O desencanto de Simone de Beauvoir está em livro inédito no Brasil
Antonio
Gonçalves Filho
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O Estado de S. Paulo 06 Junho 2015
Política, velhice, crise conjugal e existencial são temas de uma obra vigorosa sobre casal de professores
Antes de ser batizado pelos críticos de
autoficção, esse já era um gênero praticado pela escritora feminista Simone de
Beauvoir (1908-1986), que, entre 1966 e 1967, após uma temporada na capital da
ex-União Soviética, escreveu Mal-entendido em Moscou, livro inédito no Brasil e
apenas publicado após a morte da autora. Beauvoir planejava lançar a novela no
livro A Mulher Desiludida (1967/68), mas acabou desistindo. Não é difícil
entender sua dúvida sobre a pertinência de publicar ou não o livro. O motivo
está longe de ser falta de qualidade literária e próximo de um dilema
particular: os personagens são por demais parecidos com Sartre e Simone de
Beauvoir que, a exemplo do casal de professores sexagenários e aposentados do livro,
André e Nicole, fizeram algumas viagens a Moscou – e, provavelmente,
enfrentaram crise semelhante.
Sartre teve um caso amoroso com a intérprete russa
Lena Zonina e, insinuam biógrafos, amargou uma paixão incestuosa pela filha
Arlette, que adotou legalmente em 1964, quando a tradutora completou 28 anos.
Pois a grande rival da professora francesa de Mal-entendido em Moscou é
justamente a filha do primeiro casamento de André, Macha, guia e intérprete, a
quem ele dedica mais atenção do que suporta o ciúme de Nicole. Em tempo: Lena,
a intérprete russa de Sartre, teve também uma filha chamada Macha e,
descobriu-se, não falava só bem francês: era agente da KGB, o serviço secreto
russo.
Logo se vê que a temporada moscovita de 1966 foi
para Simone de Beauvoir um desapontamento, quando não um pesadelo. Suas
convicções políticas foram fortemente abaladas com a extrema burocracia do
regime soviético e a falta de liberdade na extinta URSS (não que a situação
tenha melhorado na Rússia, desde então). Apesar de seus esforços para fazer de
Mal-entendido em Moscou uma novela polifônica, em que o ponto de vista do homem
tenha o mesmo peso na relação – simétrica, para fazer sentido –, a voz mais
ouvida no livro é a da própria narradora que, desapontada com a falência do socialismo
soviético, não vê a hora de voltar a Paris e livrar-se do tédio que lhe
provocam as discussões políticas entre Macha e André. A dor pessoal é também a
expressão de uma crise coletiva advinda da descrença.
Nessa relação especular com Nicole, Simone cuida,
porém, para que esse não seja um romance totalmente autobiográfico como seus
livros anteriores, especialmente Os Mandarins, que lhe deu o Goncourt em 1954 –
roman-à-clef em que o papel do intelectual na sociedade é igualmente posto à
prova, com Simone escancarando seu caso extraconjugal com o romancista
americano Nelson Algren. Em Mal-entendido em Moscou, no outono de sua
existência, Simone não se permite mais colocar como antagonistas velhos amigos
da revolução (como Sartre e Camus em Os Mandarins, retratados como Robert e
Henri, respectivamente). Na novela póstuma, publicada em 1992, o antagonista é
a velhice, que faz o animal sucumbir à gravidade, sentir inveja dos jovens e
resmungar da rigidez que torna seu corpo avesso à revolução.
Sartre e Simone de Beauvoir mantinham uma relação
aberta, em que o companheiro até transferia para seus braços suas ex-amantes
(ela era bissexual). Quando chegou a idade de se tornar invisível aos olhos
alheios, a crise existencial foi inevitável. A novela é fruto dela. Embora a
justaposição de pontos de vista seja fruto da alternância narrativa, de uma
relação em que o diálogo se dá por meio da estrutura do texto, ela ainda segue,
em Mal-entendido em Moscou, o modelo narrativo gidiano que a guiou na
juventude. Curiosamente, também Gide se desencantou com a União Soviética.
Espíritos libertários não suportam burocratas vigilantes dos bons
costumes.
http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,o-desencanto-de-simone-de-beauvoir-esta-em-livro-inedito-no-brasil,1701006
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