TRÊS POEMAS EM PROSA
JAMIL DAMOUS
DEUS E AS FORMIGAS
Todos já dormiam quando saí para ver o luar.
Era uma noite fria, dessas que eu amo. E havia um silêncio mais
alto que o assobio do vento, mais alto que o pio dos passarinhos,
desses de que eu não sei o nome. Soltei um jato de urina forte e
ruidoso sobre a terra e aspirei no alívio o cheiro da noite. Jasmim e
estrume do gado.
Foi aí que vi as formigas, perigosamente próximas, vítimas
potenciais da hecatombe. Mudei a direção do jato cuidadosamente.
Depois, agachei-me e fiquei observando a fila indiana dupla, a que
ia e a que vinha, só uma delas carregando os luminosos pedacinhos
de folha, bandeiras verdes de um exército em marcha.
Havia ali uma determinação, um propósito. Todas eram iguais
perante o meu olhar. Até que me assomou a possibilidade espantosa
de cada uma ser um indivíduo. Para que estavam ali sob o luar de
maio? Que sonho, que utopia, as animava a ir em frente? E elas
iam, numa disciplina estrita, denodada.
Por um breve instante a luz da lua brilhou num pedacinho de folha
e refletiu, ali, a cara de Deus.
E aquela procissão de formigas não era menor que a caminhada
dos judeus do Egito para Canaã, não era menos épica que a marcha
dos exércitos de Napoleão pelos campos gelados da Rússia, nem
menos memorável que o primeiro astronauta caminhando sobre o
chão da lua.
Havia um fim naquilo tudo, mas ele não me foi revelado.Tudo o
que sei é que só um ser ali podia deter aquele caminhada. E esse ser
era eu. Bastava uma pisada, um jato de mijo, um chute na terra.
Todos já dormiam quando saí para ver o luar.
Era uma noite fria, dessas que eu amo. E havia um silêncio mais
alto que o assobio do vento, mais alto que o pio dos passarinhos,
desses de que eu não sei o nome. Soltei um jato de urina forte e
ruidoso sobre a terra e aspirei no alívio o cheiro da noite. Jasmim e
estrume do gado.
Foi aí que vi as formigas, perigosamente próximas, vítimas
potenciais da hecatombe. Mudei a direção do jato cuidadosamente.
Depois, agachei-me e fiquei observando a fila indiana dupla, a que
ia e a que vinha, só uma delas carregando os luminosos pedacinhos
de folha, bandeiras verdes de um exército em marcha.
Havia ali uma determinação, um propósito. Todas eram iguais
perante o meu olhar. Até que me assomou a possibilidade espantosa
de cada uma ser um indivíduo. Para que estavam ali sob o luar de
maio? Que sonho, que utopia, as animava a ir em frente? E elas
iam, numa disciplina estrita, denodada.
Por um breve instante a luz da lua brilhou num pedacinho de folha
e refletiu, ali, a cara de Deus.
E aquela procissão de formigas não era menor que a caminhada
dos judeus do Egito para Canaã, não era menos épica que a marcha
dos exércitos de Napoleão pelos campos gelados da Rússia, nem
menos memorável que o primeiro astronauta caminhando sobre o
chão da lua.
Havia um fim naquilo tudo, mas ele não me foi revelado.Tudo o
que sei é que só um ser ali podia deter aquele caminhada. E esse ser
era eu. Bastava uma pisada, um jato de mijo, um chute na terra.
FLORENÇA E FLORENÇA
Eu nunca
fui a Florença.
Por isso é preciso fazer um poema para Florença.
Um poema com as pedras arredondadas pelos sonhos de ver
Florença.
Esses que já me habitam.
Com essas pedras, pavimentar as ruas da cidade sonhada. Porque a
lua que irá banhá-las é a mesma lua que banha este março cruel e
chuvoso do Rio de Janeiro. A mesma lua que banha os campos -
também tão lindos - do meu país destroçado.
Eu nunca fui a Florença.
Por isso é preciso sonhar Florença.
A sonho jóia de pedra, incrustada de idéias. A sonho a cidade visível
do meu desejo de caminhá-la, concreta, no esplendor de sua
materialidade.
O Rio Arno corre na veia da memória. A Ponte Velha desde sempre
esteve aqui, a ligar a realidade e o sonho, o velho e o novo, Florença
e Florença.
Aqui estou, na praça de Miguel Ângelo. Diante de mim, o vale do
Arno e a silhueta da cidade. A torre do Palácio Velho à esquerda e,
à direita, a igreja de Santa Cruz. Ao centro, a cúpula do Duomo.
Bruneleschi apóia a mão direita em meu ombro e a outra aponta
para sua obra. Numa esquina insuspeitada, Galileu empunha uma
luneta e descobre que a Terra gira em torno do homem. Em frente
ao restaurante, Miguel Ângelo grita: “Parla!” E as palavras são
esculturas feitas de ar. (Esculturas mais perfeitas que o Moisés: não
lhes falta nem falar.) Na praça da Senhoria, Leonardo tenta se
identificar ao porteiro do hotel, enumerando seus feitos. Donatello,
Boticelli e Fra Angelico passeiam entre os japoneses com suas
câmeras fotográficas. Ghiberti, Ghirlandaio e Giotto se alinham em
ordem alfabética na relação dos hóspedes. No balcão, Dante escreve
num cartão postal: “O homem é a mais bela criação de Deus”.
É preciso observar Florença. Com olhar exato, inocente e
apaixonado. Saio pelas ruas e invento a perspectiva e os primeiros
nus.
Aqui nada foi roubado de outro lugar. Obras de seus próprios filhos,
os tesouros de arte e arquitetura se perfilam íntegros ante meus
olhos brasileiros. Penso em Aleijadinho e Oscar, na utopia de meu
país, no que podia ter sido e não foi. Sei que tudo isso também é
meu. Cada museu é minha casa. Quem ama o belo já o possui na
escritura definitiva da memória.
Já tenho a fadiga generosa de percorrer Florença. Agora a lua cai
sobre as pedras. A lua de Florença, lua que nunca vi, ilumina todo o
mar de Copacabana. ( É uma lua quase cheia, feito a felicidade. É
uma lua quase meia, inteira em sua metade.)
É preciso ver, ouvir, cheirar, provar e tocar Florença.
Só então poderei trazer de Florença o que ela tem de melhor: artigos
de couro, finos tecidos, a luz da lua sobre o Arno, os mais belos
quadros dos Ofícios. E a saudade que terei de Florença, quando for
Florença que já estiver, então, a passear por mim.
Por isso é preciso fazer um poema para Florença.
Um poema com as pedras arredondadas pelos sonhos de ver
Florença.
Esses que já me habitam.
Com essas pedras, pavimentar as ruas da cidade sonhada. Porque a
lua que irá banhá-las é a mesma lua que banha este março cruel e
chuvoso do Rio de Janeiro. A mesma lua que banha os campos -
também tão lindos - do meu país destroçado.
Eu nunca fui a Florença.
Por isso é preciso sonhar Florença.
A sonho jóia de pedra, incrustada de idéias. A sonho a cidade visível
do meu desejo de caminhá-la, concreta, no esplendor de sua
materialidade.
O Rio Arno corre na veia da memória. A Ponte Velha desde sempre
esteve aqui, a ligar a realidade e o sonho, o velho e o novo, Florença
e Florença.
Aqui estou, na praça de Miguel Ângelo. Diante de mim, o vale do
Arno e a silhueta da cidade. A torre do Palácio Velho à esquerda e,
à direita, a igreja de Santa Cruz. Ao centro, a cúpula do Duomo.
Bruneleschi apóia a mão direita em meu ombro e a outra aponta
para sua obra. Numa esquina insuspeitada, Galileu empunha uma
luneta e descobre que a Terra gira em torno do homem. Em frente
ao restaurante, Miguel Ângelo grita: “Parla!” E as palavras são
esculturas feitas de ar. (Esculturas mais perfeitas que o Moisés: não
lhes falta nem falar.) Na praça da Senhoria, Leonardo tenta se
identificar ao porteiro do hotel, enumerando seus feitos. Donatello,
Boticelli e Fra Angelico passeiam entre os japoneses com suas
câmeras fotográficas. Ghiberti, Ghirlandaio e Giotto se alinham em
ordem alfabética na relação dos hóspedes. No balcão, Dante escreve
num cartão postal: “O homem é a mais bela criação de Deus”.
É preciso observar Florença. Com olhar exato, inocente e
apaixonado. Saio pelas ruas e invento a perspectiva e os primeiros
nus.
Aqui nada foi roubado de outro lugar. Obras de seus próprios filhos,
os tesouros de arte e arquitetura se perfilam íntegros ante meus
olhos brasileiros. Penso em Aleijadinho e Oscar, na utopia de meu
país, no que podia ter sido e não foi. Sei que tudo isso também é
meu. Cada museu é minha casa. Quem ama o belo já o possui na
escritura definitiva da memória.
Já tenho a fadiga generosa de percorrer Florença. Agora a lua cai
sobre as pedras. A lua de Florença, lua que nunca vi, ilumina todo o
mar de Copacabana. ( É uma lua quase cheia, feito a felicidade. É
uma lua quase meia, inteira em sua metade.)
É preciso ver, ouvir, cheirar, provar e tocar Florença.
Só então poderei trazer de Florença o que ela tem de melhor: artigos
de couro, finos tecidos, a luz da lua sobre o Arno, os mais belos
quadros dos Ofícios. E a saudade que terei de Florença, quando for
Florença que já estiver, então, a passear por mim.
O CANIVETE SUÍÇO
És um objeto belo e contraditório. Como a vida e
a poesia. Símbolo do útil e do funcional, é na beleza
e na comovente inutilidade que reside a tua força.
Grávido de possibilidades, repousas sobre a mesa.
Amigável ao tato e à vista, ao ouvido e ao olfato
— teus cliques metálicos, teu cheiro metálico —,
estás sempre disponível, tuas peças múltiplas
fechadas, como a asas da águia que paradas
repousam antes do vôo. Como uma flor que a
qualquer momento pode abrir suas pétalas de aço.
Em teu vermelho metálico conciso, és mesmo uma
flor de aço, as pétalas multiformes, no jardim da
mesa de trabalho. Flor imarcescível, a sempre-viva,
a que sobreviverá a mim, à minha frágil carne,
aquela que, num acidente banal, uma de tuas
lâminas pode cortar e fazer jorrar o sangue que se
confundirá, mimético, com tua cor. Pacientemente,
poderia contigo construir pequenos artefatos,
reparar arestas, recortar figuras, dar um sentido a
tudo e ordenar o caos. Ou poderia, num corte
súbito no pulso...
Como da minha vida, sou teu dono. Mas não sei o
que fazer contigo, como não sei o que fazer com
ela. Sobre a mesa de trabalho, no esplendor de tua
materialidade, me contemplas.
És um objeto belo e contraditório. Como a vida e
a poesia. Símbolo do útil e do funcional, é na beleza
e na comovente inutilidade que reside a tua força.
Grávido de possibilidades, repousas sobre a mesa.
Amigável ao tato e à vista, ao ouvido e ao olfato
— teus cliques metálicos, teu cheiro metálico —,
estás sempre disponível, tuas peças múltiplas
fechadas, como a asas da águia que paradas
repousam antes do vôo. Como uma flor que a
qualquer momento pode abrir suas pétalas de aço.
Em teu vermelho metálico conciso, és mesmo uma
flor de aço, as pétalas multiformes, no jardim da
mesa de trabalho. Flor imarcescível, a sempre-viva,
a que sobreviverá a mim, à minha frágil carne,
aquela que, num acidente banal, uma de tuas
lâminas pode cortar e fazer jorrar o sangue que se
confundirá, mimético, com tua cor. Pacientemente,
poderia contigo construir pequenos artefatos,
reparar arestas, recortar figuras, dar um sentido a
tudo e ordenar o caos. Ou poderia, num corte
súbito no pulso...
Como da minha vida, sou teu dono. Mas não sei o
que fazer contigo, como não sei o que fazer com
ela. Sobre a mesa de trabalho, no esplendor de tua
materialidade, me contemplas.
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