segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Mário Faustino – de volta ao eterno Por Reinaldo Azevedo



Mário Faustino – de volta ao eterno
Por Reinaldo Azevedo


No dia 22 deste mês de outubro [2002], se vivo fosse, Mário Faustino, nascido em Teresina e criado no Rio, completaria 72 anos. Poderia ainda estar a produzir maravilhas. Outros com essa mesma idade têm maiores e mais graves responsabilidades de curto prazo do que aquelas reservadas a um poeta. Mas talvez tenham menos compromisso com a eternidade. Ocorre que Faustino não está vivo, não! No dia 27 de novembro de 1962, de madrugada, embarcou num Boeing da Varig, no aeroporto do Galeão, no Rio, com destino à Cidade do México. Eram 5h30 da manhã quando o avião espatifou-se no cerro de la Cruz, perto de Lima, no Peru. Os registros daquele dia apontam a morte de oitenta passageiros e dezesseis tripulantes. De Faustino, que se foi aos 32 anos e cujos restos mortais não puderam ser reconhecidos, havia um único livro de poesias, O Homem e Sua Hora (Livros de Portugal, 1955), alguns inéditos e poemas traduzidos, que foram depois reunidos pelo crítico e amigo Benedito Nunes. “Bateu-se delicado e fino, com/ Tanta violência, mas tanta ternura!”

Os leitores menos habituados à poesia ou os mais jovens talvez nunca tenham ouvido falar no seu nome. Têm agora mais uma oportunidade, com a publicação, pela Companhia das Letras, de O Homem e Sua Hora e Outros Poemas. Depois daquela edição de 1955, hoje raríssima, reeditada em 1966 pela Civilização Brasileira com acréscimo de alguns poemas, a editora Max Limonad publicou, em 1985, Mário Faustino: Poesia Completa, Poesia Traduzida. Há longuíssimos dezessete anos, portanto, têm sido escassas as notícias sobre aquele que foi, em muitos sentidos, o mais criativo, inventivo e culto (com perdão de essa palavra parecer pernóstica nestes tempos de proselitismo antiintelectualista) poeta brasileiro da geração pós-1945. Segundo a Companhia das Letras, a nova edição trará ainda alguns poemas inéditos.
Os que eventualmente já conhecem sua obra se espantam — e os que vão conhecê-la agora hão de espantar-se — que se tenha criado em torno de Faustino uma bolha de silêncio, enquanto nulidades que vagam entre o prosaísmo mais vagabundo e a poesia-como-arte-plástica — ou, ainda, de pretensões ideogramáticas — ocupem os cadernos de cultura dos jornais e tomem o tempo dos professores universitários das faculdades de letras, gastando com inutilidades os já parcos recursos públicos.
Jornalistas e mestres fazem crer a seus leitores e alunos que o verso se esgotou com Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto e que tudo o mais ou é a empulhação dos epígonos do Concretismo, ainda valorizado como etapa intermediária entre a civilização e a barbárie, ou é confessionalismo feminil de moças arredias à autoridade paterna ou de rapazes desligados do sentido do épico.
(Leitor, farei em seguida um parêntese sobre a política da poesia. Se quiser entrar já no universo de Faustino, pule o trecho abaixo e continue a leitura a partir do intertítulo “Tradição e Vanguarda”.)
O tom em que escrevo é mesmo algo agressivo. Está na hora de, também na cultura, desafinar esse coro da camaradagem e da conciliação que entroniza nulidades influentes, que acabam reconhecidas como gênios porque outros, tão estúpidos quanto elas próprias, sentem-se bem em entender o que dizem. Sustento, em suma, que o silêncio a respeito de Faustino e até mesmo a demora em republicar a sua obra — merecedora de uma cátedra em qualquer faculdade de letras que se prezasse — constituem uma espécie de decisão política.
Já escrevi uma vez na revista Bravo!, para escândalo de certa casta universitária, que a poesia brasileira se divide em partidos: à esquerda, um Roberto Schwarz, aquele das idéias fora do lugar, é capaz de pegar um livro como Elefante, de Francisco Alvim, e submetê-lo a um trabalho de desconstrução à luz do marxismo. Fragmentos do cotidiano, observações tolas do dia-a-dia, anotações feitas no joelho do descompromisso, dispostos na forma de versos, mereceram do crítico um longuíssimo texto que refaz a trajetória das classes populares do inferno à redenção, publicado parcialmente no Jornal de Resenhas e, mais tarde, na íntegra, no suplemento Mais!, da Folha de S. Paulo. Só lendo!
Para Schwarz, a poesia de Alvim é uma espécie de comentário ou ilustração de uma ideologia redentora. Como os, por assim dizer, versos são por demais anêmicos para sustentar a dialética marxista-schwarziana, o professor não tem receio de recorrer a perífrases para preencher os claros do original. O fantasma ainda é o da arte engajada, em que o poeta entra com o fato revolucionário — como se a poesia tivesse força instrumental para mudar o mundo —, e o crítico, com a exegese. Pfui…
No centro, fica a turma da verborragia oca, que só quer ser feliz e se livrar das amarras, dos convencionalismos, dos formalismos. Sua realização plena é a poesia como confissão, o texto como diário, a banalidade dita com solenidade fingidamente distraída, como se fosse fácil ser simples. Todos leram A Teus Pés, de Ana Cristina Cesar, e nunca mais se levantaram da genuflexão. Nesse caso, poesia nada mais é do que citação marcada pelo testemunho. Algo como: “O que aconteceu comigo depois que li, sei lá, Elizabeth Bishop”. E tome sub-bishopices a pretexto de fazer texto literariamente informado.
E, julgando-se à esquerda, ainda resiste a turma do tatibitate (por favor, vejam no dicionário o sentido dessa palavra para saber quão precisa é sua escolha neste texto), que pretende emprestar a aliterações sofríveis, a trocadilhos ginasianos, a desenhos imprestáveis, a gravidade humana de hesitações verdadeiramente hamletianas.
Entre eles, pode-se ouvir: “Viu o último Arnaldo Antunes?”. É a turma que usa livros para ver, quando não os “pendura” na parede. Junto com os criadores de instalações do Partido das Artes Plásticas, vivem em busca de um novo suporte. Dos três Partidos da Poesia, esse é o mais visível. Seu “trabalho” (como eles chamam aquilo…) carrega certa aura de complexidade, e eles sempre têm um “olhar” (adoram substantivar verbos) benevolente para aqueles que não entendem “a proposta”.
Como considero truque sujo chamar algo de “incompreensível” — porque pretendo ser pouco complacente com a minha própria ignorância —, sempre que posso, convido-os a dissertar sobre a tal “proposta”. Declinam do convite. Acostumados à imagem que se impõe pelo silêncio, consideram que o mundo se divide entre os que já entenderam e os que nunca vão entender. Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari são, por assim dizer, a tríade, os três coronéis desse sertão mental ainda poderoso. A exemplo do coronelismo político ressuscitado pelo PT, o Concretismo resiste cada vez mais nos grotões das mentalidades, mas ainda tem lá o seu poder. Faustino sobreviveu à arte como capítulo do engajamento redentor, ao prosaísmo distraído de gente preguiçosa o bastante para estudar o verso e ao coronelismo concretista. Importante tentar entender por quê.

Tradição e vanguarda
O jovem Mário Faustino incomodava já as vanguardas suas contemporâneas — e, depois, morto, sua obra como testemunho de sua genialidade continuou a perturbar, daí que tenha sido banida — porque ele mesmo nunca reivindicou para si tal estatuto. E incomodava não porque as rejeitasse, mas porque era capaz de compreender o código que elas compreendiam e ter um talento que jamais tiveram.
Foi o responsável, entre 1956 e 1959, pela página Poesia-Experiência, do Jornal do Brasil, cujo lema era “Repetir para aprender, criar para renovar” (não deixa de ser miserável que o Brasil viva, até na política, quarenta anos depois, tempos que fazem a apologia do improviso). Ali publicou tanto jovens poetas — alguns de vanguarda, sim, a exemplo dos concretistas — como nomes já consagrados da literatura. Numa única página podiam-se encontrar o então iniciante José Lino Grunewald, um experimentalista como Antonin Artaud e ninguém menos que Sá de Miranda.
Sá de Miranda, poeta português, nasceu pelo menos três décadas antes de Camões na mesma Coimbra, em fins do século XV. Foi um dos mestres do criador de Os Lusíadas e o verdadeiro introdutor das formas italianas de verso em Portugal, como o soneto. Na história, sua bela obra foi esmagada pelo gigante que o sucedeu. Ao recuperá-la, Faustino buscava o diálogo com a tradição, o que as vanguardas — qualquer vanguarda tem sempre um lado boçal e obscurantista — nunca souberam fazer. Repetir para aprender. Criar para renovar. Como Sá de Miranda fez com Petrarca. Como Camões fez com Petrarca e Sá de Miranda.
Poesia-Experiência foi a página literária de maior prestígio de seu tempo, e Faustino a conduzia sem poupar reputações. Paulo Francis — outro que não tinha medo de fazer inimigos e de não influenciar pessoas, que está a fazer falta — contou a história de um poetastro que foi buscar a intercessão da condessa Pereira Carneiro, dona do jornal, para que ela impedisse Faustino de criticar um livro seu que ainda seria lançado. Delicada, mas firme, a altiva senhora teve espírito para perguntar como o autor sabia de antemão que Faustino não gostaria do livro se ele ainda nem o havia publicado.
O tal poetastro certamente sabia o que o aguardava, e o melhor testemunho das exigências do crítico era o que já estava escrito em O Homem e Sua Hora. Impressiona que um jovem de 25 anos tenha, como diria o poeta latino Horácio, criado um monumento mais perene do que o bronze, evidenciando a um só tempo tal riqueza de conceitos, tal virtuosismo melódico e complexidade técnica e tal variedade de imagens.
Entrelaçados os três procedimentos, o conceito, o rigor formal (ainda que variado) e as imagens — categorias que o poeta americano Ezra Pound chamava, respectivamente, logopéia, melopéia e fanopéia —, fica evidente, como afirmou Benedito Nunes, que Faustino desenvolveu uma “poética que aceita a tríade de Pound”. Ezra Pound foi, indubitavelmente, um daqueles que ele tentou repetir para aprender e que inspiraram a sua vertiginosa criação de novidades. Caso se quisesse aqui voltar a comprar mais algumas boas confusões, seria de lembrar que, bem antes de Os Cantos de Pound se tornarem uma espécie de livro sagrado com que os fariseus do Concretismo buscavam justificar a morte do verso, Faustino já os havia devorado para “aprender” e, então, poder “criar para renovar”. Deu-nos poesia, não um discurso ideológico sobre o verso.

“Ego de Mona Kateudo”
Faustino explorou como poucos — certamente atingindo resultado único — a chamada intertextualidade, que, numa definição rápida para tema tão abrangente, poderia se contentar com, vá lá, o mínimo de palavras com o máximo de significação, de maneira que o verbo informe, mas também evoque, designe e seja capaz de suscitar inferências. Reparem, a propósito da intertextualidade e das categorias poundianas, o poema “Ego de Mona Kateudo”, que segue adiante (sirva o texto de caso exemplar para que apenas se comece a entender Faustino, que é o propósito deste texto; impossível ser suficiente nesse caso). Vamos ao poema, que integra o grupo “Sete Sonetos de Amor e Morte”:

Dor, dor de minha alma, é madrugada
E aportam-me lembranças de quem amo.
E dobram sonhos na mal-estrelada
Memória arfante donde alguém que chamo
Para outros braços cardiais me nega
Restos de rosa entre lençóis de olvido.
Ao longe ladra um coração na cega
Noite ambulante. E escuto-te o mugido,
Oh vento que meu cérebro aleitaste,
Tempo que meu destino ruminaste.
Amor, amo, enquanto luzes, puro,
Dormido e claro, eu velo em vasto escuro,
Ouvindo as asas roucas de outro dia
Cantar sem despertar minha alegria.


O título, que Faustino escreve em grego no manuscrito, é uma citação de um verso de Safo de Lesbos, uma de suas referências constantes: “Déduke mèn a selánna/ kái Pléiades; mésai dè/ núktes, parà d’ erchet’ óra,/ égo dè móna katéudo” (“A lua já se pôs, as Plêiades também;/ É
meia-noite;/ A hora passa, e estou deitada, sozinha
”). A solidão expressa no verso sáfico, que nomina o poema, será então desenvolvida no soneto, cujo título em português seria, na tradução escolhida, “E Estou Deitada, Sozinha”. As palavras que pontuam o poema informam a condição do “eu” cuja dor não pode ser percebida por ninguém: madrugada, lembranças, memória, vento, tempo, escuro. Por mais confessional e passional que se mostre o poema, mantém intacto o eixo de significados. Não pode haver bom poema com seleção ruim de palavras.
Nesse, como em outros poemas, ninguém como Faustino usou tão belamente o enjambement, aquele recurso em que o sentido de um verso, traduzido mesmo por sua complementação sintática, se realiza no verso seguinte: “E dobram sonhos na mal-estrelada/ Memória arfante donde alguém que chamo”. No papel, as rimas estão dispostas ao fim de cada verso, num entrelaçamento que tem história na literatura, mas convencional de qualquer modo. Se o poema for declamado segundo a demanda da sintaxe e do sentido, o que é rima final assume a característica de rimas internas, que, por sua vez, vão se compondo com rimas e assonâncias
internas a cada verso, num ritmo vertiginoso: minha alma/ madrugada; aportam-me/ lembranças; dobram/ arfante/chamo.
O ritmo que Faustino impõe a seus versos vai constituindo, por assim dizer, uma espécie de base harmônica sobre a qual ele superpõe uma melodia do estranhamento, que se dá já no terreno das imagens: outros podem ter feito sonetos tão técnicos quanto ele; outros podem ter sido tão rigorosos na escolha do eixo vocabular quanto ele, mas ninguém soube ser tão original na elaboração das figuras, na composição de metáforas de tal sorte únicas, que sua poesia corresponde mesmo a uma verdadeira reeducação da percepção. Vejamos: “aportam-me lembranças”; “mal-estrelada memória arfante”; “braços cardiais”; “noite ambulante”; “vento que (…) aleitaste”; “tempo que (…) ruminaste”; “ouvindo as asas roucas”. Curiosamente, a metaforização que reeduca o ouvido, que instaura um novo sentido para as palavras, também as
devolve a seu sentido original. Em Faustino, o extremo da subjetividade encontra a plena objetividade.

Lírico, não banal
Caso se faça um inventário dos temas e das preocupações constantes de Faustino, fica difícil fugir à categorização de Benedito Nunes no pequeno e excelente ensaio que abre a edição de 1966: “amor e morte, sexo, carne e espírito, vida agônica, salvação e perdição, pureza e impureza, Deus e o homem, tempo e eternidade”. Leitor de várias línguas, o que incluía o latim e o grego clássicos, e tradutor dos mais promissores, sua voracidade intelectual reunia, como fez no poema “O Homem e Sua Hora”, emblemas e símbolos do cristianismo e do paganismo, fundindo a vocação dionisíaca que hauria deste à culpa e ao remorso que experimentava daquele. Por isso, acrescentaria à lista de Nunes a palavra “perdão”, o mais alto vocábulo da hierarquia de valores cristãos. Os opostos parecem sempre prontos a se reconhecer e a se fundir. Leia-se, a propósito, o soneto “Estava lá Aquiles, que Abraçava”:

Estava lá Aquiles, que abraçava
Enfim Heitor, secreto personagem
Do sonho que na tenda o torturava;
Estava lá Saul, tendo por pajem
Davi, que ao som da cítara cantava;
E estavam lá seteiros que pensavam
Sebastião e as chagas que o mataram.
Nesse jardim, quantos as mãos deixavam
Levar aos lábios que os atraiçoaram!
Era a cidade exata, aberta, clara:
Estava lá o arcanjo incendiado
Sentado aos pés de quem desafiara;
E estava lá um deus crucificado
Beijando uma vez mais o enforcado.


Se, da lista de Nunes, tivéssemos de escolher dois temas preponderantes em sua curta mas intensa obra, o sexo e a morte mereceram, sem dúvida, maior número de referências. Com esta teve uma relação que ia da investigação intelectual ao fatalismo místico, passando pelo anedótico, com conclusão trágica. Consta que, em Nova York, insistentes ligações para a casa de um amigo caíam por engano no número da casa de uma astróloga, que teria previsto uma tragédia nos anos vindouros. Faustino contou o fato a amigos em tom de pilhéria. Tentou adiar a viagem que teria de fazer, já de volta ao Jornal do Brasil como editorialista. Não conseguiu. “(…) Os derradeiros astros nascem tortos/ E o tempo na verdade tem domínio/ Sobre o morto que enterra os próprios mortos/ O tempo na verdade tem domínio,/ Amém, amém vos digo, tem domínio/ E ri do que desfere verbos, dardos/ De falso eterno que retornam para/ Assassinar-nos num mês assassino”.
O sexo, igualmente, ocupa lugar central em sua lírica. Faustino não apenas cultuava o amor que, no seu caso, ousava dizer seu nome como o prodigalizava em praticamente todos os poemas em que a tentação erótica é vivida como imposição da matéria, como caminho da transcendência, mas também como queda e perdição romântica, como em “Balatetta”.

Por não ter esperança de beijá-lo
Eu mesmo, ou de abraçá-lo,
Ou contar-lhe do amor que me corrói
O coração vassalo,
Vai tu, poema, ao meu
Amado, vai ao seu
Quarto dizer-lhe quanto, quanto dói
Amar sem ser amado,
Amar calado.
Beijai-o vós, felizes
Palavras que levíssimas envio
Rumo aos quentes países
De seu corpo dormente, rumo ao frio
Vale onde vaga a alma
Liberta que na calma
Da noite vai sonhando, indiferente
À fonte que, de ardente,
Gera em meu rosto um rio
Resplandecente.
No sonolento ramo
Pousai, palavras minhas, e cantai
Repetindo: eu te amo.
Ele, que dorme, e vai
De reino em reino cavalgando sua
Beleza sob a lua,
Encontrará na voz de vosso canto
Motivo de acalanto;
E dormirá mais longe ainda, enquanto
Eu, carregando só, por esta rua
Difícil, meu pesado
Coração recusado,
Verei, nesse seu sono renovado,
Razão de desencanto
E de mais pranto.
Entretanto cantai, palavras: quem
Vos disse que chorásseis, vós também?
Celebração e derrota, tentação dionisíaca e pessimismo filosófico, vontade de ordenar a criatura e egoísmo radical são exemplos de uma poesia que se move entre extremos, cuja expressão perfeita está no poema “Carpe Diem” (aproveite o dia), irônico já desde o título. Nos três primeiros versos, o poeta indaga: “Que faço deste dia, que me adora?/ Pegá-lo pela cauda, antes da hora/ Vermelha de furtar-se ao meu festim?”. E nos dois últimos conclui: “Já nele a luz da lua — a morte — mora,/ De traição foi feito: vai-se embora”.

Aspirações épicas
O poema que dá título ao único livro que Faustino escreveu em vida, O Homem e Sua Hora, pode, sem dúvida, ser lido como fragmento de um poema épico. Feita tal leitura, a propósito, todos os textos do autor parecem apelar para a busca de uma dimensão da existência humana que a lírica, por si mesma, não comporta.
Morto aos 32 anos e tendo deixado o que deixou, é justo supor que Faustino teria ousadia o bastante para se aventurar pelos caminhos do épico. Quando Eliot, um dos poetas da primeira infância intelectual de Faustino, pensa Virgílio como autor completo, supõe não apenas aquele que traduziu o sumo de uma civilização triunfante, mas também aquele que pôde narrar a sua essência, digamos, metafísica numa grande e poderosa narrativa em versos, Eneida.
É quase truísmo afirmar que a civilização contemporânea não suporta o poema épico porque, para usar expressão de Faustino, talvez lhe falte o “cálice que una” tamanha desordem filosófica. O gênero também supõe, em que pesem tanta desdita e desgraça, um sentido de triunfo. Faustino, em “O Homem e Sua Hora”, ensaia uma ousada história da civilização que funde símbolos de várias mitologias, mas que tem como pilares a mitologia grega (Delfos) e o cristianismo (João). O poema se realiza em estações, em mininarrativas. Mas oh desdita: Faustino ainda não encontrara o sentido do triunfo.
Os heróis antigos que desfilam em O Homem e Sua Hora vão se esfarelando no choque com o tempo. Uma espécie de melancolia cósmica percorre o texto, e o fatalismo cristão se impõe sobre a vontade augusta: “Uma cruz, um talento de ouro, um preço,/ Um prêmio, uma sanção… Desaba a noite,/ A noite tomba, Iésus, e no céu/ Da tarde, onde os revôos de mil pombas/ Soltas pelo desejo de teu reino?/ Todo este caos, Homem, para dizer-te/ Não seres deus nem rei nem sol nem sino/ Dos animais, das pedras — ou dizer-te/ Ser débil cana o cetro que não podes/ Quebrar, ser de ervas más o diadema/ Que não podes cortar com teus cabelos! (…)”.
Se Mário Faustino tivesse sobrevivido ao “mês que o assassinou”, outros certamente teriam sido os destinos da poesia brasileira. Era também um crítico de primeira qualidade, ofício que exerceu com brilho em Poesia-Experiência. Tinha um sentido claro de militância cultural, mas tendo a literatura como centro, não o proselitismo ideológico, que considerava uma das madrastas más do talento. Entre outras impertinências, cobrou do já santificado Carlos Drummond de Andrade que participasse do debate cultural. Traduziu de várias línguas, tinha como referências alguns dos autores que se tornaram oráculos do coronelismo concretista que tomou a produção poética de um só golpe.
Lembra Benedito Nunes no já referido ensaio: “Por volta de 1959, após haver repensado Mallarmé e Pound, Jorge de Lima e os concretistas, Mário Faustino escrevia: ‘A cibernética, graças aos deuses, nunca poderá produzir poesia: a área multifária de cada palavra é incomensurável; célula de N átomos, incalculável, imponderável, indirigível. A poesia será sempre mágica, metafísica, jamais uma ciência exata, pura ou aplicada. Isto eu já sei, profundamente. Um saber para toda a existência, irretifícável, confundindo-se com a própria existência, agindo sobre ela e modificando-a à sua imagem’”.
Dizer o que mais? Entenderam por que os coronéis da poesia, a turma do tatibitate e aqueles que vivem aos pés da mediocridade tentaram esconder Mário Faustino? Mas ele ressurge, gigante diante de nossos olhos, resistindo “à pulhice dominante à nossa volta”, para lembrar Francis outra vez. 

* Texto originalmente publicado na revista Primeira Leitura nº 8, de outubro de 2002, e que integra o livro Contra o Consenso (Editora Barracuda).
Por Reinaldo Azevedo

http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/avesso-do-avesso/mario-faustino-de-volta-ao-eterno/

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