segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Capinan por Gilberto Gil



Capinan por Gilberto Gil

José Carlos Capinan
 

Conheci Capinan estre 1962 e 1963 quando, estudantes em Salvador, todos em diferentes níveis e graus, ele, eu, Caetano, Tom Zé, Torquato Neto, Waly Salomão, Duda Machado, Álvaro Guimarães, Rogério Duarte, Fernando Batinga e tantos outros vivíamos o dia-a-dia da iniciação nas lides culturais, na política estudantil, nas experiências do sexo, do amor, da aventura de conduzir-nos, num incessante entra-em-beco-sai-de-beco corpoalma a dentro de uma cidade mítica, bela e sensual, de mil histórias antes por outras gentes e poetas vividas e mais outras tantas mil histórias então por outras tantas gentes e poetas por viver.
Éramos todos, ali, um uníssono unissonho de sermos — nos tornarmos gente e poetas a um só tempo. Gente no sentido de indivíduos/átomos do coletivo povo com sua massa material em labuta e luta. (...) Poetas no sentido religioso de mensageiros de Deus, no sentido psicoanalítico de intérpretes dos sonhos, alma psicossocial, qualidade da comida, musculatura distendida após o orgasmo, palco, beijo, idéia-flor, pensamento-ungüento, carnaval, celebração piedosa, a vida no seu vale-quanto-reza, fundamentalismo espiritual.
(...) Capinan, como todos nós outros, vivia aquela aventura com a sofreguidão das almas jovens. Vindo de um interior ainda mais agreste, ainda mais nordeste do que o de onde vínhamos eu e Caetano — porque ainda mais longe do mar de águas e de luzes da baía —, Capinan era portador e manifestante de uma alma ainda mais severina, no sentido joãocabralino da palavra. Mais caprino, mais cismado mais dependurado nas argolas das interrogações, como se elas fossem aquelas gangorras toscas pendendo dos galhos das mangueiras dos quintais das casas no seu sertão. De pensamento arisco, arredio, mais litera(l)riamente desconfiado do que os outros, Capinan viria depositar a palavra nas mãos do seu coração semiárido. A sua poesia estava, então, naquela região do sertão, naquele coração semiúmido e de lá ela se faria escrever e falar.
Aqui e ali essa poesia viria a ser, mais tarde, um pouco mais entumescida pelo mar da viagem ao desconhecido ou pelo orvalho das últimas madrugadas neoromânticas, quando dos estertores da revolução política e cultural dos sessenta e dos setenta e logo dos oitenta e tantos quantos foram os anos-luzes do seu percurso por sampas e riodejaneiros. Mas, no fundo, eu quase arriscaria afirmar que a poesia de Capinan repousa, ainda e eternamente, no caroço de umbu da sua caatinga. Umbu cuja carne é assim meio fibra, meio nervo e um tanto pouca, que ao morder se dá mais parca que farta, com seu doce ancorado em seu azedo, cujo gosto é bom mas exigente e dificultoso, e cujo caroço é duro e traiçoeiro para os dentes. Creio que assim será sempre a poesia de Capinan, embora seu verso tenha uma vez ameaçado que “já não somos como na chegada”.
Sabemos que em todos nós há sempre um que vai e um que fica, um que muda e um que permanece, e que há um outro que atento os observa a ambos, quase sempre a um deles distinguindo como se com um amor de pai.
(...) A poesia de Capinan distingue, elege e prestigia aquilo/aquele que nele permanece. Aquilo que não se perde nas névoas do delírio. Como a um fio de Ariadne atado. Aquilo que, como no sonho acordado do menino, leva-o à exploração das grutas obscuras da fantasia mas o traz sempre de volta ao ser do presente, ao claro recinto do seu quarto — ainda que sob tênue luz de lamparina iluminado. Quatro paredes, o teto, seu ambiente. Sempre de volta à obstinada recusa da solidão. De volta a algum/alguém sempre ao seu lado. Ele mesmo, o seu amigo ambíguo, um tanto quanto deslocado, quase que num quarto ao lado, contíguo a si mesmo, mas ainda no âmbito da sua con(si)guidade.

Extraído de Gentes e Poetas, apresentação do livro de poemas Confissões de Narciso, de José Carlos Capinan (Civilização Brasileira, 1995). 

http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/bahia/carpinan.html

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