Capinan por Gilberto Gil
José Carlos Capinan
Conheci Capinan estre 1962 e 1963 quando,
estudantes em Salvador, todos em diferentes níveis e graus, ele, eu, Caetano,
Tom Zé, Torquato Neto, Waly Salomão, Duda Machado, Álvaro Guimarães, Rogério
Duarte, Fernando Batinga e tantos outros vivíamos o dia-a-dia da iniciação nas
lides culturais, na política estudantil, nas experiências do sexo, do amor, da
aventura de conduzir-nos, num incessante entra-em-beco-sai-de-beco corpoalma a
dentro de uma cidade mítica, bela e sensual, de mil histórias antes por outras
gentes e poetas vividas e mais outras tantas mil histórias então por outras
tantas gentes e poetas por viver.
Éramos todos, ali, um uníssono unissonho de sermos — nos tornarmos gente
e poetas a um só tempo. Gente no sentido de indivíduos/átomos do coletivo povo
com sua massa material em labuta e luta. (...) Poetas no sentido religioso de
mensageiros de Deus, no sentido psicoanalítico de intérpretes dos sonhos, alma
psicossocial, qualidade da comida, musculatura distendida após o orgasmo,
palco, beijo, idéia-flor, pensamento-ungüento, carnaval, celebração piedosa, a
vida no seu vale-quanto-reza, fundamentalismo espiritual.
(...) Capinan, como todos nós outros, vivia aquela aventura com a
sofreguidão das almas jovens. Vindo de um interior ainda mais agreste, ainda
mais nordeste do que o de onde vínhamos eu e Caetano — porque ainda mais longe
do mar de águas e de luzes da baía —, Capinan era portador e manifestante de
uma alma ainda mais severina, no sentido joãocabralino da palavra. Mais
caprino, mais cismado mais dependurado nas argolas das interrogações, como se
elas fossem aquelas gangorras toscas pendendo dos galhos das mangueiras dos
quintais das casas no seu sertão. De pensamento arisco, arredio, mais
litera(l)riamente desconfiado do que os outros, Capinan viria depositar a
palavra nas mãos do seu coração semiárido. A sua poesia estava, então, naquela
região do sertão, naquele coração semiúmido e de lá ela se faria escrever e
falar.
Aqui e ali essa poesia viria a ser, mais tarde, um pouco mais
entumescida pelo mar da viagem ao desconhecido ou pelo orvalho das últimas
madrugadas neoromânticas, quando dos estertores da revolução política e
cultural dos sessenta e dos setenta e logo dos oitenta e tantos quantos foram
os anos-luzes do seu percurso por sampas e riodejaneiros. Mas, no fundo, eu
quase arriscaria afirmar que a poesia de Capinan repousa, ainda e eternamente,
no caroço de umbu da sua caatinga. Umbu cuja carne é assim meio fibra, meio
nervo e um tanto pouca, que ao morder se dá mais parca que farta, com seu doce
ancorado em seu azedo, cujo gosto é bom mas exigente e dificultoso, e cujo
caroço é duro e traiçoeiro para os dentes. Creio que assim será sempre a poesia
de Capinan, embora seu verso tenha uma vez ameaçado que “já não somos como na
chegada”.
Sabemos que em todos nós há sempre um que vai e um que fica, um que muda
e um que permanece, e que há um outro que atento os observa a ambos, quase
sempre a um deles distinguindo como se com um amor de pai.
(...) A poesia de Capinan distingue, elege e prestigia aquilo/aquele que
nele permanece. Aquilo que não se perde nas névoas do delírio. Como a um fio de
Ariadne atado. Aquilo que, como no sonho acordado do menino, leva-o à
exploração das grutas obscuras da fantasia mas o traz sempre de volta ao ser do
presente, ao claro recinto do seu quarto — ainda que sob tênue luz de lamparina
iluminado. Quatro paredes, o teto, seu ambiente. Sempre de volta à obstinada
recusa da solidão. De volta a algum/alguém sempre ao seu lado. Ele mesmo, o seu
amigo ambíguo, um tanto quanto deslocado, quase que num quarto ao lado,
contíguo a si mesmo, mas ainda no âmbito da sua con(si)guidade.
Extraído de Gentes e Poetas,
apresentação do livro de poemas Confissões de Narciso, de José Carlos
Capinan (Civilização Brasileira, 1995).
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/bahia/carpinan.html
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