PARA O MEU
BEBEZINHO, DO SEU CACHORRINHO
Elias Ribeiro Pinto
Diário do Para, 06-05-2014
O nosso Pedrão I assina-se o
“Demonão”, oferecendo à sua Titília “abraços e beijos e fo...” – é isso mesmo
que você pensou
1 Se tivesse vivido a tempo de
ser contemporâneo de Fernando Pessoa, o escritor francês Gustave Flaubert teria
incluído o verbete “Cartas” em seu famoso esboço do Dicionário das Ideias
Feitas, assim definindo-o: “Num artigo sobre cartas, sempre remeter a Fernando
Pessoa – ‘Todas as cartas de amor são/ ridículas/ Não seriam cartas de amor se
não fossem/ ridículas’”.
2 Na verdade, esse poema leva
a assinatura daquele que é o heterônimo mais conhecido de Pessoa, Álvaro de
Campos. Completado em 21 de outubro de 1935, os versos seguintes como que
estendem as mãos, solidárias, às paixões epistolares: ridículas são mesmo “só
as criaturas que nunca escreveram/ cartas de amor”.
3 Confesse, leitor: você
jamais escreveu uma carta, no florescimento da paixão, tratando a amada de
“bebezinha”, de “meu anjo”, “filhinha do meu coração”, “a mais santa de todas
as criaturas”, chamando-a por diminutivos alambicados, ou então se assinando
como “seu cachorrinho” ou, enlaçados em amor eterno, um “sempre teu, sempre
minha, sempre um do outro”?
4 Verdade que, em tempo de
e-mails, torpedos e redes de relacionamento na internet, já não há o roçar da
pena deslizando, ora melancólica, ora liricamente convulsiva, sobre o papel,
tendo a distância e a lua por testemunhas, e o tempo infindo em que se
alongavam as demoradas e ansiadas respostas, por mares nunca dantes navegados.
5 Há cartas, no entanto,
dessas que nos chegam em fornidos, desusados, arcaicos envelopes, cujo conteúdo
se desdobra em folhas infinitas, que guardamos para sempre, tesouros, talvez,
da juventude, ou mesmo de um amor maduro que derrapou na curva dos anos. Pois
há cartas de amor que a história guarda em seus escaninhos eternos – eterno
enquanto dure, como já alertara o poeta, poetinha.
6 Uma das cartas de amor mais
recuadas no tempo é datada de antes de Cristo. Foi escrita no exílio por Marco
Túlio Cícero (106 a.C-43 a.C) a sua esposa, Terência. Mas como nem todo amor,
ao contrário do que o padre falou, é para sempre, anos depois o advogado,
político e filósofo romano separar-se-ia da amada, acusando-a de má gestão
fraudulenta de seus negócios.
7 A lista de autores de cartas
de amor ao longo da história honraria qualquer carteiro. Temos, entre outros:
Cícero, Henrique VIII, Voltaire, Beethoven, D. Pedro I, Machado de Assis, Eça
de Queiroz, Rui Barbosa, Cruz e Souza, Franz Kafka, Gibran Khalil Gibran,
Augusto dos Anjos, Katherine Mansfield, Antonio Gramsci e Maiakóvski.
8 Prova de que o amor, muitas
vezes, é capaz de perder a cabeça: Henrique VIII (1491-1547), rei da Inglaterra,
declara seu amor imorredouro por Ana Bolena, com quem sua majestade casou-se em
1553. Para ele, o amor
pode ter sido imorredouro, não para ela, decapitada, mais tarde, por ordem do
esposo real, que, dez dias depois da execução, casou-se com Jane Seymour.
9
Prosseguindo no curso amoroso do leito imperial, D. Pedro I (1798-1834)
escreve, sedento de fome, a uma de suas mais célebres amantes, Domitília de
Castro, a Marquesa do Santos, ou melhor, a Titília. O nosso Pedrão I assina-se
o “Demonão”, oferecendo-lhe “abraços e beijos e fo...” – é isso mesmo que você
pensou.
10
Franz Kafka (1883-1924) nunca foi tão kafkiano quanto nas atormentadas cartas
que escreveu a Felice Bauer, sua noiva e com quem se correspondeu por cinco
anos, e com quem, a exemplo de Pessoa, jamais casou. Vladímir Maiakóvski
(1893-1930), poeta russo, manteve um longo relacionamento amoroso com Lilia
Brik, que era casada com o crítico literário Óssip Brik. Maiakóvski (que se
assinava, nas cartas bem-humoradas e apaixonadas, como Cachorrinho) suicidou-se
em 1930; Lilia, sua Liliônok, seguiu-lhe o gesto, só que bem mais tarde, em
1978. Neste caso, inverteu-se a etiqueta social: primeiro os cavalheiros.
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