José Castello
Alunos chegam às oficinas literárias, cada vez mais, em busca de adestramento. Como se fossem indivíduos enguiçados, que precisam de conserto. Que devêssemos endireitar, ou emendar. É o que pedem: disciplina, tática, correção, ordem. Quando lhes digo que precisam, ao contrário, de desvio e de desordem, que precisam aprender a “errar bem”, e não a acertar, muitos me olham com espanto, como se eu lhes propusesse um crime, ou a morte.
Lendo Para um retrato de Monsieur Teste, de Paul Valéry, encontro reflexões que se aplicam muito adequadamente aos dias de hoje. “O termo aberração é muitas vezes mal-interpretado”, escreve o crítico e poeta francês. “Compreende-se como um afastamento da norma que vai na direção do pior, e que é um sintoma de alteração e de desagregação das faculdades mentais, que se manifeste por meio de perversões do gosto, de propósitos delirantes, de práticas estranhas, por vezes delituosas”.
A literatura não deixa de ser, porém, uma espécie benigna de delito. Delito contra o quê? Contra os pensamentos corretos, contra o bom senso, contra o equilíbrio e a sensatez. Literatura é desvio — mas isso, adverte-nos Valéry, em vez de ser negativo, é positivo. Lembra-nos o poeta que, em certos ramos da ciência, esta mesma palavra — aberração —, embora conserve um tom patológico, “pode designar algum excesso de vitalidade, uma espécie de transbordamento de energia interna, que leva a uma produção anormalmente desenvolvida”. É nesse sentido, por exemplo, que a Botânica nos fala de “vegetações aberrantes”. De uma certa forma, lembra Valéry, grande parte das espécies vegetais que o homem tão bem cultiva, como o trigo, a videira, a rosa, são variedades que, a despeito de sua utilidade ou de sua beleza, podemos chamar de aberrantes.
São variedades extremamente singulares — que se distinguem de todas as outras por uma ousadia extrema de características. São vegetais inconfundíveis e, por isso mesmo, se tornam marcantes. Também é essa singularidade que se busca quando a ênfase recai na “anormalidade” do escritor. O próprio Monsieur Teste, personagem de Paul Valéry, apresenta uma imagem externa que se distingue de todas as demais justamente pela incerteza. Pela dúvida. “Não existe uma imagem certa de Monsieur Teste”, o poeta descreve. “Todos os retratos diferem uns dos outros”.
Contra o Eu, que acredita “tudo saber” — que é o centro do mundo e o seu senhor —, Valéry nos propõe (e assim desenha Teste), contra essa “tolice do tudo se faz sentir”, a experiência dolorosa, mas própria do “menor”. Isto é: do parcial. Inevitável não lembrar aqui a poesia de Manoel de Barros e do privilégio que confere ao que o poeta chama de “inutilidades”. É esse menor, esse desprezível inútil, que, para Valéry, uma vez colocado em cena, uma vez assumido como um tesouro, e não uma deficiência, se transforma no “signo terrível do espírito”.
Faz assim o poeta uma defesa da aberração, “tão importante na natureza”, justamente pelo que possui de distorção da norma e de afirmação do particular e do Um. Muitas vezes as coisas só se realizam quando se desenrolam na direção contrária de nossas expectativas. Quando se afirmam “contra” aquilo que parece digno e correto. Exemplifica o poeta francês: “A dor buscava o aparelho que teria transformado a dor em conhecimento — coisa que os místicos entreviram, mal viram”. Mas como isso se dá? Só se dá quando descobrimos que é no inverso — a transformação do conhecimento em dor — que está o início da experiência poética. É preciso saber inverter o mundo, observá-lo de ponta cabeça, distorcê-lo, ou jamais escreveremos uma poesia que mereça esse nome.
O mesmo caminho, o da defesa do desvio e da singularidade, nos é aberto por Fernando Pessoa em sua correspondência pessoal. Atravessando-a, esbarro em um trecho que trata das relações entre a genialidade e a degeneração. Degeneração de quê? Da norma, naturalmente. Desvio, outra vez. Afirmação do particular e do Único. Escreve o poeta: “Sendo certo que todo gênio é um degenerado, certíssimo é, sem dúvida, que, entre os gênios, os da inteligência assumem um relevo máximo de degeneração”. A degeneração que, nos ensina o Houaiss, pode ser entendida como “mudança para um estado pior”, de uma maneira mais genérica e menos moralista, pode ser descrita também como uma “alteração das qualidades de sua espécie”. Portanto: mudança, transformação. Avanço, e não recuo.
O próprio Pessoa a vê como algo “nem superior, nem inferior, porque há só degenerados de uma espécie, malgrado a absurda escapatória dos psiquiatras modern style”. Embora possa ser um gênio, e portanto um degenerado, nos diz Pessoa, um chefe político conserva uma personalidade normal, “porque é um homem de ação, porque vive no meio da vida”. Já na área do pensamento e da arte, o poeta português ressalva, as coisas não se passam da mesma maneira. Por ser original, “o artista-pensador é um inadaptado às formas normais de vida”. Especifica: “Em lugar de ter uma ação vulgar (apesar da obra ímpar), ele orienta sua vida, sobretudo, para a sensação e para a inteligência e não para a ação, para a vontade, como a maioria dos homens”.
Penso no recolhimento voluntário de um Raduan Nassar. Na vida solitária — quase esquizoide — de um gênio tão desprezado como João Gilberto Noll. No fogo que agita a alma dos poetas, expresso na relação fulgurante que Vinicius de Moraes teve não só com o álcool, mas com a poesia. Recolhida em sua cozinha mineira, entre suas novenas e bolos, Adélia Prado não deixa de praticar uma rotina desviante em relação àquilo que se espera da “normalidade” poética. Há o exemplo radical de Hilda Hilst, que imolou a vida não só no álcool, mas também no misticismo, e o caso ainda mais extremo de Ana Cristina Cesar, que morreu da própria beleza, matando-se em plena juventude. O próprio Pessoa, esquivo e com o espírito fatiado em um séquito de possessões, deixou-nos um exemplo do papel do desvio na formação do poeta. O que pensar de Clarice, sempre fora de sintonia com o mundo? Todos eles experimentam, ou experimentaram, algum tipo de degeneração. Algum tipo de desvio fundamental, de desconforto com a rotina humana. Tiveram, ou têm, uma alma aberrante, que foi, ou é, no entanto, a outra face do gênio.
PERNAMBUCO
Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado
http://www.suplementopernambuco.com.br/edicao-impressa/120-colunas/jose-castello/1614-a-escrita-aberrante.html
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