DA JANELA DO QUARTO DE DORMIR (LICENÇA AÍ, LÔ
BORGES)
ELIAS RIBEIRO PINTO
Ilustração de Luis Pinto
Para
o Circular CampinaEis a mais recente crônica para o Circular Campina, que já está nas ruas deste domingo. O texto é brilhantemente (ou melhor, "chamejantemente") ilustrado pelo desenho de Luiz Pinto, que captou minha ordem divina de despejo ao casal vira-lata que queria fazer "as coisa" debaixo da minha janela. Aqui na Campina, claro. Só lendo a crônica.
DA JANELA DO QUARTO DE DORMIR (LICENÇA AÍ, LÔ BORGES)
Um
hóspede do principal hotel do bairro – a nossa Campina –, e um dos principais
da cidade, é assaltado quando desce do táxi defronte ao hotel, em plena
Presidente Vargas, por um ladrão que chega na garupa de uma moto.
Não
deixa de ser um acontecimento extraordinário, mesmo numa cidade violenta como
Belém, tão extraordinário quanto os que já testemunhei bem embaixo da minha
janela, aqui na Ferreira Cantão, pertinho do Princesa Louçã, ex-Hilton, o hotel
do primeiro parágrafo
Já
fui acordado, de madrugada, várias vezes, com ladrões quebrando janela de
carro. A última vez, tem pouco mais de uma semana (foi agora em janeiro),
despertei às três da madrugada. Um barulho estranho. Alguém revirando lixo,
rasgando sacos? Mas àquela hora da madrugada? Então, um rasgo mais forte.
Resolvo ir à janela. A tempo de ouvir as exclamações que partem de outras
janelas, o burburinho que se levanta. Alertado pelo barulho, chega o dono do
carro: pois não rasgaram a lona que cobria a parte traseira de sua caminhonete
e fugiram carregando uma prancha de surf?
Outra
vez, fui acordado, madrugada alta, com o seguinte diálogo:– Eu juro, não vou te enganar. Olha, pode segurar a minha bolsa. Eu vou, tomo um café ali numa banca, troco o dinheiro, e fico com quinze.
– Não vai mesmo? Olha, eu tenho cinco trocado. Não pode ser?
– Não, cinco não vale. Acredita em mim. Estou dizendo, fica com a minha bolsa. Agora, se fores embora, vou atrás de ti, faço um escândalo.
– Então prometes que trocas e trazes o resto de volta?
– Juro, pelo amor da minha filha.
O
diálogo acima (ou ao menos a tentativa de reprodução que dele tentei esboçar)
aconteceu bem debaixo da janela de casa, do meu quarto de dormir. Era por volta
das quatro da madrugada, já no domingo do Círio passado.
A
Ferreira Cantão, em geral uma rua quieta, principalmente no ermo das noites –
quando as ruas centrais da cidade perdem o burburinho constante da gente que
circula em torno de bancos, de prédios públicos, da vida que se faz diariamente
no centro –, naquela madrugada o movimento, intenso, fugia da rotina, da
quietude. Era a virada do sábado para o domingo do Círio.
Afinal,
da noite da trasladação até o amanhecer com a procissão, a circulação não
cessa, de carros (por causa do trânsito interrompido mais acima, na Presidente
Vargas), de gente. E de cenas, digamos, paralelas, como se acontecessem nos
bastidores da grande festa religiosa (e profana).
Naquela
noite, madrugada chegando, já tinha visto, lá na esquina, um casal que se
arrochava, daquele tipo que quando alguém passa, de carro, grita: “Paga
motel!”. Em outro momento, uma mulher, conhecida na área, fumadora de crack,
tossia desesperadamente no meio-fio, buscando ar, como num acesso de asma. E aí
fui dormir.
Até
que mais tarde, já por volta das quatro da madrugada, acordei com o diálogo
transcrito no início desta coluna, bem debaixo da minha janela. Logo percebi
que se tratava, digamos, de um acerto de contas. Acertava-se o valor de um
serviço sexual. Era, afinal, uma transação (anexar o trocadilho) de livre
mercado, lei de oferta e procura, de demanda reprimida, toma lá, dá cá.
Aguardei
que chegassem a um “denominador comum” e enfim partissem rumo a um dos motéis
baratos que abundam (sem anexar trocadilho) aqui na Campina. No entanto, para
minha surpresa, definidos os valores, o acerto parecia que ia se consumar ali
mesmo.
Não
acreditei. Levantei, abri e janela e me deparei com a cena que nem Dante
aceitaria liberar o adjetivo dantesco para descrevê-la. A mulher (a ouvi dizer,
um pouco antes, que “de costas não”, que assim se machucaria, ficaria lanhada),
já de quatro, se oferecia ao homem, branco, parecendo um trabalhador, ou saído
ou a caminho do emprego, que arriava as calças, tentando liberar, digamos, a
ferramenta. “Vocês vão fazer isso aqui mesmo?”, disse, surpreendendo-os. Como a
voz vinha de cima, do nada, parecia que um deus, colérico, os flagrara no ato
vira-lata.
Ilustração de Paulo Emman
Desnorteado,
ele levantou as calças e disse, à guisa de desculpa: “Vamos que a gente está
incomodando”. Ela, depois do susto, saiu imprecando: “A gente não pode nem
trabalhar em paz”. Era a mesma que há pouco se esganiçava, roncando em busca de
ar, como numa crise asma. Só faltou que ele, antes de consumar o intercurso
canino, fizesse uma selfie pornô. Selfie dantesca. Perdoa aí, Dante. E assim
caminha a humanidade, se aliviando pela rua como cachorros.
E
ele se foi com ela fazendo um escândalo às suas costas, como havia prometido.
Esta
é a Campina. Nem pior, nem melhor que o resto da cidade. Mas é um bairro em que
muitos circulam, vindos de todos os cantos da cidade. Mas de noite, noite alta,
é a nossa Campina, que passa debaixo da janela do meu quarto de dormir.
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