Mais um diário de mamãe
Crônica de João Ubaldo
Ribeiro
No
tempo do Coelho Neto, não tinha churrascaria, tinha? Claro que não.
Não
tinha nem churrascaria nem dia das mães e, portanto, ele não entendia nada de
padecer no paraíso, nessa época era moleza. E este ano, para variar, está
prometendo, vai ser mais um dia das mães inesquecível. Não quanto ao local das
homenagens, que é churrascaria de novo. Como sempre, houve debates acalorados
sobre isto. Todo ano alguém diz que é preciso variar e desta vez não vai ser
churrascaria, mas sempre acaba sendo, eu nem presto atenção mais na discussão.
Minha última intervenção foi há vários anos, em legítima defesa, para deixar
claro que considero insultuoso me levarem para comer peixe cru com arroz papa
sem sal e que, nesse caso, prefiro a sopa dos pobres do padre Celso. Não me
levando para comer peixe cru, tudo bem. Eu como qualquer coisa, pizza, pastel,
hambúrguer, rabada, mocotó e aquelas comidas baianas molengas e amarelosas, mas
peixe cru não, tudo tem seu limite, tem que haver respeito.
Mas,
como eu já te contei, haverá uma grande novidade, que é a presença de Vó
Eulália, que chegou de Alagoas na quarta. Mandaram buscá-la porque ela está
fazendo noventa anos, embora pareça muito menos. Eu tenho um medozinho, mas
gosto dela. O mesmo, com certeza, não pode ser dito de todo o resto da família.
No aeroporto mesmo, aquele lourinho, filho do outro casamento da Selminha, um
chatinho catarrento e esganiçado, cujo nome eu sempre esqueço, só acho que é Fred,
mas sei que não é, esse, vamos dizer, Fred, começou a encher o saco e Vó
Eulália deu-lhe um puxão de orelha caprichado, que ele chegou a ficar roxo. “Se
é para chorar, pelo menos chore com razão”, disse ela, com aquele sorrisinho de
cangaceira. A Selminha não gostou, mas eu, claro, adorei e Vó Eulália não quer
nem saber se alguém não gostou. E o Fred merece. Meu Deus, o nome dele não é
Fred. Ted? Eu só lembro que tem um E. Ernesto?
Isso
traz à baila o problema da identidade dos familiares. No começo, eu achei até
que podia estar ficando de Alzheimer, porque dei para esquecer os nomes de uma
porção deles, mas depois percebi que isto está acontecendo com praticamente
todo mundo numa situação parecida com a minha, até porque a família nunca é a
mesma, como no meu tempo. Antigamente, a família se reunia e eram sempre as
mesmas caras, os mesmos nomes e as mesmas histórias, mas agora todo mês alguém
anuncia uma alteração, muito mais que a escalação de um time de futebol. É bem
verdade que eu não tinha nada que tirar uma de coelha e parir seis filhos, eu
era uma cretina que achava lindo ter uma família enorme e tinha fantasias de
comandar a hora do almoço com um apito. Diga-se em meu favor, porém, que seis
filhos naquele tempo e no meu caso não queriam dizer oito noras mais ou menos
duradouras e um número indefinido de outras mais passageiras, quatro genros,
sendo que um repetido, e doze netos, entre legítimos e postiços. Isso para não
falar nos parentes dos parentes e con- traparentes, é muito duro de acompanhar.
Ninguém consegue se lembrar direito de oito noras e quatro genros em rodízio
permanente. No hora em que a pessoa vai se acostumando, vem uma troca. Agora
que tudo é informatizado, bem que eles podiam botar um chip que acendesse o
nome deles no celular.
Aliás,
grande bênção, o celular, pelo menos na churrascaria do dia das mães, porque
agora a juventude fica em silêncio, enquanto manda mensagens para lá e para cá,
ou seja, o tempo todo. Desconfio que alguns deles ainda não aprenderam a falar
direito e o único órgão deles capaz de comunicação verbal é o polegar, ali
teclando kd vc rsrsrs bjs e outras informações cruciais, que eles ficam
mostrando uns aos outros, em vez de conversar. Me lembra cachorros cheirando
uns aos outros, não sei por quê. O Marcelo, o gordinho de cabelo cacheado,
também filho da Selminha, só que com o Haroldo, com certeza não sabe conversar,
porque o universo dele são os joguinhos dos computadores e, quando alguém fala
com ele, ele responde bzzz-strrp-vjjj-tueen, com os olhos esgazeados. E tem as
fotos também, para as quais eles só olham uma vez e nunca mais, antes de
distribuí-las às redes sociais do mundo todo, a gente com cara de besta e
deficiente mental em todas elas.
De
resto, não há razão para imaginar grandes surpresas. O meu novo genro por parte
da Bia – que já não é mais tão novo assim, já vai fazer cinco anos que estão
juntos, embora até hoje eu não saiba por que e o que foi que eles viram um no
outro -, o Gilberto, o nosso Betão, vai encher a cara de chope, vai ficar com
os olhos marejados e vai fazer um discursinho em que vai me chamar de bimãe
outra vez. Bi, como em bicampeonato. Bimãe porque eu sou avó, mãe duas vezes,
sacou? Ele é um gênio. Espero que não fique muito entusiasmado e não chame Vó
Eulália de trimãe, porque não vai resultar bem, até porque ninguém sabe tantos
palavrões e tem tanta disposição para mostrar isso do que Vó Eulália.
Mas,
querido, eu fico falando assim e parece que não gosto da família, que sou uma
desnaturada insensível, que não dou valor às coisas mais importantes desta
vida. Mas nada pode estar mais longe da verdade. Eu adoro a família, adoro ser
mãe e avó, sério mesmo. Esses senões acontecem a todos, de uma forma ou de
outra e devemos pôr as mãos para o céu, porque não temos nenhum problema grave,
como tantos outros. É só que de vez em quando dá vontade de ter uma folguinha
de tanto padecimento paradisíaco. E, sim, bimãe não sou eu. Betão e Vó Eulália
sabem quem é.
Via Estadão
Retirado de
http://contobrasileiro.com.br/?p=2184
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