Flavio Cafiero lança livro com contos misteriosos do dia a dia
Wilson
Alves-Bezerra - ESPECIAL PARA O ESTADO
- O Estado de S. Paulo
20 Fevereiro 2015
Primeira obra do autor foi finalista do prêmio Jabuti
Em seu primeiro livro de contos, Flavio Cafiero revisita temas caros aos
contistas clássicos: a vingança (O Atirador de Facas), o casal em
crise em meio à viagem (Arabescos), a narrativa fantástica do homem que não
sabe que morreu (Não Fale com o Fantasma), entre outros. Em muitas das
14 narrativas que compõem o livro, faz uso do fluxo de consciência, para
encenar problemas de personagens de classe média, muitas vezes preconceituosos,
em meio à sociedade de massa e seus discursos: o do consumo, do turismo, da
homossexualidade, entre outros.
No conto inicial, Estudos Recentes, já se
ouve uma fala, encadeada ao longo de sete páginas, que é amálgama dos diversos
temas de uma revista de variedades e de um noticiário vespertino: “É no verão
que os velhos se desidratam na praça, as criancinhas dormem esquecidas no banco
traseiro, famílias inteiras são surpreendidas durante o sono e carregadas pela
enxurrada, agarrados aos travesseiros, e até os ratos morrem sufocados entre as
manilhas subterrâneas” (pág. 10). É a verborragia
que estará presente ao longo do livro, sem sutileza ou contenção.
Há uma clara opção pelo trabalho com a linguagem, pela forma do conto, e
este é certamente um ponto positivo da obra. Em certos momentos, instaura-se
outra voz, que surge nos rodapés, comentando ou interpelando o que diz o
narrador. No conto Arabescos, por exemplo, em que um casal brasileiro está
jantando na França, os subtextos, os gestos e até as frases em inglês ou
francês são irônica ou literalmente traduzidas nos rodapés. É uma escolha -
também presente em outros contos - por desmontar os mecanismos, os
lugares-comuns do discurso literário. No corpo do texto se lê: “Você deixa o
queixo franzido e aproxima as pupilas”. E no rodapé: “Nossa, como você é
ridículo...”. Entretanto, tal procedimento tem sua contraparte: uma aliança
tácita com o fracasso da literatura, cuja natureza se sustenta, justamente, na
ambiguidade. O leitor pode recorrer a Cat in the Rain, o clássico
conto de Hemingway sobre o casal em crise em meio à viagem ao exterior, para
ver o que se conta pelo laconismo e silenciamento dos dois; percebe-se aí a
maestria do narrador.
Já o procedimento mais recorrente de Cafiero é de outra ordem: explicitar a
decupagem dos roteiros, como se escrever literatura já não fosse possível. Sua
aposta produz alguns bons momentos no livro, como Cavo Varo, em que o
narrador conta a história de uma violação necrófila homossexual em um hospital,
enquanto o protagonista da ação o contesta pelos rodapés. O desafio, nesse jogo
perigoso com a literatura, é acertar a dose entre a sátira ao discurso
preconceituoso da classe média (que deveria necessariamente promover
deslocamentos) e o mero pastiche deste discurso, como que num duplo dele. Em
muitos contos em primeira pessoa, o leitor pode ter a impressão de estar ouvindo
um comediante de stand up contar suas intranscendentes agruras cotidianas: “Em
dias de calor os anéis não saem com facilidade, e massageio os dedos com o
hidratante pra poder tirá-los. Entende a questão? Eu aplico hidratante pra
justamente tirar os anéis e passar hidratante” (pág. 111).
Trata-se de um livro com múltiplas opções narrativas, alternando momentos
desiguais, que permitem ao leitor perguntar-se sobre as possibilidades do
gênero, em nossa sociedade povoada por relatos autoexplicativos.
WILSON ALVES-BEZERRA É CRÍTICO LITERÁRIO, TRADUTOR E PROFESSOR DE LITERATURA HISPANO-AMERICANA DA UFSCAR
DEZ CENTÍMETROS ACIMA DO CHÃO
Autor: Flavio Cafiero
Editora: Cosac Naify (160
págs.;R$ 32)
TRECHO
"É que a baleia chega a aguentar noventa minutos
sem precisar buscar oxigênio na superfície. Não desafia a vida, não é nada
disso, brincar com as fronteiras é prazer genuinamente humano (sempre penso em
você quando cruzo o trópico de Capricórnio na estrada), ainda que a baleia,
segundo um estudo recente (sempre os estudos recentes para ajudar na confusão),
ainda que a baleia (...)"
http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,flavio-cafiero-lanca-livro-com-contos-misteriosos-do-dia-a-dia,1637292
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