: “Ah! meu
irmãozinho, o amor se abancou de novo no meu rancho, mas é bom nem falar porque
sou dolorosamente feliz. Isso da gente ficar uma noite inteirinha, quatro horas
eu passei! reclinado sobre um corpo alvíssimo e dócil, parolando, descobrindo
uma alma espontânea, maravilhosamente descobridora, dizendo coisas incríveis
para quem não lê nos livros, e um dedo espantado passeando no nosso rosto,
seguindo o caminho das rugas e dos traços já acentuados pela idade, olhos
incríveis de assombro não podendo se explicar que possam amar a feiura...”.
Mário, o feio, transcreve em seguida duas
estrofes do poema Girassol da Madrugada. Delas retiro estes versos:
“Carne que é flor de girassol, sombra de anil, / Eu encontro em mim mesmo uma
espécie de abril, /Em que espraia o teu sinal, suave, perpetuamente”.
Silviano Santiago é crítico
literário
http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,nos-70-anos-de-morte-de-mario-de-andrade-ainda-e-tempo-de-estudar-sua-obra,1637275
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