A solidão das
mães-meninas-sem-mãe.
Uma leitura de As Mulheres de Tijucopapo de Marilene Felinto
Por Lélia Almeida [1]
Mãe é a coisa que mais toca.
Não vou desrespeitar nunca a menina que existe dentro de mim.
Marilene Felinto.
O romance As Mulheres de Tijucopapo [2]
de Marilene Felinto, de 1980 é representante típico do fenômeno editorial que
se dá a partir dos anos 80, em âmbito internacional, qual seja, um verdadeiro boom
de publicações de autoria feminina, e se insere também, no que foi chamado por
algumas críticas [3], de romances de maternidade.
A necessidade da
construção de uma genealogia feminina, representada amplamente nos romances
contemporâneos, de autoria feminina, e que se dá através da recorrência de uma
narrativa em que se conta a história de uma mãe, de uma filha, de uma avó ou de
uma neta, ou mesmo entre irmãs, tem como objetivo que a protagonista descubra a
sua própria identidade. Este processo acontece na medida em que a protagonista,
ao conectar-se com a sua própria história, através do reconhecimento de suas
semelhanças e diferenças com a história de outras mulheres de sua família,
conecta-se com seu próprio corpo, seus desejos e sua necessidade de expressão.
Se tornam, desta maneira, todas elas, herdeiras de uma genealogia, criando entre
as diferentes gerações, um movimento incessante de indagação e questionamentos
que possibilita uma trajetória de descobertas e auto-conhecimento.
Se a matriz desta
literatura que problematiza as genealogias femininas se dá entre as mães e as
filhas, irmãs, ou avós e netas, esse modelo depois se expande e, além dos laços
da ancestralidade, as genealogias vão se estabelecer através das amigas, das
mulheres que dialogam com mulheres de outras épocas, entre escritoras
contemporâneas e seus modelos canônicos, apenas para nomear alguns exemplos de
como esta matriz primeira se desdobra em outras redes e relações significativas
na vida das mulheres.
A necessidade da
construção ou, inclusive, da reconstrução de uma genealogia se dá quase sempre
em momentos de crise na vida da protagonista. A construção real ou imaginária
de uma genealogia familiar, feminina, permite que a protagonista,
freqüentemente, viva um processo de auto-conhecimento que a leva, de maneira
inexorável, à ruptura com estruturas sociais, parentais, seja através de
divórcios, separações familiares e de velhas funções e todo tipo de separações,
e que se apresentam nesses momentos como inevitáveis. A revisão dessa
genealogia feminina tem, portanto, para a protagonista, a possibilidade da
busca de respostas que ela elabora para si mesma num momento de crise, e do
questionamento de seus papéis sociais e sexuais. Como se ela escolhesse ou
pudesse escolher, no momento da crise, com quem quer se parecer, às vezes
identificando-se com determinados modelos familiares, às vezes rejeitando
determinadas heranças que pensa não ter validade para si e sua descendência,
justificadas pelos laços de ancestralidade.
Podemos considerar este o
sentido central da genealogia, tal como a vemos nas narrativas de autoria feminina
contemporânea, o de que há uma tradição feminina, herdada entre as mulheres
através de experiências comuns e rituais próprios e específicos. Esses rituais
quase sempre têm a ver com as modificações e crescimento do corpo e com a
construção de uma identidade sexual. Os rituais que envolvem a ocorrência da
primeira menstruação, da perda da virgindade, da gravidez, da história dos
partos, da menopausa, etc., se tornam pontuais na construção da história de uma
herança feminina. Se, por um lado, às mulheres restou muito pouco para herdar
uma das outras, já que não herdam nem um patrimônio material e nem uma tradição
literária, como já assinalou Virginia Woolf [4], não podemos deixar de
afirmar que o resgate destes rituais, de um ponto de vista que critica padrões
impostos de feminilidade, se faz necessário na reconstrução de uma linhagem, de
uma experiência de semelhança.
Estas experiências entre
as mulheres, serão, sem dúvidas, entre elas, muito diferentes das que acontecem
entre os meninos e seus pais e avós, de quem eles têm, cheios de orgulho e
vaidade, o que herdar e o que fazer com a herança, através de um patrimônio, um
nome ou de uma tradição literária. O que quer dizer que a expressão de um
desejo, como o da construção de uma genealogia feminina no imaginário literário
contemporâneo refere-se á necessidade imperiosa que as mulheres têm de tentar
saber quem são e o que querem.
Na atualidade, a
literatura de autoria feminina prioriza o universo dos afetos femininos,
criando uma tradição diferente da que até pouco tempo estava destinada aos
personagens femininos tanto de autoria feminina como masculina.
Bárbara Ozieblo [5]
chamou de um un vínculo poderoso a relação mãe e filha, que é o tema
central deste tipo de literatura de autoria feminina. Ozieblo repete a mesma
pergunta feita por Virginia Woolf ao indagar sobre a ausência de uma herança
feminina que não nos deixou nenhum tipo de patrimônio, seja intelectual ou
material. Para Ozieblo o surgimento, na literatura contemporânea de muitos
países e, especificamente, na norte-americana, do par mãe e filha, é uma
novidade já que, ao longo da história este par esteve excluído:
[…] la pareja madre-hija no existe en nuestra cultura; aseveración
lógica puesto que no existe la madre. No debemos olvidar que la madre y la
maternidad son conceptos del patriarcado, construidos para impedirle a la mujer
la conciencia de su poder (p.10)
Antonia Domínguez Miguela
[6] que investiga sobre o tema da recuperação da linhagem materna nas
autoras latinas nos Estados Unidos, chama de literatura matrilineal esta
literatura, para ela, riquíssima em formas e técnicas. Mesmo seguindo a
tradição de outros países, em que a herança feminina, registrada oralmente ou
na literatura escrita encontra-se dispersa em diários esquecidos ou manuscritos
perdidos, percebe-a como muito mais complexa:
[…] en el caso de las latinas esta tradición es eminentemente oral y
también desvela muchos otros aspectos comunes a la literatura femenina, tales
como la experimentación formal, la narración acronológica, la fragmentación
textual, la transformación y nuevo empleo de géneros literarios como la
autobiografía y el género epistolar, la perspectiva múltiple, la polifonía, la
feminización del lenguaje y del discurso literario a través de la inclusión de
temas eminentemente femeninos que hasta ahora no se ajustaban al canon
literario establecido (p.40)
Para Dominguez os
romances que resgatam a linhagem materna são uma novidade já que figuras como a
mãe ou a avó apareciam de forma inexpressiva n começo da literatura escrita por
mulheres (p.34) e, ainda que tenham começado a aparecer paulatinamente, muitos
romances representavam os conflitos relativos a mães e filhas referentes ao que
Rich [7] denominou de matrofobia, em que as relações entre mãe e
filha são essencialmente conflitantes.
Os romances e contos que
tratam das genealogias femininas, em especial os que tratam do tema da
maternidade, aparecem num primeiro momento, especialmente nos anos 50 e 60,
como denúncia das dificuldades e frustrações históricas herdadas pelas filhas
de suas mães e assim, sucessivamente, num movimento espiral, ao contrário. As
mães e filhas, nestes romances, são inimigas, opõem-se e, para as filhas, as
responsáveis pela repressão ou pelo sentimento de desvalor das filhas seriam as
mães que, aliadas à ideologia patriarcal desqualificaria sumariamente as
mulheres.
A literatura de autoria
feminina escrita neste primeiro momento e, que também é tema recorrente em
diferentes épocas, denominou-se de matrofobia e consistia, nestas
narrativas, numa representação de filhas mulheres que rejeitavam veementemente
suas mães como modelos identitários. Para Adrienne Rich, uma das teóricas mais
importantes sobre o assunto,
[...] La matrofobia, como la ha denominado la poeta Lynn Sukenick, no
es sólo el miedo a la propia madre o a la maternidad, sino a ‘convertirse en la
propia madre’. Miles de hijas consideran que sus madres, que han ejemplarizado
la resignación y el autodesprecio de los que las hijas están luchando por
liberarse, han sido las transmisoras forzosas de las restricciones y
degradaciones características de la existencia femenina. Es mucho más fácil
rechazar y odiar abiertamente a la madre que ver, más allá, las fuerza que
sobre ella actúan. Pero en un odio a la madre que llegue al extremo de la
matrofobia, puede subyacer una fuerza de atracción hacia ella, un terror de que
si se baja la guardia, se produzca la identificación completa con ella. Una
adolescente puede vivir en guerra com la madre, pero usar sus perfumes y
vestidos. Su manera de llevar su propia casa, una vez abandonado el hogar
familiar, puede ser la negación del estilo de su madre: no hacer nunca las
camas o dejar los platos sin lavar; es decir, un reverso inconsciente de la
casa inmaculada propia de una mujer de cuya órbita necesita salir. (p.339)
[…] La matrofobia se puede considerar la escisión femenina del yo, el
deseo de expiar de una vez por todas la esclavitud de nuestras madres, y
convertirnos en seres libres. La madre representa la víctima que hay en
nosostras, a la mujer sin libertad, a la mártir. Nuestras personalidades
parecen mancharse y superponerse peligrosamente a la de nuestra madre. (p.340)
No Brasil, alguns contos
de Tânia Faillace, nos anos 70 e alguns romances de Lya Luft, mesmo que sejam
dos anos 80, são ainda representativos desta tendência que relata uma total
incomunicabilidade entre mães e filhas, em que esta relação é desastrosa para
as duas e é libertadora quando o vínculo se desfaz ou arrefece. Esgotado este
primeiro momento, em que a revolta ou a raiva, as frustrações, os sentimentos
de impotência e desvalorização são expressados pelas personagens das filhas em
relação a suas mães, a literatura de autoria feminina toma outros rumos no que
se refere ao tema das genealogias e à representação do par mãe e filha.
O contrário da mãe que
rejeita ou abandona e que, ainda referenda os mandatos patriarcais que negam
importância ou legitimidade às mulheres seria, em alguns casos, o que Dominguez
chamou de la musa-familiar (p.38), como um personagem artístico e criativo
que estabelece a transmissão da herança através da arte, de cuidar de um
jardim, de cantar ou de contar histórias.
Giraudo [8] em seu
trabalho sobre Tony Morrison, que trata especificamente sobre as genealogias
femininas entre as escritoras afro-americanas, refere-se aos lares
matricêntricos e ao que os críticos americanos chamam de herstory, sobre
ritual de contar sua própria história,
(...) contar sua história,
ou herstory, significa para uma mulher afro-americana descrever, ou
traçar, “arcos de resgate”, encarnando “um projeto de reivindicação da
individualidade e portanto de afirmação da continuidade afro-americana de um
modo geral (Willis, 1987, p.82). Sugere portanto “um sentido visionário de um
renascimento por meio do resgate da cultura”; ao contar herstory como
história de sua mãe e de sua avó, pois, a escritora não transpõe as gerações
“de modo a fechar o círculo”, mas antes relampeja em seus arcos de resgate
“sempre em direção ao futuro” (Willis, 1987,p.54-55).
Marcela Lagarde [9]
em seu trabalho Los cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas,
presas y locas, afirma que a maternidade como é concebida pela sociedade
patriarcal é, para as mulheres, uma forma de cativeiro:
[…] cautiverio es la categoría antropológica que sintetiza el hecho
cultural que define el estado de las mujeres en el mundo patriarcal: se
concreta políticamente en la relación específica de las mujeres con el poder y
se caracteriza por la privación de la libertad (p.151)
As mulheres, vitimizadas
historicamente pela idelogía del amor (p.161) deverão cuidar dos outros
antes que de si mesmas. Os outros seriam […] hombres y mujeres con quienes
se relacionan esencialmente para existir: las criaturas, los niños, los
jóvenes, los adultos, los viejos y los ancianos, los enfermos y los
minusválidos, los aptos, los desamparados y los muertos (p.249). Esta mãe que nutre e cuida de todos, mas que,
ao viver relações de dependência vital, dá a sua filha como herança, sua
carência e não se constitui ela mesma, como um modelo ou exemplo afirmativo.
Carentes do afeto
materno, as filhas repetem assim, o mesmo modelo de cuidadoras que procuram,
sem encontrar, a sua própria realização, nos outros. O que a filha recebe como
herança da mãe é o que ela não tem, já que ela não es por sí misma
(p.429). Para Lagarde, toda relação materna é ambivalente,
[…] Esta doble significación la caracteriza, tanto para los hijos
hombres como mujeres. La madre es buena y mala a la vez, porque en su
omnipotencia adulta y nutricia frente a la carencia infantil, da y niega,
estimula y reprime: internaliza la cultura y con ella el poder. […] a la
aceptación positiva de la madre de la cual se nutre, se suma el hecho de que el
hijo se identifica con el padre, cuya figura social es poderosa y plena. La
madre se realiza como ser objeto en esta relación con el hijo convertido en
cónyuge filial, que no puede establecer con su cónyuge. En cambio, la madre
debe transmitir a su hija aquello que la anula y somete, el contenido opresivo
de su ser adherido a tal punto a su identidad genérica, que se confunde con
ella. Así, en esta relación con la hija, la madre dadora y nutricia también es
carencia erótica, sumisión (p.429)
As mães e filhas que
aparecem protagonizadas na literatura de autoria feminina atualizam estes temas
e estes conflitos presentes na vida das mulheres contemporâneas, que, por sua
vez, repetem e reproduzem conflitos que, historicamente, se fazem presentes na
vida das mulheres. E, atualizam também, a necessidade da construção de uma
genealogia feminina que sirva de modelo e exemplo, em que as mulheres se sintam
legitimadas em seus desejos, dúvidas e questionamentos.
Franca Basaglia [10]
denomina de Madre-niña-sin-madre as mulheres que vivem este estado de
orfandade que gera uma solidão característica da condição feminina no mundo
patriarcal. A solidão das mães-meninas-sem-mãe é herdada também pelas
filhas de suas mães:
[…] se ha hablado de las mujeres como niñas sin madre, y esto da lugar
a otras consideraciones que podrían explicar la capacidad de soledad de la
mujer con respecto al hombre. Este estado de orfandad significa que para muchas
mujeres no hay posibilidad de regresión al seno materno por no haber nunca una
madre a la cual recurrir en busca de apoyo…(p.431)
Não haveria assim uma mãe
possível já que se a mulher, historicamente aprisionada em relações de
dependência e submissão, incapaz de cuidar minimamente de si mesma, não é,
genuinamente cuidadora ou doadora de amor a outrem.
Não é outra a história de
Rísia, que volta a Tijucopapo em busca da história de sua mãe, Adelaide, como
via possível para buscar o começo da sua própria história, vingar a sua
dignidade perdida e reencontrar com a menina de sua infância.
Uma travessia nos é
narrada. Uma viagem de ida e uma viagem de volta. Uma viagem de ida para São
Paulo, uma viagem de volta para o Recife e para este lugar chamado Tijucopapo
que é um bairro pobre do Recife, que é um lugar geográfico, que é um lugar
histórico -, mas que é sobretudo um lugar simbólico.
Como nos esclarece Elódia
Xavier [11], (...) Tijucopapo (...) figura na mitologia pernambucana
como símbolo de resistência. Em 1646, durante a invasão holandesa a Pernambuco,
sem ter o que comer, os flamengos da Nova Holanda invadiram a pequena vila de
Tijucopapo, hoje município de Goiana, a 63 quilômetros de Recife. Conta a lenda
que, sem armas de fogo, as mulheres do lugarejo enfrentaram a tropa com panelas
e pimenta e venceram a batalha.
Mas é como um espaço
simbólico que Tijucopapo vai-se desenhando ao longo do texto. Primeiro com um
espaço original, misterioso, primordial, de onde nasceu a linhagem feminina da
protagonista,
(...) Foi em Tijucopapo que
minha mãe nasceu. Embora tudo se esconda de mim. Mas sendo que sei sobre o que
ela me contou em acessos de um desespero triste, e sobre o que sei que sou e
que é dela e que escutei no bucho dela e que está traçado na testa dela e no
nosso destino, meu e dela. (...) Só sei que minha mãe nasceu em Tijucopapo.
Lugar de lama escura. O resto, mistério, nem ela sabe. Só eu que sei. (p.
12-13).
Depois como um lugar onde
Rísia terá de renascer ao reencontrar com suas origens (Desse meu corpo que
vai. Que vai ver se renasce em Tijucopapo onde nasceu mamãe. (25-26)), e depois
como espaço de guerra, de motim, de mulheres guerreiras e com as quais ela
vai-se identificando:
(...) Donde vieram essas
mulheres assim, a minha herança, mulheres da matéria do tijuco, cabelos grossos
arrastando pela crina do cavalo, escanchadas no lombo do bicho sem sela,
amazonas. Era uma noite, uma vez, minha mãe nasceu no seio de um pântano. Num
sertão de lama. Mulheres como minha mãe trazem a sina das que desembestam no
mundo adentro escanchadas em seus cavalos, amazonas, defendendo-se não se sabe
bem do quê, só se sabe que do amor. Só se sabe que do que o amor as faz sofrer.
Só se sabe que do que o amor as fez traídas. São amazonas a cavalo vindo fazer
marca no Tijucopapo, lá onde tudo é lamaçal. As mulheres de tijucopapo:
ferradura. As mulheres de Tijucopapo: é como fica tão pouco de tudo, e é como
fica tão tudo a ponto de ser herança. As mulheres de Tijucopapo: sou eu com
minha sina de lama, eu que saí, bicho da lama, tapuru, onde a praia encontra a
lama.
As mulheres de Tijucopapo:
sim. Vou. Sou escorregadia. (p. 56)
A relação de orfandade
descrita por Basaglia sobre as mães que abandonam as filhas, têm aqui uma
explicação concreta já que a mãe de Rísia por ser a décima e tanta filha teria
de ser dada, este sentimento de orfandade é para todas elas uma herança, e o
que é transmitido entre elas é o abandono, a desvalia, a solidão
(...) Minha mãe nasceu e eu
queria ver nisso a minha salvação. Mas não é... (p. 14)
(...) Era 1935, todos os
raios da lua escapuliam do céu preto alumiando o caminho num atalho de serra
por onde o jegue vinha empinando os caçuás. Minha avó nem sequer açoitava o bicho;
vinha pachorrenta, os cabelos entronchados em cocó nas costas. Minha avó era
tão negra que se arrastava. Ela levava minha mãe, a que seria dada. Minha mãe
veio num caçuá. Minha mãe foi dada numa noite de luar. Minha vó não podia. Era
o seu décimo e tanto filho. Não podia matar mais um daquela fome que era toda
de farinha e charque e falta d´água. Minha mãe seria dada. Minha mãe seria
dada. Minha mãe era novinha como um filhote. Eu chorava como nunca. (p.19)
(...) Minha mãe tinha
perdido todos os contatos com o verdadeiro de si mesma. O último originário de
mamãe se apagou com os raios da lua na noite de luar em que ela foi dada. Tudo
de mamãe é adotado e adotivo. Minha mãe não tem origens, minha mãe não é de
verdade. Eu não sei se minha mãe nasceu. (p.34)
Uma travessia nos é
narrada. Uma viagem de ida para São Paulo e uma viagem de volta para
Tijucopapo. A narrativa é uma conversa com Nema e uma carta que Rísia quer
escrever para a mãe, uma carta em língua estrangeira, como nos filmes, é uma
ária também onde ela quer contar sua travessia, contar sua história.
Sabemos então de sua
infância precária, dos tormentos que significavam os nove meses de gravidez de
sua mãe, do ódio que sentia pelo pai, da culpa pelo irmão que nasce morto, de
Jonas, o primeiro amor, de suas outras relações genealógicas, as amigas, Nema,
Luciana, Libânia, Ruth, Lita, da traição de tia Ilsa, da amante do pai, Analice
que ela jura de morte mas não consegue matar, da história da mudez e da
gagueira na infância, da magreza, da extrema pobreza, da menina que comia
terra, das giárdias, dos oxiúros, da tia alcoólatra, do desrespeito dos irmãos
pelo seu espaço, seu salário, seu trabalho, da perda do amor de Jonas e da ida
para São Paulo. Uma vida precária, pobre e frágil.
As datas de 1964 e 1969
são apenas mencionadas, a Revolução é nomeada, este é o período da ida para São
Paulo, assim como antes a década de 30 é apenas mencionada como a data do
nascimento de sua mãe.
A solidão e a pobreza
também estão presentes em São Paulo , a superficialidade nos relacionamentos,
os amantes desconhecidos, os sonhos frustrados, os sonhos de ser advogada,
diplomata, política, e de ter uma vida como a dos filmes, em inglês: (...) Saí
de São Paulo porque lá eu me achava uma apedrejada (101), e por não poder
(...) desrespeitar a menina
que existe dentro de mim. Que está sentada num trono, e por isso eu vou a
Tijucopapo. Nem que lá eu seja uma perdida para o que há de beleza na safadeza.
Nem que eu perca as mil festas e as mil luzes de São Paulo, a rica. Nem que eu
tenha de passar sem o meu gosto pelo brilho das luzes, sem esses sabores (...)
Não agüento como se faz em São Paulo. Em São Paulo perde-se o amor de um homem
e se está sujeito a tudo. São Paulo é de um jeito que não é o meu. E é tremendo
de choro que suporto aceitar que São Paulo tem o seu jeito. (p.79)
A viagem de volta de São
Paulo para Tijucopapo é uma longa travessia e agora justificada pela maturidade
e pelo desejo de reencontrar o lugar da origem materna como o lugar de sua
própria origem, lugar identitário, matricial,
(...) Estou indo embora da
cidade onde me fiz mulher mas para onde cheguei criança. Parece que um
sobreviveu ao outro e portanto precisei vir. Agora quero compor uma ária que
recomponha a minha caminhada pela estrada. Quero compor uma ária que saia
música fina como as cordas do violão. Uma ária história da minha passagem da
estrada para essa mata. Da minha andada pela mata. Uma ária que seja a carta
que escreverei quando chegar a Tijucopapo, a terra onde minha mãe nasceu. Uma ária
que seja da minha partida à minha chegada. Quero compor uma ária que recomponha
a minha retirada pela estrada e da estrada para o campo, esse, onde quero
encontrar as flores que pintarei na paisagem com lápis de cera, na carta de
minha mãe. Quero compor uma ária que recomponha a minha ira e a faça calma
criança amada. Quero compor uma ária de amor que ecoe nas cavernas dessa
montanha onde estou. (p.85)
A narradora adverte na
sua chegada ao Recife, às terras pernambucanas: (...) O resto são falhas e
inconclusões. (...) Recife está sempre morrendo de alucinação (...) As
alucinações de Recife não são de peiote não. São de insolação. Recife, a
insolarada. Recife está queimando em queimaduras de não sei quantos graus.
(p.110)
Na noite do dia de sua
chegada ao Recife ela encontra com um desconhecido, um homem a quem ela se
entrega num completo e belíssimo ato de amor, diferenciado de toda a referência
masculina apresentada no texto até então, sempre violenta, frustrante,
desqualificada. O ato em si é amoroso, sensual, selvagem e é este homem que lhe
anuncia que em Tijucopapo levantou-se um motim, um motim de mulheres, um grupo
armado de mulheres, que uma revolução está em marcha, que é uma guerra de
conquista, que Recife está em chamas. Ele a presenteia com uma égua e ela
continua sua marcha para Tijucopapo. No meio da estrada, interrompida por
macacos que lhe pedem documentos e lhe impedem a passagem ela lembra que o nome
do homem com quem estivera era Lampião. Tentando passar pelo bloqueio dos
macacos que apontam uma espingarda para ela, era uma guerra afinal, um deles
acerta um tiro no lombo da égua que cai morta e atira Rísia, tal qual uma
Alice, para um abismo onde ela cai quando leva quedas (p.120).
Uma queda vai ser
narrada. Um devaneio infantil, uma sensação de profundo mal estar, uma
lembrança da infância, Rísia criança lembra de um dia qualquer, uma manhã e um
pressentimento, um sentimento de desassossego, insatisfação, a lembrança do
pesadelo de ter sido raptada por um papafigo num cavalo alazão, misturada com o
surgimento de um pássaro preto na cozinha, um sentimento de infelicidade, uma
ansiedade sem fim, “infância são ânsias” (p.122), é sete de setembro e ela vai
desfilar de tarde, Rísia sobe num tamborete com um pedaço de pau nas mãos para
cutucar a irmã que estava tomando banho, por um buraco de tijolo que havia no
alto, na parede do banheiro. Rísia cai do tamborete, a queda e as sensações são
narradas em pormenores, a vertigem, a humilhação, o gosto amargo na boca.
Quando ela acorda muitas mulheres em volta da cama estão cuidando dela:
(...) Dez rosto de mulheres
minhas mães. Tinha dez mães. Nenhuma servia. Eu estava tão fraca e desprotegida
que nem dez mães serviriam. Nem dez abraços. Eu estava no lugar solitário que é
o lugar de uma queda, o arraso quase que total. Nenhuma mãe serviria mais. E
havia dez rostos de mulheres minhas mães. (p.127)
Quando Rísia acorda, ela
já estava em Tijucopapo e haviam se passado nove meses:
(...) Ela está numa cama
rodeada por mulheres, mulheres de cabelos grossos como cordas arrastando pela
crina do cavalo (p.130), (...) eram mulheres que eu vira nascer, só podia ser
(...) eram mulheres que não eram minha mãe. Essas mulheres, que não eram minha
mãe, tinham a sina das que desembestam mundo adentro escanchadas em seus cavalos,
amazonas defendendo-se não se sabe bem de quê, só se sabe do que o amor as fez
traídas. Mulheres na defesa da causa justa. (...) Eu já estava em Tijucopapo.
Uma passagem. Um passe de fantasia, quase um intervalo de pensamentos, um único
passo. Eu cheguei a Tijucopapo por uma queda. Percorri um abismo inteiro. Num
tempo de nove meses. (p.131).
Ela reencontra Lampião,
um guerreiro que luta por uma causa justa e percebe que é amando de novo que se
refaz (p.133), e diz que precisa dar um telefonema, escrever uma carta, uma
carta que ela ditaria a Lampião, uma carta para sua mãe:
(...) Nós vamos, e a
bandeira há de ficar. Nós vamos fincar bandeira. Nós vamos em busca da justiça
das luzes, e caso haja destruição é porque nós viemos de regiões assim, agrestes,
de asperezas de alma, de docilidade nenhuma, de nenhum beijo e nenhum abraço,
de tiquinhos de comida na cuia e de lombrigas na barriga, e de seda, mamãe, de
insolação e forca no caminho para a escola, de não saber mais da própria
vontade - de não saber de íamos à escola ou se fazíamos alguma coisa da vida
(p.135)
(...) Mas ontem eu tive uma
noite de muitos sonhos, entre os quais o de que estou mesmo indo vingar a
menina que existe dentro de mim e que não posso desrespeitar, e que é uma
menina sentada num trono, e que é uma menina que chora sua incapacidade de
onipotência exigida por uma mesa longa de ministros. É por isso que eu vou.
Porque eu posso no máximo seguir Lampião. Por uma causa justa.
O que eu fiz foi um
pensamento. As mulheres de Tijucopapo era, enfim, como eu fazendo sombra no
chão, meio dia de sol de fogo, caminho da BR.
É isso mesmo, mamãe. Eu
quero que minha vida tenha um final de filme de cinema em outra língua, em
língua inglesa. Eu quero que tudo termine bem. (p.137)
Uma travessia de nove
meses e uma anunciação, num parto às avessas, para a própria mãe, nos são
narrados, através de uma carta, de um telefonema, sabemos assim da chegada de
uma menina e de suas intenções. Uma menina que se transforma, no vazio da
queda, na solidão irremediável de ser só no mundo, em sua própria mãe.
Quem é Rísia no final da
narrativa? Mais uma nordestina destruída por uma travessia inglória no centro
do país, de volta ao nordeste, e em guerra, marchando BR afora, junto a uma
multidão revoltosa? Rísia voltou para Tijucopapo? Morreu? Casou com Lampião e
foi feliz com o filho que pode ter sido gerado na noite na campina, na chegada
na incandescente Recife? Quem é Rísia, que projeta como uma Macabéa clariceana
num céu de cinemascope um final feliz? Que é uma égua tal qual o cavalo de
Joana? Agora eu sou uma estrela, em linguagem cinematográfica, não é, afinal, o
mesmo que dizer, eu quero que minha vida tenha um final de filme de cinema, eu
quero que tudo termine bem?
Rísia, é agora filha de
Marilene Felinto, que ao partejar e maternar estas meninas sertanejas, dar-lhes
vozes e um destino - como o faz em As Mulheres de Tijucopapo e em o Lago
Encantado de Grongonzo - diz não à orfandade destas pobres meninas
brasileiras e que, como suas mães, traz, de muitas maneiras, nas malhas da
ancestralidade, um destino maldito de mães-meninas-sem-mãe. E ao qual
ela diz não através da escritura.
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Elódia. “Resgate da dignidade perdida: As Mulheres De Tijucopapo”. X
Seminário Nacional Mulher e Literatura. I Seminário Internacional Mulher e
Literatura. Mulheres no Mundo: Etnia, Marginalidade e Diáspora. Junho 2004. Anais
João Pessoa PB. EditoraUniversitária UFPB. Idéia Editora. 1 CD ROM.
WOOLF,
Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1982.
Notas:
[1] Lélia Almeida é escritora e Doutoranda do Programa de
Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
[2] FELINTO, Marilene. As Mulheres de Tijucopapo. Rio de
Janeiro: 34 Letras, 1992.
[3] CIPLIJAUSKAITÉ, Biruté. La novela femenina contemporánea (1970-1985). Hacia una tipología de la narración en primera
persona. Barcelona: Anthropos, 1988.
[4] WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1988.
[5]
OZIEBLO, Barbara (Ed.) El vínculo Poderoso: Madres e hijas en la
literatura norteamericana. Granada: Universidad de Granada, 1998.
[6]
MIGUELA, Anotonia Dominguez. Esa imagen que em mi espejo se detiene. La
herencia femenina en la narrativa de latinas en Estados Unidos. Huelva:
Universidad de Hue
[7] RICH,
Adrienne. Nacemos de mujer: la maternidad como experiencia
e institución. Madrid: Ediciones Cátedra, 1976.
[8] GIRAUDO, José Eduardo Fernandes. Poética da Memória.
Uma leitura de Toni Morrison. Porto Alegre. Editora da Universidade/ UFRGS,
1997.
[9] LAGARDE, Marcela. Los cautiverios de las mujeres:
madresposas, monjas, putas, presas y locas .México: Universidad Autónoma de
México, s/f.
[10] BASAGLIA, apud LAGARDE (s/f, p.43)
[11] XAVIER, Elódia. “Resgate da dignidade perdida: As
Mulheres De Tijucopapo”. X Seminário Nacional Mulher e Literatura. I
Seminário Internacional Mulher e Literatura. Mulheres no Mundo: Etnia,
Marginalidade e Diáspora. Junho 2004. Anais João Pessoa PB.
EditoraUniversitária UFPB. Idéia Editora. 1 CD ROM.
©
Lélia Almeida 2006
Espéculo. Revista de estudios literarios.
Universidad Complutense de Madrid
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