quarta-feira, 10 de setembro de 2014

SAFRA DE BIZARRICES, Elias Ribeiro Pinto



SAFRA DE BIZARRICES
Elias Ribeiro Pinto


COLUNA DESTA QUARTA (10/9/14) NO JORNAL  DIÁRIO DO PARÁ


O exorcismo virou arroz de festa nas igrejas evangélicas. Por mais bororó que seja o culto, demônios são arrancados aos safanões da pele dos endemoninhados de plantão.

1 Temos vagas.” Quem passar pela porta do inferno, certamente vai encontrar essa placa na entrada, como na construção civil. E com garantia de carteira assinada. Ao contrário de outros setores (quase todos), o Reino das Trevas vive um período de intensa atividade. Todos os seus escalões, do alto ao baixo clero, estão sobrecarregados. Corre o boato, nos círculos infernais, que o Chifrudo (é assim que ele, o Grande Chefe, é tratado pelos assessores mais íntimos) vai partir para a terceirização.

2 Não é para menos. O exorcismo virou arroz de festa nas igrejas evangélicas. Por mais bororó que seja o culto – e você pode acompanhar pela tevê –, demônios são arrancados aos safanões da pele dos endemoninhados de plantão. É como numa consulta ao médico do sistema público de saúde. Não demora mais que três, vá lá, cinco minutos, que a fila de endiabrados, digo, doentes, dobra a esquina. Daí a procura maior que a oferta, a demanda incessante pela linhagem de capetas.

3 Os cultos evangélicos estão mais povoados de demônios que a obra do grande escritor judeu Isaac Bashevis-Singer, que adquiriu fama internacional com suas histórias sobre a vida judaica do Leste europeu, congestionadas de espíritos com chifres, pés-de-cabra e rabos peludos, que piscam com malícia para a honrada alma ortodoxa. Tanto que o homem levou o Nobel de Literatura.

4 Depois de promover a medievalização das periferias, o evangelismo de resultados implantou cabeças de ponte nas áreas nobres das grandes cidades brasileiras, trazendo seu circo de exorcismos e sua legião de capirotos, safra de bizarrices.

5 Quando falo em medievalização, é porque o consenso estabelece que foi na Idade Média que o inferno, seus habitantes e seus combatentes mais monopolizaram a imaginação dos homens. Não é bem assim. Foi na emergência da modernidade que se deu a difusão demoníaca e o medo do diabo, por conta da coerência e do relevo que se emprestou à sua representação. Certamente que a Renascença herdou conceitos e imagens demoníacos que se haviam definido e multiplicado no decorrer da Idade Média.

6 No entanto, a atual vulgarização de Lúcifer e sua corte endiabrada nos joga para um tempo anterior ao de Padre Vieira e ao do bom Padre Manuel Bernardes, que se tinha a pena menos combativa que aquele, a tinha em estilo que até hoje nos encanta. Naqueles idos, uma luzinha que acendesse no escuro, eram os olhos em brasa do Que-Diga. Como na época do Dr. Martinho Lutero, que reconhecia o diabo em cada obstáculo com que topava.

7 Mas não pensem que é só a periferia que se deixa ofuscar pelo diabo onipresente e daí seguir a palavra dos falsos profetas. Aliás, Jesus já chamara Satã de “príncipe deste mundo”, deste aqui, o nosso. São Paulo foi ainda mais longe, chamando-o de “o deus deste mundo”. Mas voltando. O “reencantamento” do mundo chega às coberturas e abre seu book: mapa astral eletrônico, pirâmides de cristal e platina, numerologia, duendes, astrólogos e videntes a bordo de alta tecnologia, Paulo Coelho et caterva, e por aí segue a travessia esotérica.

8 Na verdade, o exorcismo mambembe encenado nessas igrejas, em vez de aumentar o medo do diabo, como na Alemanha protestante de Lutero, dá-nos uma imagem ridícula, até mesmo divertida, de Satã e suas legiões (que já tiveram combatentes mais sábios), e aí sim, estamos em pleno século 11, século 12. De qualquer maneira, a fonte parece inesgotável. No século 16 uma obra informava a existência de mais de 7 milhões de demônios distribuídos entre 72 príncipes, todos obedientes a Satã. Também já se disse que cada homem, ao nascer, vem acompanhado de um demônio especialmente encarregado de tentá-lo durante toda a sua vida. Daí a necessidade de um anjo da guarda pessoal.

9 Prefiro ficar com o Guimarães Rosa do início de “Grande Sertão: Veredas”: “Do Demo? Não gloso”. Aliás, com o Rosa do fim do “Grande Sertão”: “O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia”.

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