CLARICE
ENTREVISTA PABLO NERUDA
Numa
manhã de abril de 1969, a escritora brasileira entrevistou o poeta chileno,
que, à época, era considerado um dos mais importantes nomes da poesia em língua
espanhola
Cheguei à porta do edifício de apartamentos onde
mora Rubem Braga e onde Pablo Neruda e sua esposa Matilde se hospedavam —
cheguei à porta exatamente quando o carro parava e retiravam a grande bagagem
dos visitantes. O que fez Rubem dizer: “É grande a bagagem literária do poeta”.
Ao que o poeta retrucou: “Minha bagagem literária deve pesar uns dois ou três
quilos”.
Neruda é extremamente simpático, sobretudo quando
usa o seu boné (“tenho poucos cabelos, mas muitos bonés”, disse). Não brinca
porém em serviço: disse-me que se me desse a entrevista naquela noite mesma só
responderia a três perguntas, mas se no dia seguinte de manhã eu quisesse falar
com ele, responderia a maior número. E pediu para ver as perguntas que eu iria
fazer. Inteiramente sem confiança em mim mesma, dei-lhe a página onde anotara
as perguntas, esperando Deus sabe o quê. Mas o quê foi um conforto. Disse-me
que eram muito boas e que me esperaria no dia seguinte. Saí com alívio no
coração porque estava adiada a minha timidez em fazer perguntas. Mas sou uma
tímida ousada e é assim que tenho vivido, o que, se me traz dissabores, tem-me
trazido também alguma recompensa. Quem sofre de timidez ousada entenderá o que
quero dizer.
Antes de
reproduzir o diálogo, um breve esboço sobre sua carga literária. Publicou
“Crepusculário” quando tinha 19 anos. Um ano depois publicava “Vinte Poemas de
Amor e Uma Canção Desesperada”, que até hoje é gravado, reeditado, lido e
amado. Em seguida escreveu “Residência na Terra”, que reúne poemas de 1925 a
1931, da fase surrealista. “A Terceira Residência”, com poemas até 1945, é um
intermediário com uma parte da Espanha no coração, onde é chorada a morte de
Lorca, e a guerra civil que o tocou profundamente e despertou-o para os
problemas políticos e sociais. Em 1950, “Canto Geral”, tentativa de reunir
todos os problemas políticos, éticos e sociais da América Latina. Em 1954:
“Odes Elementares”, em que o estilo fica mais sóbrio, buscando simplicidade
maior, e onde se encontra, por exemplo, “Ode à cebola”. Em 1956, “Novas Odes
Elementares” que ele descobre nos temas elementares que não tinham sido tocados.
Em 1957, “Terceiro Livro das Odes”, continuando na mesma linha. A partir de
1958, publica “Estravagario, Navegações e Regressos”, “Cem Sonetos de Amor”,
“Contos Cerimoniais” e “Memorial de Isla Negra”.
No dia seguinte de manhã, fui vê-lo. Já havia
respondido às minhas perguntas, infelizmente: pois, a partir de uma resposta, é
sempre ou quase sempre provocada outra pergunta, às vezes aquela a que se
queria chegar. As respostas eram sucintas. Tão frustrador receber resposta
curta a uma pergunta longa. Contei-lhe sobre a minha timidez em pedir
entrevistas, ao que ele respondeu: “Que tolice”. Perguntei-lhe de qual de seus
livros ele mais gostava e por quê. Respondeu-me: “Tu sabes bem que tudo o que
fazemos nos agrada porque somos nós — tu e eu — que o fizemos”. A entrevista
foi concedida em 19 de abril de 1969 e publicada no livro “De Corpo Inteiro”,
Editora Rocco, em 1999.
Você se considera mais um poeta chileno ou da
América Latina?
Poeta local do Chile, provinciano da América
Latina.
Escrever melhora a angústia de viver?
Sim, naturalmente. Trabalhar em teu ofício, se
amas teu ofício, é celestial. Senão é infernal.
Quem é Deus?
Todos algumas vezes. Nada, sempre.
Como é que você descreve um ser humano o mais
completo possível?
Político, poético. Físico.
Como é uma mulher bonita para você?
Feita de muitas mulheres.
Escreva aqui o seu poema predileto, pelo menos
predileto neste exato momento?
Estou escrevendo. Você pode esperar por mim dez
anos?
Em que lugar gostaria de viver, se não vivesse no
Chile?
Acredite-me tolo ou patriótico, mas eu há algum
tempo escrevi em um poema: Se tivesse que nascer mil vezes. Ali quero nascer.
Se tivesse que morrer mil vezes. Ali quero morrer…
Qual foi a maior alegria que teve pelo fato de
escrever?
Ler minha poesia e ser ouvido em lugares desolados:
no deserto aos mineiros do norte do Chile, no Estreito de Magalhães aos
tosquiadores de ovelha, num galpão com cheiro de lã suja, suor e solidão.
Em você o que precede a criação, é a angústia ou um
estado de graça?
Não conheço bem esses sentimentos. Mas não me creia
insensível.
Diga alguma coisa que me surpreenda.
748. (E eu realmente surpreendi-me, não esperava uma harmonia de números)
748. (E eu realmente surpreendi-me, não esperava uma harmonia de números)
Você está a par da poesia brasileira? Quem é que
você prefere na nossa poesia?
Admiro Drummond, Vinícius, Jorge de Lima. Não
conheço os mais jovens e só chego a Paulo Mendes Campos e Geir Campos. O
poema que mais me agrada é o “Defunto”, de Pedra Nava. Sempre o leio em voz
alta aos meus amigos, em todos os lugares.
Que acha da literatura engajada?
Toda literatura é engajada.
Toda literatura é engajada.
Qual de seus livros você mais gosta?
O próximo.
O próximo.
A que você atribui o fato de que os seus leitores
acham você o “vulcão da América Latina”?
Não sabia disso, talvez eles não conheçam os vulcões.
Não sabia disso, talvez eles não conheçam os vulcões.
Qual é o seu poema mais recente?
“Fim do Mundo”. Trata do século 20.
Como se processa em você a criação?
Com papel e tinta. Pelo menos essa é a minha
receita.
A critica constrói?
Para os outros, não para o criador.
Para os outros, não para o criador.
Você já fez algum poema de encomenda? Se não o fez
faça agora, mesmo que seja bem curto.
Muitos. São os melhores. Este é um poema.
O nome Neruda foi casual ou inspirado em Jan
Neruda, poeta da liberdade tcheca?
Ninguém conseguiu até agora averiguá-lo.
Ninguém conseguiu até agora averiguá-lo.
Qual é a coisa mais importante no mundo?
Tratar para que o mundo seja digno para todas as vidas humanas, não só para algumas.
Tratar para que o mundo seja digno para todas as vidas humanas, não só para algumas.
O que é que você mais deseja para você mesmo como
indivíduo?
Depende da hora do dia.
Depende da hora do dia.
O que é amor? Qualquer tipo de amor.
A melhor definição seria: o amor é o amor.
A melhor definição seria: o amor é o amor.
Você já sofreu muito por amor?
Estou disposto a sofrer mais.
Estou disposto a sofrer mais.
Quanto tempo gostaria você de ficar no Brasil?
Um ano, mas depende de meus trabalhos.
Um ano, mas depende de meus trabalhos.
E assim terminou a entrevista com Pablo Neruda. Antes
falasse ele mais. Eu poderia prolongá-la quase que indefinidamente. Mas era a
primeira entrevista que ele dava no dia seguinte à sua chegada, e sei quanto
uma entrevista pode ser cansativa. Espontaneamente, deu-me um livro, “Cem
Sonetos de Amor”. E depois de meu nome, na dedicatória, escreveu: “De seu
amigo Pablo”. Eu também sinto que ele poderia se tornar meu amigo, se as
circunstâncias facilitassem. Na contracapa do livro diz: “Um todo manifestado
com uma espécie de sensualidade casta e pagã: o amor como uma vocação do homem
e a poesia como sua tarefa”. Eis um retrato de corpo inteiro de Pablo Neruda
nestas últimas frases.
http://www.revistabula.com/955-clarice-lispector-entrevista-pablo-neruda/
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