Metamorfose contemporânea
90 anos após a morte de Franz
Kafka suas obras transcendem o século passado e permanecem atuais
Por Gabriela Soutello
Alguém certamente teria caluniado Franz Kafka –
caso ele ainda fosse vivo –, pois uma manhã ele foi acusado sem ter feito
mal algum. A estrutura da modernidade sobre a qual escrevia o autor há
cerca de cem anos acabou por se refletir em páginas atuais, no mundo
contemporâneo, em um estado de presença provavelmente parecido
com o realista do século XX – tanto menos ou mais absurdo. A sentença a ser
cumprida por Kafka, 90 anos após sua morte, é a de continuar sendo
lido como o anunciante do novo século.
Ao lado de Marcel Proust e James Joyce, Franz Kafka
foi um dos maiores autores do século passado. Imagético, expressionista e
neurótico, escreveu obras em um alemão límpido e protocolar diante da
atmosfera pré-fascista que se estabelecia na Europa. Não havia espaço para
discutir direitos humanos e a liberdade era, ao mesmo tempo que essencial e
requisitada, frágil. Kafka nos mostra a partir de seus personagens, quase
sempre subalternos a engrenagens autoritárias cujas ordens não conseguem
compreender, uma realidade mecânica na qual prevalecem o automatismo raso, o
medo e a perda de identidade. Humilhado e anônimo, resta ao heroi kafkiano o
esforço de compactuar com esse universo onde viver é como arrastar-se sobre um
pesadelo. A tentativa, no entanto, resulta na ilusão: frustrados e
inadaptáveis, os personagens são incapazes de entrar em compromisso.
Diferentemente de Joyce, Kafka explora o panorama
desse mundo intranquilo por meio do simbólico. Por isso, é comum encontrar em
suas obras imagens que não dizem, mas que querem dizer, e instauram na
narrativa uma atmosfera enigmática. Para Modesto Carone, tradutor de
todas as obras de ficção para as editoras Companhia das Letras e Brasiliense
– com exceção das duas primeiras, as quais ele considera “pré-kafkianas”-, a
postura do narrador se dá por uma técnica admirável: “É um narrador que não
sabe nem como, nem por que as coisas ocorrem, e obriga o leitor a também
não entender o sentido do que está acontecendo”.
Legado onipresente
Ainda que os fatos narrados por Kafka sejam
próximos do onírico e do surreal, o autor os expõe de maneira óbvia, em
linguagem burocrática. É por isso que, em A Metamorfose (1915), ser uma
barata acaba não parecendo tão monstruoso assim. Carone explica: “Kafka é um
paradigma da literatura moderna porque retrata aquilo que todos nós conhecemos:
a nossa própria alienação, o deslocamento do homem no mundo contemporâneo”.
Marcelo Backes, escritor e também tradutor de algumas obras do autor para a LP&M
pocket, afirma que Kafka percebe esse estado universal de alienação e o
descreve com suposto descaso em seu diário: “A Alemanha declarou guerra à
Rússia. À tarde, escola de natação”. Para o tradutor, “a indiferença parece
extrema, mas a compreensão do mundo, ainda assim, é a maior imaginável”.
“Ele tem uma escrita
límpida e inteligível que se encaminha para o que é inteiramente
obscuro, indevassável”, afirma Carone. O tradutor classifica a prosa kafkiana,
repleta de advérbios, como “seca, mas carregada de sentido e de uma
intensidade excepcional”. Backes, por sua vez, considera Kafka “um desses
escritores que nos concedem seus olhos para que possamos ver melhor inclusive
dentro de nós mesmos, entendendo a alma aqui dentro e o mundo lá fora, em
processos de perturbação”.
Uma trágica história (familiar)
Nascido em Praga no ano de 1883, no império
Austro-Húngaro, atual República Tcheca, Franz Kafka tinha dificuldade de se relacionar
e costumava sentir-se à parte do mundo. Formou-se em direito porque seu pai não
permitiu que cursasse filosofia, e trabalhou como funcionário público em uma
companhia de seguros por anos, até se demitir quando contraiu tuberculose. Com
o repertório concebido a partir da advocacia, as imagens produzidas em suas
obras estão ligadas a questões de justiça. Kafka era um assíduo observador,
fosse nos tribunais ou em qualquer relação não horizontal, como era dentro de
sua casa.
O maior exemplo de autoridade com o qual o escritor
entrou em contato foi seu pai, que influenciou sua obra e certamente sua vida.
Hermann Kafka é descrito pelo filho como egoísta e exigente e a relação dos
dois sempre foi conflitante. “Isso lhe serviu para mostrar que o homem autoritário
dos nossos tempos pode resultar em um líder fascista”, afirma Modesto Carone.
“Ele viveu essa repressão dentro de casa, mas o particular tornou-se universal:
Hoje o autoritarismo continua presente, em plena luz do dia”. Essa conturbada
relação com o pai pode ser observada na maioria das obras do autor, entre elas O
Veredicto (1912), O Processo (1925), O Castelo (1926) e Carta
ao Pai, escrita em 1919, onde o escritor descreve essa convivência em
intensa exposição. Sigmund Freud afirmou, certa vez, que teria curado Kafka da
obsessiva relação de amor e ódio que ele exercia com o pai.
Tímido, confuso e crítico, o autor chegou a se
relacionar com algumas mulheres e inclusive a noivar, mas, a cada vez que se
sentia cobrado, se afastava. “Kafka sempre viveu sozinho, fechado dentro de
si”, afirma Backes. Enquanto estava vivo, sua obra foi pouco conhecida, e a
maioria de seus clássicos acabou sendo publicada somente após sua morte, por
Max Brod, escritor, jornalista e amigo próximo do autor, a quem ele pediu que
queimasse todos os seus manuscritos.
“Era uma
exclusão total”, adverte Carone. Certa vez, em uma carta enviada a Milena
Jesenska, com quem se relacionou, Kafka escreveu: “Creio realmente estar
perdido para a convivência com os seres humanos”. O autor também dizia que tudo
o que não fosse literatura o aborrecia. Esse sentimento de exclusão, refletido
em sua obra, como afirma Carone, reafirma a atualidade do autor: “é uma
experiência muito humana e muito moderna. Todos nós parecemos
estar aqui sem saber bem por quê”.
“Kafka é feito um homem que esquia no cascalho,
para provar com cambalhotas e arranhões àqueles que pretendem que o cascalho é
neve, que não se trata, realmente, de outra coisa senão cascalho”, diz o
jornalista e filósofo alemão Günther Anders, que classifica o autor como um
“artista da neurose contemporânea”. Marcelo Backes acredita que a exposição de
Anders “define com precisão o realismo doloroso da arte literária de Kafka, que
tem um forte índice de invocação interior, inclusive no mal-estar que desperta
em nós”. Para Modesto Carone, o fato de Kafka não nos dar soluções, mas
levantar problemas é uma importante característica literária do escritor. “E há
mais”, ele ressalta: “talvez Kafka seja o último dos escritores que nos faça
sofrer. Porque todos nós sofremos com o destino de Gregor Samsa em A
Metamorfose. Afinal, aquele inseto existiu ou não?”.
Kafka morreu há exatamente 90 anos, em 3 de junho
de 1924. Em A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, comer a
massa branca e viva de uma barata era necessário para o encontro da narradora
G.H. consigo mesma, encaminhando-a para o autoconhecimento. Em Kafka, a
transformação metafórica no grotesco é também um passo para o próprio
conhecimento ontológico, mas, diferente de como ocorre na obra de Clarice,
continua nos sendo vedado. Enquanto que G.H. engole o inseto, Gregor Samsa,
sentindo o incômodo de um corpo estranho e a inadequação em um mundo
desumano, incorpora a metáfora e é, ele mesmo, a barata. Carone afirma que “o
centro de irradiação dos conteúdos de verdade de sua obra surge a partir da
existência humana, e não da fixação cósmica”. Para ele, Kafka é um grande
realista do nosso mundo, que transcende os séculos para continuar sendo
interpretado. O próprio Carone assume que ainda hoje se surpreende com os
livros de Kafka. “Sua obra é como uma folha de aço, fina e flexível, capaz de
romper a parede que nos separa da verdade. E é por isso que nós
continuamos falando dele hoje”, diz.
http://revistacult.uol.com.br/home/2014/06/metamorfose-da-atualidade/
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