O homem e
sua hora, de Mário Faustino
Prof. Carlos Evandro M. Eulálio
NOTA
PRÉVIA.
Este texto é um roteiro de leitura da obra “O Homem
e sua Hora,” de Mário Faustino. Com ele desenvolvemos uma palestra no Curso
Lettera – Anglo Vestibulares e Colégio Integral, Sistema Anglo de Ensino, no
dia 20 de agosto de 2000. Ainda nesse ano, ministramos a mesma aula nos
seguintes estabelecimentos de ensino desta capital: Instituto Dom Barreto (onde
lecionamos), Colégio Sinopse (sob a coordenação do Prof. Reginaldo Brandão),
Educandário Santa Maria Goretti e Colégio Projúris (auditório da OAB de
Teresina, em 17-09-2001)
Ultimamente, este trabalho, no todo ou em parte, equivocadamente veicula na
Internet e em outros meios de comunicação escrita, como sendo de autoria de
outro(s) autor(es), quando na verdade o seu conteúdo tem como fonte
bibliográfica principal a nossa Seleta comentada, sob o título “Literatura
Piauiense em Curso: Mário Faustino”, publicada pela Editora Corisco / APL, em
segunda edição no ano de 2000 e mais recentemente neste portal sob o título “O
poeta Mário Faustino”. Nesta versão, procedemos pequenas
alterações, com a pretensão de atualizá-lo.
I – BIOGRAFIA DO POETA
Mário Faustino dos Santos e Silva nasceu em Teresina, no dia 22 de outubro de
1930. Deixou o Piauí aos 10 ano de idade, passando a residir em Belém do Pará.
Ali, com Benedito Nunes e Haroldo Maranhão fundou a revista literária Encontro
(1948). Ainda em Belém, foi chefe de redação do Jornal “A Folha do Norte”.
Residindo posteriormente no Rio de Janeiro, a partir de 1956, desenvolve
intensa atividade jornalística, como editorialista do Jornal A Tribuna da
Imprensa e do Jornal do Brasil. No Suplemento Literário do Jornal do Brasil
(SDJB), criou a página Poesia-Experiência, dedicada exclusivamente à Poesia.
Para Benedito Nunes, o lema de Poesia-Experiência, “repetir para aprender,
criar para renovar traduzia o sadio empirismo que orienta as investigações
de longo alcance. Ao propósito teórico da página concernente ao conhecimento do
fenômeno poético, estética e historicamente considerado, juntava-se à
finalidade de ensinar poesia.” (NUNES, 1966, p. 4)
Essa página circulou de 23 de setembro de 1956 a 1º de novembro de 1958 e era
dividida em seções, assim denominadas: Poeta Novo (destinada a divulgar
poemas de autores jovens) – O Melhor em português (dedicada à publicação
de clássicos portugueses) É preciso conhecer (divulgava poetas modernos
estrangeiros, através de traduções) Clássicos vivos (apresentava textos
de poetas antigos de épocas e nacionalidades diversas) Subsídios de crítica
, ou Textos Pretextos para discussão (teoria poética de poetas críticos,
como Eliot, Pound e outros) Pedras de toque (fragmentos selecionados
pelo poeta, os quais considerava exemplificadores da linguagem de alto nível) –
Diálogos de oficina, Fontes e correntes da poesia contemporânea e
Evolução da Poesia Brasileira (as três séries de artigos ensaísticos). (1)
II – PRODUÇÃO LITERÁRIA DO AUTOR
Mário Faustino foi um polígrafo. Escreveu sobre vários assuntos. Produziu
poesias, contos, crônicas, ensaios de poética, críticas literárias e
cinematográficas, tendo ainda traduzido poetas de várias nacionalidades:
franceses, espanhóis, ingleses e norte-americanos.
O Homem e sua Hora é o único livro publicado em vida do poeta, pela
Editora Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1955. No Balanço sobre a página que
dirigia no Jornal do Brasil, Mário Faustino referiu-se a O Homem e sua hora
como uma “espécie de relatório de meia dúzia de anos de aprendizado poético”
(Poesia-Experiência, p. 278).
PUBLICAÇÕES PÓSTUMAS:
- Poesia
de Mário Faustino (Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966,
org. por Benedito Nunes) Constam além do livro O Homem e sua Hora alguns
fragmentos que constituem parte do chamado poema longo, preconizado pelo poeta;
- Cinco
ensaios sobre poesia de Mário Faustino (Ensaios sobre poética, org. por
Assis Brasil, Rio de Janeiro – Edições GRD, 1964);
- Poesia-Experiência
(Ensaios de poética e estudos sobre poesia. Org. por Benedito Nunes, São Paulo,
Editora Perspectiva, coleção Debates, 1977)
- Poesia
Completa – Poesia Traduzida. São Paulo, Editora Max Limonad, 1985. Nessa
edição encontramos um longo poema que o poeta deixou incompleto: “A
Reconstrução”. Esse poema teria 8 poartes. Apenas a primeira foi feita.
- Os
melhores poemas de Mário Faustino (Seleção de Benedito Nunes, publicada
pela Global Editora, São Paulo, 1985);
- Evolução
da Poesia Brasileira (Estudo crítico de nossa poesia colonial, de Anchieta
a Santa Rita Durão – obra incompleta, com apresentação de Benedito Nunes,
publicada pela Fundação Casa de Jorge Amado, Salvador - BA, 1993);
- O Homem
e sua Hora e outros poemas, Mário Faustino.(Pesquisa e organização de Maria
Eugênia Boaventura. Edição Companhia das Letras, 2002. Inclui além dos textos
de O Homem e sua hora, poemas esparsos de Faustino, publicados na
imprensa, a partir de 1948, e inéditos cedidos por Benedito Nunes). Inserem-se
nessa obra o ensaio de Maria Eugênia Boaventura, “Um militante da poesia” e o
depoimento crítico-literário de Benedito Nunes: “A poesia de meu amigo Mário.”
- De
Anchieta aos Concretos, Mário Faustino (Organização de Maria Eugênia
Boaventura, o livro reúne textos sobre a poesia brasileira de quatro séculos –
São Paulo, Companhia das Letras, 2003);
- Artesanatos
de Poesia: Fontes e correntes da poesia ocidental (Reúne textos de Mário
sobre poetas da modernidade, como Edgar Allan Poe, Baudelaire, Pound e outros;
organização de Maria Eugênia Boaventura, São Paulo, Companhia das Letras,
2004).
III – ESTILO DE ÉPOCA (SITUAÇÃO
HISTÓRICO-LITERÁRIA)
No quadro literário brasileiro, Mário Faustino pertence ao grupo de
poetas que se situam entre a geração neomodernista de 1945 e as experiências
vanguardistas da década de 1950. Manuel Bandeira e Walmir Ayala denominam esse
momento de “Poesia até agora & Vanguardas”. Para Assis Brasil, esses
poetas, “conformados” entre a geração pós-modernista (1945) e as experiências
de vanguarda, pagaram um tributo demasiado longo ao que denomina “Tradição da
imagem.”
Mesmo durante o período de vigência das vanguardas brasileiras (Concretismo,
1956; Tendência, 1957; Neoconcretismo, 1959; Práxis, 1962; Violão de Rua,
1962; Poema Processo, 1967 e Tropicalismo, 1968 – sendo estes dois últimos
movimentos deflagrados após a morte de Faustino), os poetas dessa geração,
embora receptivos aos avanços da arte poética, absorvendo tranquilamente os
experimentos dessas vanguardas, mantêm-se irredutíveis quanto ao modo de
produção, isto é, absolutamente autônomos na resolução de uma experiência
pessoal marcada por um lirismo metafísico e acima de tudo metafórico, dentro de
uma evolução nitidamente linear e inteiramente independentes da geração de
1945. São poetas desse movimento: Mário Faustino, Homero Homem, Walmir Ayala,
Alberto Costa e Silva, Marly de Oliveira, Affonso Ávila, Affonso Romano de
Sant’Anna, dentre outros. (BRASIL, 1973, p.25 e BANDEIRA; AYALA, 1996, p.129).
IV –
FASES LITERÁRIAS DO POETA. Convém mencionar que o estudo das fases
literárias de Faustino, embora tenham como ponto de partida o trabalho de
Augusto de Campos, “Mário Faustino, o último “Verse Maker”, de 1978, na Seleta
que organizamos e que foi publicada pela Editora Corisco e Academia Piauiense
de Letras, (EULALIO, 2000, p. 43), por circunstâncias didáticas, propomos:
1ª FASE: Inicial ou pré-moderna. Anterior ao Concretismo. Poemas
publicados entre 1948 e 1955. Augusto de Campos denomina essa fase “A
da integração da tradição no moderno”. Nela o autor inclui o livro “O
Homem e sua Hora” e mais 14 outros poemas que constituem a primeira parte dos
“Esparsos e Inéditos” (divulgados por Benedito Nunes após a morte do poeta).
CARACTERÍSTIAS
da 1ª Fase: Formas poemáticas tradicionais: canção, ode, balada, soneto; os
poemas em geral são expressos em sonetos; predominam os versos decassílabos,
refletindo a preocupação com o metro tradicional; linguagem metafórica, com
repetições anafóricas, elipses e paronomásias; exercício reiterado da função
emotiva da linguagem.
2ª FASE: Moderna ou experimental. Posterior ao Concretismo. Poemas
escritos entre 1956 e 1958. Essa fase consta de apenas oito poemas ou
fragmentos (2ª parte dos Esparsos e Inéditos), sendo o primeiro poema
intitulado 22.10.1956 (data de aniversário do poeta).
CARACTERÍSTICAS
da 2ª Fase: Formas livres, poesia espacial; objetividade; ruptura com a fase
anterior; emprego da fragmentação; associação sem conexões sintáticas (livre
combinação de vocábulos); preferência pela coordenação (parataxe); poesia sob a
influência do Concretismo, cujas formas livres substituem o soneto.
3ª FASE: Pós-Moderna a da integração do moderno na tradição –
conforme Augusto de Campos. Compreende os poemas escritos entre 1959 e 1962.
Essa fase podemos também denominá-la “Fase dos fragmentos.”
CARACTERÍSTICAS
da 3ª Fase: Produção de fragmentos; fase de definição estética do autor;
predominam poemas de circunstância; fragmentos sem títulos; presentes ainda
temas das fases anteriores: amor, morte, tempo e eternidade; esboço do projeto
literário e existencial do poeta: o poema longo. Os textos refletem uma obra em
progresso, à qual deveria acompanhar a vida do poeta até a morte, daí o sentido
do termo “poema longo”, atribuído pelo autor. Pretendia reunir um bom número de
fragmentos e publicá-los de cinco em cinco anos.
V – ESTILO INDIVIDUAL
A linguagem poética de Mário Faustino é altamente elaborada, com senso de disciplina
e ritmo preciso. Por essa razão é tida por alguns como hermética. Ao construir
poemas, em formas tradicionais, a exemplo dos bons poetas da língua, entendia a
forma como possibilidades de novas estruturas. Daí a capacidade que possuía de
transitar da forma tradicional para variantes poemáticas próprias. Exemplo do
que afirmamos são suas experiências com o soneto. Manejou o enjambement com
muita fluência. Mário Faustino foi um poeta cuja experiência criadora
alternou-a com a experiência reflexiva de crítico, produzindo por conseguinte
inúmeros poemas metalinguísticos que questionam o fenômeno da criação
literária. Tinha predileção pela metáfora e por construções anafóricas.
Valoriza o emprego de substantivos e verbos. Por contenção verbal, restringe o
emprego de adjetivos.
VI – A OBRA “O HOMEM E SUA HORA”
O livro constitui-se de 22 poemas, incluindo o soneto “Prefácio” que antecede
aos demais textos. A obra é dividida em três partes:
1ª parte – DISJECTA MEMBRA (título inspirado nas palavras de Horácio, célebre
poeta latino, que viveu no ano 65 a.C., autor do famoso tratado de poesia “Arte
Poética”. A frase original, retirada da obra Sátiras é: “Disjecti membra
poetae: “Os membros do poeta esquartejado”, completáveis assim: não seriam
reconhecíveis se lhes desfizéssemos o ritmo e a disposição da frase.”
Compõe-se de 13 poemas: Mensagem, Brasão, Noturno, Vigília,
Legenda, Romance, Vida toda linguagem, Estrela Rocha,
Alma que foste minha, Solilóquio, Mito, Sinto que o mês
presente me assassina e Haceldama.
2ª parte – SETE SONETOS DE AMOR E MORTE (todos em decassílabos e escritos à
maneira inglesa: os quatorze versos são compactados numa só estrofe): O
mundo que venci deu-me um amor, Nam sibyllam (do latim, é certo
Sibila), Inferno, eterno inverno, quero dar, Agonistes (do grego,
lutador, atleta), Onde paira a canção recomeçada, Ego de Mona Kateudo
(do grego pelo latim: e eu jazo sozinha), Estava lá Aquiles que abraçava.
3ª parte – Constituída por um único texto que a que deu o título à obra.
Trata-se do poema O homem e sua hora. Contém 235 versos, decassílabos na
quase totalidade. É a síntese do projeto poético de Mário Faustino.
Determinados trechos são difíceis de compreendê-los, pois exigem do
leitor conhecimentos sobre mitologia, literatura bíblica e greco-latina.
Trata-se de um longo diálogo do poeta com o mundo, sugerindo mais do que
afirmando. A intertextualidade se faz presente através de referências aos
livros do Antigo e do Novo Testamento, passando por Homero, Safo, Confúcio,
Virgílio, Homero, Dante, Pound, Mallarmé, Eliot, Jorge de Lima etc. Os versos
surgem numa cadeia sintática descontínua e reticente, instaurando no texto o
pensamento fragmentário e analógico, tornando o tom ambíguo cada vez mais
saliente no poema. É também propósito do autor enunciar, ao longo do poema,
princípios da linguagem poética que devem nortear os seus versos, privilegiando
os pressupostos de Ezra Pound: fanopeia (atribuição de imagens à imaginação
visual), logopeia (a dança do intelecto entre palavras) e melopéia
(musicalidade).
VII –
PRINCIPAIS TEMAS DO LIVRO “O HOMEM E SUA HORA”
O autor desenvolve os seus temas de modo antagônico. Para Benedito Nunes, “Amor
e morte, tempo de eternidade, sexo, carne e espírito, vida agônica, salvação e
perdição, pureza e impureza, Deus e o homem, passam e repassam, sob diferentes
nomes e em diferentes situações, nos versos do livro O Homem e sua Hora.”
(NUNES, 1966, p. 5).
O tempo: misto de efêmero e de eterno, de ilusão e realidade. Há também o tempo
que destrói e consome nossa existência, em momentos de solidão e angústia.
Sua poesia sempre espelha a consciência de um estado em crise. Seja no âmbito
literário (ex.: o soneto Prefácio), seja na esfera pessoal (ex.: o soneto O
mundo que venci deu-me um amor).
A poesia, o poeta e o poema são temas presentes em todo o livro. Poesia com
fins didáticos. O poeta ora é visto como artista e artesão, ora como cantor
inspirado e fecundador. O poema é concebido como produto da inspiração e do
intelecto.
Há também momentos em que o autor, a exemplo de
João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, teoriza sobre a poesia
dentro do próprio poema, estabelecendo a fusão entre as funções poética e
metalinguística. É oportuno ressaltar que todos o temas assumem diferentes
matizes ou subtemas.
NOTAS
1. Sobre esses textos, vide
estudo detalhado do Prof. Benedito Nunes, na introdução à obra Poesia
Experiência, de Mário Faustino, publicada pela Editora Perspectiva, São
Paulo, 1977, p. 7 a 24.
VIII – POEMAS DO LIVRO “O HOMEM E SUA HORA” (SELETA)
PREFÁCIO
Quem fez esta manhã,
quem penetrou
À noite os labirintos
do tesouro,
Quem fez esta manhã
predestinou
.
Seus temas a
paráfrases do touro,
A traduções do cisne:
fê-la para
Abandonar-se a mitos
essenciais,
Desflorada por ímpetos
de rara
Metamorfose alada,
onde jamais
Se exaure o deus que
muda, que transvive.
Quem fez esta manhã
fê-la por ser
Um raio a fecundá-la,
não por lívida
Ausência sem pecado e
fê-la ter
Em si princípio e fim:
ter entre aurora
E meio-dia um homem e
sua hora.
BRASÃO
Nasce do solo sono uma
armadilha
Das feras do irreal
para as do ser
- Unicórnios investem
contra o Rei.
Nasce do solo sono um
facho fulvo
Transfigurando a rosa
e as armas lúcidas
Do campo de harmonia
que plantei.
Nasce do solo sono um
sobressalto.
Nasce o guerreiro. A
torre. Os amarelos
Corcéis da fuga de
ouro que implorei.
E nasce nu do sono um
desafio.
Nasce um verso
rampante, um brado, um solo
De lira santa e brava
– minha lei
Até que nasça a luz e
tombe o sonho,
O monstro de aventura
que eu amei.
MENSAGEM
Em marcha, heroico,
alado pé de verso,
busca-me o gral onde
sangrei meus deuses:
conta às suas
relíquias, ontem de ouro,
hoje de obscura cinza,
pó de tempo,
que ele os venera
ainda, o jogral verde
que outrora celebrou
seus milagres fecundos.
Dize a eles que vinham
tecer silentes minha
eternidade
que a lava antiga é
pura cal agora
e queima-lhes incenso,
e rouba-me farrapos
de seus mantos
desertos de oferendas
onde possa chorar meu
disfarce ferido.
Dize a eles que tombem
Como chuvas de sêmen
sobre campos de sal
sem mancha, mas
terríveis
que desçam sobre a
urna deste olvido
e engendrem rosas
rubras
do estrume em que
tornei seus dons de trigo e vinho.
Segue, elegia,
busca-me nos portos
e nas praias de
Antanho, e nas rochas de Algures
os deuses que afoguei
no mar absurdo
de um casto
sacrifício.
Apanha estas palavras
do chão túmido
onde as deixo cair,
findo o dilúvio:
forma delas um palco,
um absoluto
onde possa dançar de
novo, nu
contra o peso do mundo
e a pureza dos anjos,
até que a lucidez
venha construir
um templo justo,
exato, onde cantemos.
SETE SONETOS DE AMOR E
MORTE
I – O MUNDO QUE
VENCI DEU-ME UM AMOR
O mundo que venci
deu-me um amor,
Um troféu perigoso,
este cavalo
Carregado de infantes
couraçados.
O mundo que venci
deu-me um amor
Alado
galopando em céus irados,
Por cima de qualquer
muro de credo,
Por cima de qualquer
fosso de sexo.
O mundo que venci
deu-me um amor
Amor feito de insulto
e pranto e riso,
Amor que galga o cume
ao paraíso.
Amor que dorme e
treme. Que desperta
E torna contra mim, e
me devora
E me rumina em cantos
de vitória...
II– NAM SIBYLLAM
Lá onde um velho corpo
desfraldava
As trêmulas imagens de
seus anos;
Onde imaturo corpo
condenava
Ao canibal solar seus
tenros anos;
Lá onde em cada corpo
vi gravadas
Lápides eloquentes de
um passado
Ou de um futuro
arguido pelos anos;
Lá cândidos leões
alvijubados
As brisas temporais se
espedaçavam
Contra as salsas
areias sibilantes;
Lá vi o pó do espaço
me enrolando
Em turbilhões de
peixes e presságios
Pois na orla do mundo
as delatantes
Sombras marinhas,
vagas, me apontavam.
III – INFERNO,
ETERNO INVERNO, QUERO DAR
Inferno, eterno
inverno, quero dar
Teu nome à dor sem
nome deste dia
Sem sol, céu sem
furor, praia sem mar,
Escuma de alma à beira
da agonia.
Inferno, eterno
inverno, quero olhar
De frente a gorja em
fogo da elegia,
Outono e purgatório,
clima e lar
De silente quimera,
quieta e fria.
Inverno, teu inferno a
mim não traz
Mais do que a dura
imagem do juízo
Final com que me
aturde essa falaz
Beleza de teus verbos
de granizo;
Carátula celeste, onde
o fugaz
Estio de teu riso -
paraíso?
IV - AGONISTES
Dormia
um redentor no sol que ardia
O louro e a cera, dons hipotecados
Da carne postulada pelo dia;
Dormia um redentor nos incensados
Lençóis que a lua póstuma cobria
De mirra e de açafrões embalsamados;
Dormia um redentor no navegante
Das mortalhas de escuma que roía
O verme de seus sonhos abafados;
E até no atol do sexo triunfante
Do mar e da salsugem da agonia
Dormia um redentor: e era bastante
Para acordá-lo o verso que bramia
No cérebro do atleta e lá morria.
O louro e a cera, dons hipotecados
Da carne postulada pelo dia;
Dormia um redentor nos incensados
Lençóis que a lua póstuma cobria
De mirra e de açafrões embalsamados;
Dormia um redentor no navegante
Das mortalhas de escuma que roía
O verme de seus sonhos abafados;
E até no atol do sexo triunfante
Do mar e da salsugem da agonia
Dormia um redentor: e era bastante
Para acordá-lo o verso que bramia
No cérebro do atleta e lá morria.
V – ONDE PAIRA A
CANÇÃO RECOMEÇADA
Onde
paira a canção recomeçada
No capitel de acanto de teu lar?
Onde prossegue a dança terminada
Nas lajes de meu tempo de chorar?
Rapaz, em minhas mãos cheias de areia
Conto os astros que faltam no horizonte
Da praia soluçante onde passeia
A espuma de teu fim, pranto sem fonte.
Oh juventude, um pálio de inocência
Jamais se estenderá sobre outra aurora
Mais clara que esta clara adolescência
Onde o lupanar da noite hoje devora:
Que vale o lenço impuro da elegia
Sobre teu rosto, lúcida alegria?
No capitel de acanto de teu lar?
Onde prossegue a dança terminada
Nas lajes de meu tempo de chorar?
Rapaz, em minhas mãos cheias de areia
Conto os astros que faltam no horizonte
Da praia soluçante onde passeia
A espuma de teu fim, pranto sem fonte.
Oh juventude, um pálio de inocência
Jamais se estenderá sobre outra aurora
Mais clara que esta clara adolescência
Onde o lupanar da noite hoje devora:
Que vale o lenço impuro da elegia
Sobre teu rosto, lúcida alegria?
VI – EGO DE MONA
KATEUDO
Dor, dor
de minha alma, é madrugada
E aportam-me lembranças de quem amo.
E dobram sonhos na mal-estrelada
Memória arfante donde alguém que chamo
Para outros braços cardiais me nega
Restos de rosa entre lençóis de olvido.
Ao longe ladra um coração na cega
noite ambulante. E escuto-te o mugido,
Oh vento que meu cérebro aleitaste,
Tempo que meu destino ruminasse.
Amor, amor, enquanto luzes, puro,
Dormindo é claro, eu velo em vasto escuro,
Ouvindo as asas roucas de outro dia
Cantar sem despertar minha alegria
E aportam-me lembranças de quem amo.
E dobram sonhos na mal-estrelada
Memória arfante donde alguém que chamo
Para outros braços cardiais me nega
Restos de rosa entre lençóis de olvido.
Ao longe ladra um coração na cega
noite ambulante. E escuto-te o mugido,
Oh vento que meu cérebro aleitaste,
Tempo que meu destino ruminasse.
Amor, amor, enquanto luzes, puro,
Dormindo é claro, eu velo em vasto escuro,
Ouvindo as asas roucas de outro dia
Cantar sem despertar minha alegria
VII – ESTAVA LÁ
AQUILES, QUE ABRAÇAVA
Estava lá Aquiles, que
abraçava
Enfim Heitor, secreto
personagem
Do sonho que na tenda
o torturava;
Estava lá Saul, tendo
por pajem
Davi, que ao som da
cítara cantava;
E estavam lá seteiros
que pensavam
Sebastião e as chagas
que o mataram.
Nesse jardim, quantos
as mãos deixavam
Levar aos lábios que o
atraiçoaram!
Era a cidade exata,
aberta, clara:
Estava lá o arcanjo
incendiado
Sentado aos pés de
quem desafiara;
E estava lá um deus
crucificado
LEGENDA
No princípio
Houve treva bastante para o espírito
Mover-se livremente à flor do sol
Oculto em pleno dia.
No princípio
Houve silêncio até para escutar-se
O germinar atroz de uma desgraça
Maquinada no horror do meio-dia.
E havia, no princípio,
Tão vegetal quietude, tão severa
Que se estendia a queda de uma lágrima
Houve treva bastante para o espírito
Mover-se livremente à flor do sol
Oculto em pleno dia.
No princípio
Houve silêncio até para escutar-se
O germinar atroz de uma desgraça
Maquinada no horror do meio-dia.
E havia, no princípio,
Tão vegetal quietude, tão severa
Que se estendia a queda de uma lágrima
Das frondes dos heróis
de cada dia.
Havia então mais
sombra em nossa via.
Menos fragor na farsa da agonia,
Mais êxtase no mito da alegria.
Menos fragor na farsa da agonia,
Mais êxtase no mito da alegria.
Agora o bandoleiro
brada e atira
Jorros de luz na fuga de meu dia —
Jorros de luz na fuga de meu dia —
E mudo sou para
contar-te, amigo,
O reino, a lenda, a glória desse dia.
O reino, a lenda, a glória desse dia.
ROMANCE
Para as Festas da
Agonia
Vi-te chegar, como havia
Sonhado já que chegasses:
Vinha teu vulto tão belo
Em teu cavalo amarelo,
Anjo meu, que, se me amasses:
Em teu cavalo eu partira
Sem saudade, pena ou ira;
Teu cavalo, que amarraras
Ao tronco de minha glória
E pastava-me a memória,
Feno de ouro, gramas raras.
Era tão cálido o peito
Angélico, onde meu leito
Me deixaste então fazer,
Que pude esquecer a cor
Dos olhos da Vida e a dor
Que o Sono vinha trazer
Tão celeste foi a Festa,
Tão fino o Anjo, e a Besta
Onde montei tão serena
Que posso, Damas, dizer-vos
E a vós, Senhores, tão servo
De outra Festa mais Terrena –
Não morri de mala sorte,
Morri de amor pela Morte
Vi-te chegar, como havia
Sonhado já que chegasses:
Vinha teu vulto tão belo
Em teu cavalo amarelo,
Anjo meu, que, se me amasses:
Em teu cavalo eu partira
Sem saudade, pena ou ira;
Teu cavalo, que amarraras
Ao tronco de minha glória
E pastava-me a memória,
Feno de ouro, gramas raras.
Era tão cálido o peito
Angélico, onde meu leito
Me deixaste então fazer,
Que pude esquecer a cor
Dos olhos da Vida e a dor
Que o Sono vinha trazer
Tão celeste foi a Festa,
Tão fino o Anjo, e a Besta
Onde montei tão serena
Que posso, Damas, dizer-vos
E a vós, Senhores, tão servo
De outra Festa mais Terrena –
Não morri de mala sorte,
Morri de amor pela Morte
O HOMEM E SUA HORA*
(Fragmentos)
...Et in saecula
saeculorum: mas
Que século, este
século – que ano
Mais-que-bissexto,
este –
Ai, estações –
Esta estação não é das
chuvas, quando
Os frutos se preparam,
nem das secas,
Quando os pomos
preclaros se oferecem.
(Nem podemos chamá-la
primavera.
Verão, outono,
inverno, coisas que
Profundamente, Herói,
desconhecemos...)
Esta é outra estação,
quando um mês tomba,
O décimo-terceiro, o
Mais-que-Agosto,
Como este dia é mais
que sexta-feira
E a Hora mais que
sexta e roxa.
........................................................................
Nox ruit, Aenea, tudo
se acumula
Contra nós, no
horizonte. As velas que ontem
Acendemos ou brancas
enfunamos
O vento apaga e
empurra para o abismo.
........................................................................
Em cemitérios
amorosos, eu,
Pigmalion, talharei a
nova estátua:
Estátua de marfim,
cândida estátua,
Mulher primeira, fêmea
de ar, de terra,
De água, de fogo –
Hephaistos, sobe, ajuda-me
A compor essa estátua;
fácil corpo,
Difícil Face, Santa
Face – falta
O sopro acendedor de
tua esperta
Inspiração...
...........................................................................
Pronta esta estátua,
agora, os deuses e eu
Miramos o
milagre: branca estátua
De leite, gala,
Galateia, límpida
Contrafação de canto e
eternidade...
(,,,) Tomba a noite,
Mas pronta é nossa
estátua, armada e tão
Plácida, prestes, pura
quanto Pallas
Bordando seus bordados
sem brandir
Égide aterradora.
Parte, estátua,
Na terra cor de carne
as vias fremem
Duras de sangue e
seixos – vai aos homens
Ensinar-lhes a mágica
olvidada:
Ensinar-lhes a ver a
coisa, a coisa,
Não o que gira em
torno dela, (...)
Vai, estátua, levar ao
dicionário
A paz entre palavras
conflagradas.
Ensina cada infante a
discursar
Exata, ardente,
claramente: nomes
Em paz com suas
coisas, verbos em
Paz com o baile das coisas,
oradores
Em paz com seus
ouvintes, alvas páginas
Em paz com os planos
atros do universo –
.....................................................................
(...) Retorna a mim,
que passarei mil anos
A contemplar-te,
ouvir-te, cogitar-te.
Vênus fará de teu
marfim fecunda
Carne que tomarei por
fêmea, carne
Feita de verbo, cara
carne, mãe
De Paphos, filho
nosso, que outra ilha
Fundará, consagrada a
tua música.
Teu pensamento,
paisagem tua.
Ilha sonora e
redolente, cheia
De pios templos, cujos
sacerdotes
Repetirão a cada
aurora (hrodo,
Hrododáktulos Eos,
brododáktulos!) **
Que Santo, Santo,
Santo é o Ser Humano
-Flecha partindo atrás
de flecha eterna
Agora e sempre,
sempre, nunc et semper...
NOTAS
1. Procuramos
nessa montagem de fragmentos encontrar nos interstícios de suas metáforas
o propósito do autor: enunciar ao longo do texto princípios de linguagem
artística, inerentes ao poeta, ao seu tempo e à obra literária em si. Aí estão
metaforicamente noções de poética como: conceito e função da poesia; o
poema como fonte de sabedoria, o poeta e sua missão pedagógica perante os
homens e o mundo.
**
(hrodo,
Hrododáktulos
Eos, brododáktulos!) – do grego, tradução corrente em português: “rosa, aurora
de dedos cor de rosa, de dedos cor de rosa.” Segundo a mitologia grega, Eos é a
aurora personificada, adorada pelos povos indoeuropeus, pertence à primeira
geração divina , a dos Titãs, como filha de Hiperion e Teia, irmã de Hélio
(sol) e de Selene (lua). Com seus dedos cor de rosa (rododaktylos) , como a
chama Homero, é ela que abre todas as manhãs as portas do céu para o carro do
sol. Assim também será o poema, iluminando com sabedoria a mente dos homens
nunc et semper (agora e sempre). (EULALIO, 2000, p. 91)
BIBLIOGRAFIA
AYALA,
Walmir. Poesia agora & vanguardas; Antologia dos Poetas brasileiros
/ Poesia da fase moderna, volume 2, org. de Manuel Bandeira e Walmir Ayala. Rio
de janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 129.
BRASIL,
Assis. A tradição da imagem. In A nova literatura – Volume 2. Rio de
Janeiro : Editora Americana / INL / MEC, 1975.
CAMPOS,
Augusto de. Mário Faustino, o último “Verse Maker” in Poesia antipoesia
antropofagia. São Paulo : Cortez & Moraes, 1978, p. 45.
CHAVES,
Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Belém – Pará:
Gráfica e Editora Universitária da UFPA, 1986.
EULALIO,
Carlos Evandro Martins. Mário Faustino. Teresina : Editora Corisco,
2000; série A Literatura Piauiense em Curso v.2.
FAUSTINO,
Mário. Poesia completa poesia traduzida. Introdução, organização e notas
de Benedito Nunes. São Paulo : Editora Max Limonad, 1985.
FAUSTINO,
Mário. Poesia-Experiência. Introdução de Benedito Nunes. São Paulo :
Perspectiva, 1977.
NUNES,
Benedito. A poesia de Mário Faustino. In Poesia de Mário Faustino. Rio
de Janeiro : Editora Civilização Brasileira, 1966.
http://www.portalentretextos.com.br/colunas/ensaio-critica/o-homem-e-sua-hora-de-mario-faustino,199,6014.html
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