Talvez o
último desejo
Rachel de
Queiroz
Ilha, dezembro de 1949.
Talvez o último desejo
Pergunta-me com muita seriedade uma
moça jornalista qual é o meu maior desejo para o ano de 1950. E a resposta natural é dizer-lhe que desejo
muita paz, prosperidade pública e particular para todos, saúde e dinheiro aqui
em casa. Que mais há para dizer?
Mas a verdade, a verdade verdadeira
que eu falar não posso, aquilo que representa o real desejo do meu coração,
seria abrir os braços para o mundo, olhar para ele bem de frente e lhe dizer na
cara: Te dana!
Sim te dana, mundo velho. Ao planeta com
todos os seus homens e bichos, ao continente, ao país, ao Estado, à cidade, à
população, aos parentes, amigos e conhecidos: danem-se! Danem-se que eu não
ligo, vou pra longe me esquecer de tudo, vou a Pasárgada ou a qualquer outro
lugar, vou-me embora, mudo de nome e paradeiro, quero ver quem é que me acha.
Isso que eu queria. Chegar junto do
homem que eu amo e dizer para ele: Te dana, meu bem! Dora em vante pode fazer o
que entender, pode ir, pode voltar, pode pagar dançarinas, pode fazer
serenatas, rolar de borco pelas calçadas, pode jogar futebol, entrar na linha
de Quimbanda, pode amar e desamar, pode tudo, que eu não ligo!
Chegar junto ao respeitável público
e comunicar-lhe: Danai-vos, respeitável público. Acabou-se a adulação, não me
importo mais com as vossas reações, do que gostais e do que não gostais; nutro
a maior indiferença pelos vossos apupos e os vossos aplausos e sou incapaz de
estirar um dedo para acariciar os vossos sentimentos. Ide baixar noutro centro,
respeitável público, e não amoleis o escriba que de vós se libertou!
Chegar junto da pátria e dizer o
mesmo: o doce, o suavíssimo, o libérrimo te dana. Que me importo contigo,
pátria? Que cresças ou aumentes, que sofras de inundação ou de seca, que vendas
café ou compres ervilhas de lata, que simules eleições ou engulas golpes? Elege
quem tu quiseres, o voto é teu, o lombo é teu. Queres de novo a espora e o
chicote do peão gordo que se fez teu ginete? Ou queres o manhoso mineiro ou o
paulista de olho fundo? Escolhe à vontade - que me importa o comandante se o
navio não é meu? A casa é tua, serve-te, pátria, que pátria não tenho mais.
Dizer te dana ao
dinheiro, ao bom nome, ao respeito, à amizade e ao amor. Desprezar parentela,
irmãos, tios, primos e cunhados, desprezar o sangue e os laços afins, me sentir
como filho de oco de pau, sem compromissos nem afetos.
Me deitar numa rede branca armada
debaixo da jaqueira, ficar balançando devagar para espantar o calor, roer
castanha de caju confeitada sem receio de engordar, e ouvir na vitrolinha
portátil todos os discos de Noel Rosa, com Araci e Marília Batista. Depois
abrir sobre o rosto o último romance policial de Agatha Christie e dormir
docemente ao mormaço.
*
Mas não faço. Queria tanto, mas não faço.
O inquieto coração que ama e se assusta e se acha responsável pelo céu e pela
terra, o insolente coração não deixa. De que serve, pois, aspirar à liberdade?
O miserável coração nasceu cativo e só no cativeiro pode viver. O que ele
deseja é mesmo servidão e intranqüilidade: quer reverenciar, quer ajudar, quer
vigiar, quer se romper todo. Tem que espreitar os desejos do amado, e lhe fazer
as quatro vontades, e atormentá-lo com cuidados e bendizer os seus caprichos; e
dessa submissão e cegueira tira a sua única felicidade.
Tem que cuidar do mundo e vigiar o
mundo, e gritar os seus brados de alarme que ninguém escuta e chorar com
antecedência as desgraças previsíveis e carpir junto com os demais as desgraças
acontecidas; não que o mundo lhe agradeça nem saiba sequer que esse estúpido
coração existe. Mas essa é a outra servidão do amor em que ele se compraz - o
misterioso sentimento de fraternidade que não acha nenhuma China demasiado
longe, nenhum negro demasiado negro, nenhum ente demasiado estranho para o seu
lado sentir e gemer e se saber seu irmão.
E tem o pai morto e a mãe viva, tão
poderosos ambos, cada um na sua solidão estranha, tão longe dos nossos braços.
E tem a pátria que é coisa que
ninguém explica, e tem o Ceará, valha-me Nossa Senhora, tem o velho pedaço de
chão sertanejo que é meu, pois meu pai o deixou para mim como o seu pai já lho
deixara e várias gerações antes de nós, passaram assim de pai a filho.
E tem a casa feita pela nossa mão,
toda caiada de branco e com janelas azuis, tem os cachorros e as roseiras.
E tem o sangue que é mais grosso que
a água e ata laços que ninguém desata, e não adianta pensar nem dizer que o
sangue não importa, porque importa mesmo. E tem os amigos que são os irmãos
adotivos, tão amados uns quanto os outros.
E tem o respeitável público que há
vinte anos nos atura e lê, e em geral entende e aceita, e escreve e pede
providências e colabora no que pode. E tem que se ganhar o dinheiro, e tem que
se pagar imposto para possuir a terra e a casa e os bichos e as plantas; e tem
que se cumprir os horários, e aceitar o trabalho, e cuidar da comida e da cama.
E há que se ter medo dos soldados, e respeito pela autoridade, e paciência em
dia de eleição. Há que ter coragem para continuar vivendo, tem que se pensar no
dia de amanhã, embora uma coisa obscura nos diga teimosamente lá dentro que o
dia de amanhã, se a gente o deixasse em paz, se cuidaria sozinho, tal como o de
ontem se cuidou.
E assim, em vez da bela liberdade,
da solidão e da música, a triste alma tem mesmo é que se debater nos cuidados,
vigiar e amar, e acompanhar medrosa e impotente a loucura geral, o suicídio
geral. E adular o público e os amigos e mentir sempre que for preciso e jamais
se dedicar a si própria e aos seus desejos secretos.
Prisão de sete portas, cada uma com
sete fechaduras, trancadas com sete chaves, por que lutar contra as tuas
grades?
O único desabafo é descobrir o
mísero coração dentro do peito, sacudi-lo um pouco e botar na boca toda a
amargura do cativeiro sem remédio, antes de o apostrofar: Te dana, coração, te
dana!
Rachel
de Queiroz
Biografia
Rachel de Queiroz (1910 - ) é uma das
grandes escritoras da literatura brasileira. Já escreveu contos, romances,
crônicas, peças de teatro, criticas literárias e livros infantis.
Nascida no Ceará, ela e sua família migram para o Rio de Janeiro no ano de 1917, fugindo de uma forte seca que assolava o Nordeste. Fatos como esse influenciariam profundamente sua literatura, que tem como uma de suas características mais marcantes o realismo com que aborda o homem nordestino e os problemas relacionados com a terra.
Rachel estreou no mundo literário muito jovem, aos 20 anos de idade, com seu romance O Quinze, que aborda temas como a seca e a pobreza.
Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, no ano de 1977, e já recebeu diversos prêmios literários.
Grande cronista, Rachel já publicou mais de duas mil crônicas, que deram origem a diversos livros. Dentre eles está Um alpendre, uma rede, um açude - Cem crônicas escolhidas, do qual extraímos a crônica acima.
Nascida no Ceará, ela e sua família migram para o Rio de Janeiro no ano de 1917, fugindo de uma forte seca que assolava o Nordeste. Fatos como esse influenciariam profundamente sua literatura, que tem como uma de suas características mais marcantes o realismo com que aborda o homem nordestino e os problemas relacionados com a terra.
Rachel estreou no mundo literário muito jovem, aos 20 anos de idade, com seu romance O Quinze, que aborda temas como a seca e a pobreza.
Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, no ano de 1977, e já recebeu diversos prêmios literários.
Grande cronista, Rachel já publicou mais de duas mil crônicas, que deram origem a diversos livros. Dentre eles está Um alpendre, uma rede, um açude - Cem crônicas escolhidas, do qual extraímos a crônica acima.
Texto extraído do livro:
Um alpendre, uma rede, um açude - 100 crônicas escolhidas. Rachel de Queiroz. Editora Siciliano. São Paulo. 1993 p. 101-103.
www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/index.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário