Várias
noites com... DANTE, RILKE E COMPANHIA
''Queria mesmo era colher o grito
pleno/ da tua alma cheia de tormentos.'' Os personagens da minissérie ''O
Astro'' dirão coisas assim. Será alucinação?
por Geraldo Carneiro
REVISTA
BRAVO - Edição 166 - Julho 2011
Quando Alcides
Nogueira e eu recebemos da Rede Globo a incumbência de recriar O Astro, novela
de Janete Clair exibida entre 1977 e 78, ficamos animadíssimos, mas com muitas
pulgas atrás da orelha. Para quem não se lembra ou não teve a alegria e o terror
de viver aqueles áureos tempos negros, faço um retrospecto: O Astro conta a
história de Herculano Quintanilha, ilusionista e bruxo, à época interpretado
por Francisco Cuoco, cuja trajetória é inspirada num assessor político da
presidente Isabelita Perón, um Rasputin à moda argentina. Não é difícil
imaginar um bruxo com esse perfil infiltrado num grande grupo econômico de hoje
ou até no governo de certo país pitoresco e extravagante, cujo nome começa com
a letra b, de bye-bye.
Por isso, nosso
principal problema para adequar a trama à atualidade estava menos no enredo e
mais na seguinte questão: como expressar o amor rasgado dos personagens, os
arroubos e diálogos extremamente românticos da versão original, sem fazer com
que o texto parecesse uma rapsódia de canções do Wando? Convertida em
minissérie, O Astro vai estrear no dia 12/7, por volta das 22h30, sob a direção
geral de Mauro Mendonça Filho e direção de núcleo de Roberto Talma. O ator
Rodrigo Lombardi assumirá o papel de Herculano.
Depois de muito pensar,
resolvemos enfrentar o problema com uma arma poderosíssima: os grandes poetas
da literatura ocidental, de Dante Alighieri, Francesco Petrarca, Fernando
Pessoa e Luís de Camões a Charles Baudelaire, Rainer Maria Rilke e John Donne.
De quebra, também decidimos pedir ajuda a alguns poetas do samba, como Cartola,
Lupicínio Rodrigues, Guilherme de Brito e Luiz Carlos da Vila. Nossa
estratégia: misturar versos daqueles gênios à fala coloquial dos personagens de
Janete.
Quando o herói se
deparar com sua amada, por exemplo, seu pensamento se expressará com palavras
de Baudelaire: "Queria mesmo era colher o grito pleno/ da tua alma cheia
de tormentos". Quando sua amada lhe sugerir uma viagem idílica pelos
mares, o herói recorrerá a Jorge de Lima: "Há sempre um copo de mar/ para
um homem navegar". Já se a situação não for propícia a versos alheios,
serei obrigado a baixar o nível e fabricar inéditos ou citar algumas estrofes
de meus próprios livros. Assim, caso a hora seja de paixão, posso levar o
personagem a dizer: "Só quero te conhecer nesta encarnação/ antes que
minha alma improvável/ se arremesse na província do nada/ a morada dos seres
sem amor". Ou, caso o momento seja de dor: "Os deuses tecem mantos de
tristeza/ para que não nos falte o que cantar".
Mas não é só na fala
da paixão que contrabandearemos a alta-costura literária para o folhetim. Na
primeira versão de O Astro, o diretor Daniel Filho havia sugerido a Janete
Clair que baseasse o vilão Samir Hayalla, originalmente vivido por Rubens de
Falco e agora por Marco Ricca, num personagem de William Shakespeare: Cláudio,
que usurpa o trono do irmão no reino da Dinamarca e desperta a ira do sobrinho,
o príncipe Hamlet. Faremos igual. Só que esse tio, em vez de ser um canalha
desqualificado, será uma nova versão de outro personagem shakespeariano,
Ricardo 3º, um dos maiores reis-bandidos do teatro e da história da Inglaterra.
Nosso vilão-mor será um cafajeste muito parecido com o Ricardão (o apelido de
Richard aqui, em casa), que gosta de contar vantagens por suas conquistas
amorosas e não tem a menor dó de se livrar de todos os que atravessam seu
caminho. Será capaz, inclusive, de propagar as mesmas lorotas do Ricardão,
jactando-se de suas façanhas: "Me diz se alguma mulher já foi cortejada
assim?"
Também em seus
momentos românticos, Ricardão lançará mão da poesia de Shakespeare: "Te
comparar com um dia de verão? Tu és mais temperada e adorável./ Vento balança
em maio a flor-botão/ E o império do verão não é durável./ Mas teu verão nunca
se apagará/ Perdendo a posse da beleza tua,/ Nem a morte rirá por te ofuscar/
Se em versos imortais te perpetuas".
A presença de tantos
fragmentos poéticos na minissérie talvez suscite a impressão de que vemos um
filme da década de 1960, em que as palavras se soltam da narrativa e ganham
certa autonomia. Uma mistura de O Conde de Monte Cristo, célebre romance
folhetinesco de Alexandre Dumas, com O Demônio das Onze Horas, o clássico do
cineasta Jean-Luc Godard. (Janete Clair fazendo parceria com Godard?! Se você
achar que tal casamento é implausível, caro leitor, considere este parágrafo
uma alucinação.)
Em suma: na hipótese
de os deuses conspirarem a favor, nosso folhetim virá à luz protegido pelos
orixás da poesia, desde Safo e Arquíloco a Cartola e Orestes Barbosa. Tomara
que lá, no provável céu dos dramaturgos, dona Janete dê a sua aprovação. Ou
que, se não gostar, nos perdoe com a indulgência e o tédio daqueles que
conhecem a imperfeição da natureza humana.
Geraldo Carneiro é poeta, letrista,
tradutor e roteirista, autor dos livros Piquenique em Xanadu e Balada do
Impostor, entre outros.
http://bravonline.abril.com.br/materia/varias-noites-com-dante-rilke-e-companhia
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