“Fernando Pessoa me encanta e me oprime”
GUILHERME S. ZANELLA
Leia entrevista exclusiva com José Paulo Cavalcanti
Filho, o maior colecionador de objetos pessoais do poeta
Maior colecionador de objetos pessoais de Fernando
Pessoa, José Paulo Cavalcanti Filho acaba de comprar em leilão em Lisboa a
escrivaninha e os óculosdo poeta.
A aquisição faz parte do projeto pessoal desse
advogado pernambucano e ex-ministro da Justiça (governo Sarney) demontar as
peças da vida desse imenso quebra-cabeça feito de heterônimos. A ideia é
reconstruir a figura do homem “real”que se esconde atrás desse mito da
literatura portuguesa. O resultado foi “Fernando Pessoa – Uma Quase
Autobiografia” (Ed.Record, 2011).
Membro da Academia Pernambucana de Letras, José
Paulo Cavalcanti também compõe hoje a Comissão da Verdade, que visa a apurar os
registros que indiquem violações de direitos humanos durante o regime militar.
Em entrevista à CULT, Cavalcanti Filho explica
abaixo sua obsessão pela vida do autor de “Tabacaria” e também o que espera da
Comissão da Verdade.
CULT – Qual foi o seu primeiro contato com a obra
do Fernando Pessoa?
José Paulo Cavalcanti Filho – Em 1966, ouvi
“Tabacaria” recitada pelo ator português João Villaret. Nessa época,
ainda não sabia que Villaret era Deus. Nem que Pessoa era esse gênio
absoluto. Foi o começo de uma paixão que até hoje me encanta e oprime.
Tanto que nunca mais parei de lê-lo, com obsessão. Tudo. Sempre.
Aos poucos, fui sendo tomado por uma angústia
indefinida. Explico: o grande Octavio Paz, ao início de um livro
sobre Pessoa, comparando a insignificância da vida à majestade
da obra, disse que, nele, “a obra é a vida e a vida é a obra”. O
que é verdade, certamente, mas também não é. Porque, por trás do
autor, há um homem que dorme, acorda, se veste, trabalha e sonha. “Mas
quem era ele?”, eis a questão.
Não só isso. Sempre quis saber mais. Qual era a
tabacaria da “Tabacaria”. Quem era a pequena que comia
chocolates? Existiu mesmo um Esteves, aquele que conversava à
porta com o dono da tabacaria? Procurava esse livro e ele não
existia. E então, no mais íntimo, pouco a pouco se formou o desejo de
escrevê-lo. Foi mais ou menos assim.
Quando tomou a decisão de fato de escrevê-lo?
A decisão se deu em um momento mágico, quando
tentava escrever a “biografia” do heterônimo Álvaro de Campos. Porque
então percebi, claramente, que Pessoa só escrevia sobre o que estava em
torno dele.
Nos outros escritores, é comum que, nos textos,
apareçam pedaços da vida, nomes de amigos, por aí. Em Pessoa,
não. Era mais. Era um estilo próprio.
Vamos ao que fui percebendo. Por que Álvaro era
de Campos? Por conta de um sósia (os narizes eram
rigorosamente iguais), Ernesto Campos Melo e Castro, oito anos
mais novo que Pessoa. E que tinha muitas outras de suas
características: era beirão, judeu de Covilhã e engenheiro.
Por que nasceu em 15 de outubro? Porque nesse
dia nasceram Virgílio e Nietzsche, duas das admirações literárias de
Pessoa. E nasceu onde? Em Tavira, terra do avô paterno de Pessoa, o
general Joaquim Antônio de Araújo Pessoa.
E por que era engenheiro naval? Porque essa
era a profissão do genro da tia Anica, Raul Soares da Costa,
que dormia então num quarto ao lado do seu. E viaja a
Newcastle-on-Tyne. Por quê? Porque lá era cônsul outra de
suas admirações literárias, Eça de Queirós.
E, em “Opiário”, viaja pelo Mediterrâneo. Por
quê? Porque também Pessoa fez essa viagem. Mas, diferentemente de
Pessoa, que vai até Lisboa, no poema a viagem é interrompida
em Marselha. Por quê? Porque Rimbaud fez essa mesma viagem quando
voltou da África para morrer e desembarcou em Marselha.
Por fim, Campos escreve como o homossexual
que, no fundo, talvez Pessoa quisesse ser. Mas só até quando surge em
sua vida Ophélia Queiroz. A partir daí, Campos passa a escrever
como Pessoa. Tanto que, fosse o Campos dos primeiros tempos, seria
feliz não casando com a filha de uma lavadeira, como está na
“Tabacaria”, mas sim se, ao invés disso, se casasse com
algum marinheiro.
Então reli as quase 30 mil páginas que
escreveu e tudo se encaixava. A grande descoberta, portanto, é que
a obra de Pessoa é como um testamento que esperou mais de 70
anos para ser desvendado.
Como coletou informações, fez contatos e
traçou os rumos da pesquisa? Como foi compor a figura de Pessoa com
base em seus heterônimos?
Fui mais de 30 vezes a Lisboa, contratei um
jornalista e um historiador, em Portugal, para conferir cada
página que escrevi, li todos os livros, passei centenas de horas,
muitas, na Biblioteca Nacional, na Casa Fernando Pessoa, na Torre do
Tombo, nas igrejas, nas conservatórias, conversei com muitos que o
conheceram, inclusive anônimos, na rua, que conversavam sempre com
ele e iam ao seu quarto.
Tentei até desenterrar o corpo do amigo Sá
Carneiro, que foi sepultado no cemitério de Pantin, em Paris,
na esperança de que no caixão estivessem as cartas que Pessoa lhe
escreveu.
Digo, sem medo de errar, que tentei conferir
tudo. Ninguém acreditará na quantidade de correções dos textos
anteriores que estão no livro, que vão até ao que não tem
importância.
Para ficar num exemplo tosco, na transcrição
dos papéis de Pessoa, consta que ele comprava sapatos na
Sapataria Contexto. Pedi a meu historiador para conferir onde era.
Não havia nenhuma com esse nome. Então pedi que começasse a procurar
desde o começo da Rua do Ouro e fosse subindo até a Restauradores,
verificando se havia alguma sapataria com nome semelhante a Contexto.
Tudo naquele tempo, claro.
E encontramos, vizinha à Casa Lourenço e
Santos, onde fazia ternos, a Sapataria Contente, a mais famosa
da Lisboa daquele tempo, dando-se que quem transcreveu a anotação
simplesmente se embaralhou na péssima letra de Pessoa. Trocou o “nte”
por um “xto”. Nem mesmo detalhes assim foram descuidados. E penso que
o resultado não ficou mal.
O senhor já afirmou que Fernando Pessoa era um
escritor sem imaginação e usava óculos de 3 graus mesmo tendo 12
graus de miopia. Essa ótica singular de mundo influenciou
sua literatura?
Essa história de escritor sem imaginação é
quase uma brincadeira, porque uso a expressão não no seu sentido
corrente, algo como a capacidade de sonhar (e poucos no mundo
sonharam tanto quanto ele), mas no estilo de escrever.
Sem imaginação porque poderia usar um nome
qualquer, na “Tabacaria”, mas preferiu usar o do amigo
Joaquim Esteves, um vizinho da família, que frequentava sua casa e
que declarou seu óbito, só para constar. Desses quase anônimos, e
tantos há em nossas vidas, que passam por esse insensato mundo quase
sem deixar registros! “Sem metafísica”, como a ele se referia Pessoa.
Assim, como que juntando peças de um
quebra-cabeça, foi se formando a figura implausível do meu
amigo Fernando Pessoa. Um homem extremamente vaidoso no vestir; e, ao
mesmo tempo, extremamente discreto no conviver. Foi uma bela
aventura.
O senhor já adquiriu diversos itens pessoais
do Fernando Pessoa. É para acervo pessoal ou existe algum
plano futuro?
Penso que tenho quase tudo dele, e a intenção é
destinar a algo público. Farei isso. Há só um risco, o de antes me
acontecer algo desagradável. Por isso já disse a mulher e filhos que,
se algo acontecer, por favor, tirem isso do inventário e transfiram a
quem possa usar. À Academia de Letras, talvez.
Como conciliou a paixão pela literatura com a
carreira política? Como se deu esse avanço?
Hoje eu não concilio, estou fora da política.
Nem filiado a partido político sou. Na Grécia Antiga, havia a polis,
a cidade, o patrimônio público e a idios, o patrimônio particular.
Por isso se dizia dos que se ocupavam das causas públicas, que eram
políticos: uma homenagem. E, dos outros, que eram idiotas: algo
menor.
Se for me considerar político nesse sentido
grego, aceito.
O sr. foi ministro da Justiça, é advogado,
consultor da Unesco, do Banco Mundial e figura atualmente na Comissão
da Verdade. Onde se encontra o vínculo com a literatura?
O destino, penso que foi o destino. Mas esse
percurso interfere no ato de escrever de duas maneiras, uma boa e uma
ruim. A boa é que me permite conhecer melhor a natureza humana,
o insensato coração, a alma dos homens, que para Pessoa “é um
abismo”. A ruim é não ter tempo para nada.
Em entrevistas, o senhor afirmara que em
princípio não iria fazer parte da Comissão da Verdade. Por que
repensou a ideia?
Foi diferente. Eu simplesmente imaginei que
havia mais gente querendo fazer parte da comissão, ligada aos
partidos. E eu não sou nada. Mas essa não é missão que se possa
recusar e aceitei com devoção. Por espírito público.
Qual a sua participação na Comissão? Atende a
algum interesse específico?
Somos todos iguais nela. Se acertarmos ou se
errarmos, faremos isso juntos. E seremos julgados pelo
indeterminado cidadão comum, no fim dos trabalhos. Mas estou
otimista. Corrigindo, sou otimista. Vai dar certo.
Como o senhor classifica os desdobramentos que
essa iniciativa inédita terá no cenário político brasileiro?
Com tranquilidade. Não estamos na comissão
para julgar ninguém. Nosso dever é contar um pedaço da história do
Brasil, com equilíbrio, mas com determinação.
http://revistacult.uol.com.br/home/2012/07/fernando-pessoa-me-encanta-e-me-oprime/
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