Crônica, José de Alencar
Crônica publicada no jornal Correio Mercantil, em 19 de novembro de 1854.
Crônica publicada no jornal Correio Mercantil, em 19 de novembro de 1854.
Rio,
19 de novembro
Se a mitologia dos povos antigos tivesse dado
formas de mulher, de fada ou ninfa, às semanas, como fez com as horas, não me
veria às vezes em tão sérios embaraços para escrever esta revista. Em lugar de estar a cogitar idéias, a parafusar novidades, e
a lembrar-me de fatos e coisas passadas, pediria emprestado a algum dos tipos
da grande galeria feminina as feições e os traços para desenhar o meu original.
Assim, quando me viesse uma semana alegre e risonha, mas muito
inconstante, com uns dias cheios de nuvens, e outros límpidos e brilhantes,
iluminados pelos raios esplêndidos do sol, uma semana elegante de teatros e de
bailes, imaginaria alguma fada de formas graciosas, de olhos grandes, com uma
certa altivez misturada de uma dose sofrível de loureirismo.
Vestiria a minha fada de branco com
algumas fitas cor-de-rosa, pedir-lhe-ia que me contasse com toda a graça e
travessura do seu espírito os segredos de suas horas e de seus instantes.
Ao contrário, se
fosse uma semana bem calma e bem tranqüila, em que os dias corressem puros e
serenos, em que fizesse umas belas noites de luar bem suaves e bem calmas, de
céu azul e de estrelas cintilantes, lembrar-me-ia de alguma moreninha da minha
terra, de faces cor de jambo, ojos adormidillos, como dizem os
espanhóis.
Então escreveria
uma poesia, um poema, um romance ou um idílio singelo, e livrava-me assim de
meter-me em certas questões graves e importantes que ocupam a atualidade. Faria
como o poeta; e limitar-me-ia às pequenas coisas que me tivessem interessado. Nugae,
quarum pars parva fuit.
É verdade que,
quando me acertasse cair uma semana como esta passada, onde iria eu procurar um
tipo, um modelo que a caracterizasse perfeitamente? Lembro-me de uma mulher,
que descreveu Byron, a qual, com algumas modificações, talvez me pudesse bem
servir para o caso.
Seu único aspecto
(da mulher) valia um discurso acadêmico; cada um de seus olhos era um sermão;
na sua fronte estava estampada uma dissertação gramatical. Enfim, era uma
aritmética ambulante. Dir-se-ia uma correspondência ou alguma velha
polêmica que se houvesse despegado do seu competente jornal, para andar pelo
mundo a discutir e argumentar.
Com efeito, só
este tipo imitado de D. Juan poderia dar uma ligeira idéia da semana passada, a
qual num formulário de botica podia bem traduzir-se pela seguinte receita: uma
dose de sol, duas de chuva e três de maçada. Admirável receita para curar a
população desta corte da febre de novidades que tem produzido a guerra do
Oriente.
Os antigos, porém,
que fizeram tanta coisa boa, esqueceram-se dessa invenção de personificar a
semana, e por conseguinte não há remédio senão deixar as comparações e voltar
ao positivo da crônica, desfiando fato por fato, dia por dia.
Aposto que já
estais a rir deste meu projeto, perguntando com os vossos botões que fatos são
estes que descobri na semana passada, que acontecimentos se deram nestes dias,
que valham a pena, não já escrever simplesmente, mas contar.
Ides ver. Em
primeiro lugar, contar-vos-ei que a semana teve sete dias e sete noites, tal e
qual como as outras. Destes sete dias muitos foram de chuva, e alguns estiveram
tão belos, tão frescos, tão puros, que sentia-se a gente renascer com o sol que
vivificava a natureza. As noites foram quase todas de inverno e de teatro.
No Provisório
estreou a nova cantora, completando-se assim o número das três deusas que devem
disputar o pomo de ouro, o qual também foi pomo da discórdia. O público diletante
está por conseguinte arvorado em Paris; e os poetas já se prepararam para cantar
a nova Ilíada e as causas terríveis de tão funesta guerra. Et teterrimas
belli causas.
Em São Pedro de
Alcântara o aparecimento de João Caetano produziu uma noite de entusiasmo e um
novo triunfo para o artista distinto, único representante da arte dramática no
Brasil.
Infelizmente as
circunstâncias precárias do nosso teatro, ou outras causas que ignoramos, não
têm dado lugar a que João Caetano forme uma escola sua, e trate de elevar a sua
arte, que no nosso país ainda se acha completamente na infância.
É a este fim que
deve presentemente dedicar-se o ator brasileiro. Sua alma já deve estar saciada
destes triunfos e dessas ovações pessoais, que são apenas a manifestação de um
fato que todos reconhecem. Como ator, já fez muito para sua glória individual;
é preciso que agora como artista e como brasileiro trabalhe para o futuro de
sua arte e para o engrandecimento de seu país.
Se João Caetano
compreender quanto é nobre e digna de seu talento esta grande missão, que
outros, antes de mim, já lhe apontaram; se, corrigindo pelo estudo alguns
pequenos defeitos, fundar uma escola dramática que conserve os exemplos e as
boas lições do seu talento e a sua experiência, verá abrir-se para ele uma nova
época.
O governo não se
negará certamente a auxiliar uma obra tão útil para o nosso desenvolvimento
moral; e, em vez de vãs ostentações, de coroas e de versos que se procuram
engrandecer ùnicamente pelo assunto, terá o que lhe tem faltado até agora, o
apoio e a animação da imprensa desta corte.
Uma das coisas que
têm obstado a fundação de um teatro nacional é o receio da inutilidade a que
será condenado este edifício, com o qual decerto se deve despender avultada
soma. O governo não só conhece a falta de artistas, como sente a dificuldade de
criá-los, não havendo elementos dispostos para esse fim.
Não temos uma
companhia regular, nem esperanças de possuí-Ia brevemente. A única cena onde se
representa em nossa língua ocupa-se com vaudevilles e comédias
traduzidas do francês, nas quais nem o sentido nem a pronúncia é nacional.
Deste modo ficamos
reduzidos ùnicamente ao teatro italiano, para onde somos obrigados, se não
preferimos ficar em casa, a dirigirmo-nos todas as noites de representação,
quer cante a Casaloni, quer encante a Charton, quer desencantem
as coristas. Tudo é muito bom, visto que não há melhor.
Já algumas vezes
temos censurado a diretoria do teatro por certas coisas que nos parece se podem
melhorar sem grandes sacrifícios. Hoje cumpre-nos fazer-lhe uma justiça, e até
um elogio, que ela merece sem dúvida alguma, pela resolução que nos consta ter
tomado de reparar o edifício e iluminá-lo a gás.
A polícia também
tem-se esmerado em fazer cessar as cenas tumultuárias e desagradáveis que se
iam tornando tão freqüentes naquele teatro, e que, se continuassem, acabariam
por afugentar dele os apaixonados da música de batuque.
Não é, porém,
ùnicamente no teatro que a polícia tem dado provas de atividade. Efetuou-se
esta semana a prisão de um moedeiro falso, que se preparava a montar uma
fábrica dessa indústria lucrativa.
O crime de moeda
falsa é um dos mais severamente punidos em todos os países, porque ameaça a
fortuna do Estado e a dos particulares. Entretanto não acho razão no legislador
em ter punido ùnicamente o falsificador de moeda, deixando impunes muitos
outros falsificadores bem perigosos para a nossa felicidade e bem-estar.
Todos os dias
lemos nos jornais anúncios de dentistas, de cabeleireiros e de modistas, que
apregoam postiços de todas as qualidades, sem que a lei se inquiete com
semelhantes coisas.
Entretanto
imagine-se a posição desgraçada de um homem que, tendo-se casado, leva para
casa uma mulher toda falsificada, e que de repente, em vez de um corpinho
elegante e mimoso, e de um rostinho encantador, apresenta-lhe o desagradável
aspecto de um cabide de vestidos, onde toda a casta de falsificadores pendurou
um produto de sua indústria.
Quando chegar o
momento da decomposição deste todo mecânico - quando a cabeleira, o olho de
vidro, os dentes de porcelana, o peito de algodão, as anquinhas se forem
arrumando sobre o toilette - quem poderá avaliar a tristíssima posição
dessa infeliz vítima dos progressos da indústria humana!
Nem ao menos as
leis lhe concedem o direito de intentar uma ação de falsidade contra aqueles
que o lograram, abusando de sua confiança e boa-fé. É uma injustiça clamorosa
que cumpre reparar.
Um homem qualquer
que nos dá a descontar uma letra de uns miseráveis cem mil réis, falsificada
por ele, é condenado a uma porção de anos de cadeia. Entretanto aqueles que
falsificam uma mulher, e que desgraçam uma existência, enriquecem e riem-se à
nossa custa.
Deixemos esta
importante questão aos espíritos pensadores, aos amigos da humanidade. Não
temos tempo de tratá-la com a profundeza que exige; senão, resumiríamos o
quadro de todas as desgraças que produzem não só aquelas falsificações do
corpo, mas também muitas outras, como um olhar falso, um sorriso fingido, ou
uma palavra mentida.
Demais, temos
ainda de falar de uma outra medida do chefe de polícia a respeito dos cães, e
que interessa extraordinàriamente a segurança pública. O que cumpre é zelar a
sua execução para que não se torne letra morta, e faça cessar o perigo que
corremos todos os dias de encontrarmos a cada momento na rua ou no passeio a
morte do hidrófobo.
Afonso Karr levou
dois anos a escrever para conseguir que a polícia de Paris adotasse esta útil
medida de segurança pública, a que ordinàriamente damos tão pouco cuidado, e
muitas vezes mesmo nos revoltamos por um mal entendido sentimento de
humanidade.
Um dos maiores
obstáculos que ele encontrou sempre foram certos prejuízos, certos erros
consagrados e que todo o mundo repete, sem refletir, nem compreender o sentido
das palavras que profere.
Assim, desde a
antiguidade se diz que o cão é o amigo fiel do homem, o tipo e o modelo da
amizade.
Este consentimento
unânime, diz o escritor francês, é uma singular revelação do caráter do homem.
O cão obedece sem reflexões, se submete a todos os caprichos e a todas as
vontades sem distinção; quando o castigam, em vez de se defender, roja-se aos
pés de seu senhor e caricia a mão que o castigou. E é isto o que o homem chama
um amigo!
Já se vê que o
sentimento não é tão nobre como o parece a princípio. Todas estas vãs
declamações dos poetas sobre esse animal, que dizem representar o símbolo da
fidelidade, dão uma bem mesquinha idéia do coração humano.
Não é, pois, o
prazer de possuir um autômato, que se move a nossa vontade, que pode compensar
um dos maiores riscos a que estamos sujeitos, e para o qual olhamos
indiferentemente.
José de
Alencar
Biografia
José
Martiniano de Alencar (1829-1877) é um dos grandes nomes da literatura
brasileira. Foi advogado, jornalista, jurista, professor, orador, político,
romancista, poeta e dramaturgo. Escreveu livros que foram marcos do Romantismo
brasileiro: O Guarani e Iracema. Escreveu também algumas
crônicas, que foram publicadas no Correio
Mercantil em forma de folhetins, chamados Ao Correr da pena. Mais tarde, esses textos foram reunidos num
livro, que recebeu o mesmo nome.
Na época de
Alencar a crônica era um pouco diferente da que conhecemos hoje e parecia-se
muito mais com os folhetins publicados na Europa daquele período. Alencar
escrevia textos comentando fatos ocorridos durante a semana. Com isso, seu
texto tinha dois aspectos: um informativo, já que tinha a função de informar os
leitores, e um literário, pois o escritor desenvolvia um estilo próprio de
escrever seus textos.
Texto extraído do livro:
Ao correr da pena. José de Alencar. 2ª edição. Edições Melhoramentos. São Paulo. p. 87-92.
Ao correr da pena. José de Alencar. 2ª edição. Edições Melhoramentos. São Paulo. p. 87-92.
www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/index.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário