Crônica IX, Graciliano Ramos
Crônica
publicada no jornal Paraíba do Sul, em 20 de maio de 1915.
IX
O vendedor de
jornais é o tipo mais despreocupado e alegre do mundo.
Tem uma alma de pássaro.
Claro está que nos não referimos ao
carrancudo português que, em meio de uma chusma de folhas metodicamente
dispostas, passa os dias sentado, com as pernas cruzadas no ponto de reunião da
Rua do Ouvidor com o Largo de São Francisco, na Brahma, nas portas dos cafés da
Avenida, em toda a parte. Não aludimos tampouco ao grave italiano de bigodeira
espessa nem ao "carcamano" que, de bolsa a tiracolo, apregoa uma
algaravia "à la diable", a Nôtizia e o Zêculo.
Queremos falar do pequenino garoto de dez
anos, o brasileirito trêfego, ativo, tagarela como uma pega, travesso como um
tico-tico.
Está sempre a rir, sempre a cantar. Canta
o dia inteiro, num tom arrastado, apregoando as revistas que vende.
Por aqui, por ali, vai, vem, corre,
galopa, atravessa as ruas com uma rapidez de raio, persegue os veículos,
desliza entre os automóveis como uma sombra. Parece invulnerável.
É assim uma espécie de pensionista
do público - arrebata as pontas de charuto que se jogam à rua e surrupia, para
revender, os jornais que se deixa esquecidos nos bancos dos passeios. Se pode à
socapa, deita a mão a alguma dessas pirâmides de frutos que sedutoramente se
elevam às portas das mercearias.
É extraordinária a celeridade com
que ele se transporta de um lugar para outro. Anuncia no Leme, na Tijuca, em
Niterói, um jornal que a gente pensa ainda estar no prelo. Dir-se-ia que tem
asas.
Fuma, bebe aguardente, pragueja,
solta pilhérias torpes, pisca os olhos maliciosamente à passagem das mulheres,
canta trovas obscenas com a música da "Cabocla de Caxangá".
Torna-se importuno às vezes, quando,
a correr pelas plataformas dos bondes, fazendo reviravoltas de símio para
escapar à sanha de algum condutor rabugento, nos atordoa os ouvidos com
estupendos gritos estridentes.
Nada lhe empana a limpidez de
espírito, nada. Está tão habituado a anunciar todos os dias "um grande
atentado, um pavoroso incêndio, a prisão do célebre bandido Fulano", que
afinal acaba por encarar todos esse fatos indiferentemente.
Tem gestos próprios e expressões
peculiares. Para ele um assassínio ou um suicídio é simplesmente uma
"encrenca". Um conflito é um "robo". Sua interjeição
predileta é uê, que aliás é usada por toda a gente carioca.
Parece que desconhece hierarquias e
vaidades tolas, porque não empresta títulos a nenhum nome. Diz: "O partido
do Pinheiro, discursos do Ruy Barbosa, o governo do Nilo Peçanha", como se
todos os cabecilhas da República fossem apenas vendedores de jornais.
Fala sobre política, conhece o valor
de nossos parlamentares, discute os principais episódios da conflagração
européia, critica os atos do poder e emprega imoderadamente esses vistosos
adjetivos que figuram nos cabeçalhos dos artigos importantes para engodar o
público incauto.
Detesta a monotonia dos tempos de paz.
Gosta das revoluções, dos motins, das grossas "mixórdias" que lhe
proporcionam ocasiões de ver todas as folhas arrebatadas, sem que haja
necessidade de ele gritar como nos dias ordinários.
Não é somente o jornalista que explora
vantajosamente os crimes - ele, o garoto endiabrado, também sabe tirar partido
das mais insignificantes perturbações da ordem, revestindo todos os fatos de
acessórios que lhes dão proporções extraordinárias. Parece que tem o dom de pôr
um grande vidro de aumentar em cima dos acontecimentos.
É astucioso, impostor, velhaco.
Com uma finura de comerciante velho,
emprega artimanhas de mestre, complicados ardis, artifícios que são uma
obra-prima de sutileza, tudo para embair os transeuntes. Mente apregoando
sedutoras notícias fantásticas.
Enfim, sob certos pontos de vista, o
pequeno garoto vendedor de jornais é uma espécie de jornalista em miniatura...
Graciliano Ramos
Biografia
Graciliano Ramos (1892-1953) foi escritor, revisor de
jornal e diretor a Imprensa Oficial de Alagoas. É um dos grandes nomes da
Segunda Geração do Modernismo brasileiro. Grande expoente do romance
regionalista, Graciliano apresenta estilo marcante com textos secos e enxutos.
Suas principais obras são Vidas Secas e São Bernardo, que abordam
temas como a seca, o coronelismo, a miséria e a força do povo nordestino.
Durante o Estado Novo, ao ser acusado de ligações com o Partido Comunista Brasileiro, Graciliano é preso. As experiências vividas na prisão seriam, posteriormente, relatadas em seu livro Memórias do Cárcere.
Graciliano escreveu crônicas para os jornais O Índio (Palmeira dos Índios), Jornal de Alagoas (Maceió) e Paraíba do Sul (Paraíba do Sul, RJ), sendo que muitas delas foram reunidas em livros.
Extraído do livro
Linhas tortas. Graciliano Ramos. Editora Record. 11ª Edição. Rio de Janeiro. 1984. p. 29 - 31.
www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/index.htm
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