PAULICÉIA DESVAIRADA, MÁRIO DE ANDRADE
Prefácio Interessantíssimo
Leitor:
Está fundado o Desvairismo.
Este prefácio, apesar de interessante, inútil.
Está fundado o Desvairismo.
Este prefácio, apesar de interessante, inútil.
Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis ambos.
Os curiosos terão o prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e
dados. Para que me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já
não aceitou.
Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo que meu inconsciente me
grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi.
Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo.
Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a
seriedade. Nem eu sei.
E desculpem-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou
passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que
bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar
orientação moderna que ainda não compreende bem.
Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contacto
com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é
minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo,
que desejei a morte do mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho
orgulho. Não me pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que se discutiram
minhas idéias (que nem são minhas): discutiram minhas intenções. Já agora não
me calo. Tanto ridicularizaram meu silêncio como esta grita. Andarei a vida de
braços no ar, como indiferente de Watteau.
Um pouco de teoria?
Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento
claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir
tantas sílabas, com acentuação determinada.
A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer impecilho a perturba e mesmo emudece.
Arte, que, somada a Lirismo, dá Poesia, não consiste em prejudicar a doida
carreira do estado lírico para avisa-lo das pedras e cercas de arame do
caminho. Deixe que tropece, caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o poema de
repetições fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis
ou inexpressivos.
Que Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero: símbolo
sempre novo da vida como sonho. Por ele vida e sonho se irmanaram. E,
consciente, não é defeito, mas meio legítimo de expressão.
"O vento senta no ombro das tuas velas" Shakespeare. Homero já
escrevera que a terra mugia debaixo dos pés de homens e cavalos. Mas você deve
saber que há milhões de exageros na obra dos mestres.
Belo da arte: arbitrário, convencional, transitório - questão de moda. Belo da
natureza: imutável, objetivo, natural - tem a eternidade que a natureza tiver.
Arte não consegue reproduzir a natureza, nem este é seu fim. Todos os grandes
artistas, ora consciente (Rafael das Madonas, Rodin do Balzac, Beethoven da
Pastoral, Machado de Assis de Brás Cubas), ora inconscientemente (a grande
maioria), foram deformadores da natureza. Donde infiro que o belo artístico,
tanto mais subjetivos quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram o
que quiserem. Pouco me importa.
O impulso lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. Seria engraçadíssimo
que esta dissesse: "Alto lá! Cada qual berre por sua vez; e quem tiver o
argumento mais forte, guarde-o para o fim!" A turba é confusão aparente.
Quem souber afastar-se idealmente dela, verá o impotente desenvolver-se dessa
alma coletiva, falando a retórica exata das reivindicações. Minhas
reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embricá-la nas minhas
verdades filosóficas e religiosas, não convencionais como a Arte, são verdades.
Tanto não abuso! Não pretendo obrigar ninguém a seguir-me. Costumo andar
sozinho.
Virgílio, Homero, não usaram rima: Virgílio, Homero, têm assonâncias admiráveis.
A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo
"ão".
Marinetti foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo,
simbólico, universal, musical da palavra liberdade. Aliás: velha como Adão.
Marinetti errou: fez dela sistema. É apenas auxiliar poderosíssimo. Uso
palavras em liberdade. Sinto que meu copo é grande demais para mim, e inda bebo
no copo dos outros.
Sei construir teorias engenhosas. Quer ver? A poética está muito mais atrasada
que a música. Esta abandonou, talvez mesmo antes do século 8, o regime da
melodia quando muito oitava, para enriquecer-se com os infinitos recursos da
harmonia. A poética, com rara exceção até meados do século 19 francês, foi
essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que a melodia musical:
arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas, contendo pensamento
inteligível.
Ora, si em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais:
"Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia comparece ante a austera e rígida
assembléia do Aerópago supremo..." fizemos que se sigam palavras sem
ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de não seguirem
intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para nossa sensação,
formando, não mais melodias, mas harmonias.
Explico melhor:
Harmonia: combinação de sons simultâneos.
Exemplo:
"Arroubos.. Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!..."
Estas palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é fase, período
elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico.
Si pronuncio "Arroubos", como não faz parte de frase (melodia), a
palavra chama atenção para seu insulamento e fica vibrando, à espera duma frase
que lhe faço adquirir significado e que não vem."Lutas" não dá
conclusão alguma a "Arroubos"; e, nas mesmas condições, não fazendo
esquecer a primeira palavra, fica vibrando com ela. As outras vozes fazem o
mesmo. Assim: em vez de melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado,
harmonia, - o verso harmônico. Mas, si em vez de usar só palavras soltas, uso
frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de palavras (notas) mas
de frases (melodias). Portanto: polifonia poética. Assim, em "Paulicéia
Desvairada" usam-se o verso melódico:
"São Paulo é um palco de bailado russos"; o verso harmônico:
"A cainçalha... A Bolsa... As jogatinas..." e a polifonia poética (um
e às vezes dois e mesmo mais versos consecutivos): "A engrenagem
trepida... Abruma neva..." Que tal? Não se esqueça porém que outro virá
destruir tudo isto que construí.
Pronomes? Escrevo brasileiro. Si uso ortografia portuguesa é porque, não
alterando o resultado, dá-me uma ortografia.
Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no
que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Si estas palavras freqüentam-me
o livro é porque pense com elas escrever moderna, mas porque sendo meu livro
moderno, elas têm nele sua razão de ser.
Mas todo este prefácio, com todo a disparate das teorias que contém, não vale
coisíssima nenhuma. Quando escrevi "Paulicéia Desvairada" não pensei
em nada disto. Garanto porém que chorei, que cantei, que ri, que berrei... Eu
vivo!
Aliás versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos cantam-se,
urram-se, choram-se Quem não souber cantar não leia Paisagem nº 1. Quem não
souber urrar não leia Ode ao Burguês. Quem não souber rezar, não leia Religião.
Desprezar: A Escalada. Sofre: Colloque Sentimental. Perdoar: a cantiga do
berço, um dos solos de Minha Loucura, das Enfibraturas do Ipiranga. Não
continuo. Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu tem essa
chave.
E está acabada a escola poética "Desvairismo".
Próximo livro fundarei outra.
E não quero discípulos. Em arte: escola=imbecilidade de muitos para vaidade dum
só.
Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio Interessantíssimo. "Toda
canção de liberdade vem do cárcere".
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