terça-feira, 30 de agosto de 2016

ADÓNDE ESTÃO AS MUIÉ? Francisco Vaz Brasil



ADÓNDE ESTÃO AS MUIÉ?
Francisco Vaz Brasil



Luis Fernando, o ultra conhecido Jumentín saiu com a esposa... Foram ao Veropa (Ver-o-Peso). Lá, depois de descerem do Sacrabala (ônibus da linha Sacramenta-Nazaré) e andarem comprando as coisas, separaram-se. Jumentín foi à loja de esportes atrás de uma camisa do Xumengo (Flamengo). E a esposa, Dona Julieta (feia de cara, mas boa de mutreta) se meteu nas barracas de ervas medicinais, atrás de Mucuracaá e Comigo Ninguém Pode. O tempo vai passando e os dois um pra lá, outro pra mais adiante. Eis que senão quando, Jumentín encontra com Zé Dentão, um sujeito forte, bom de bola, falador e bebedor de cerveja. Zé Dentão também veio acompanhado da mulher, uma bela morena oriunda lá das bandas de Uruará. O encontro dos dois foi uma festa! Há tempos que não se viam, desde a época em que trabalharam juntos em uma madeireira ali de Ananindeua, a Exportadora Perachi. Resolveram tomar uma “gelada”. Foram lá pras barracas do Ver-o-Peso e logo pediram, também, um porção de peixe frito. E aí sumano, acuma tá tu? Adonde andas ó meu? (perguntou Jumentín). E Zé Dentão logo respondeu: “Tô lá pur São Geraldo do Araguaia, trabaiando numa serraria clandestina que eu muntei lá adonde era a filial da Ímpar nutros tempo. Tu tá serrano Mogno? Que pau tu tá serrano? – perguntou Jumentín. E Zé Dentão respondeu: Que nada mermão... Tô serrano Teca, que eu trago lá de perto de Água Azul do Norte, é madeira oriunda de uma projeto florestar, madera legar... Mar ih, rapá... Eu isquici de minha muié... Cacete, adonde ela tá? E tu Zé? Tu perdesse tua muié tomém? Ih, Jumentín unde será qui ela tá? Será qui ela foi pru Xópis sem mi dizê nada? Zé, acuma é tua muié? Ela é bornita, arta, tá de bermudinha dhíns e uma camisetinha casi transparente e tá cum o dinhêro das cumpra... Ih... Râmo. Zé, vâmu atrás de tua muié sumano! E a tua Jumentín, quêde ela? Num importa Zé Dentão, caminha hômi, disse Jumentín... Pruquê sumano, tu tá interessado em encuntrá a minha muié e não a tua? É pruquê sumano, muié fêia e burro véio ni o duno anda atrás!
Ma qui merda é essa Jumentín? Tu tá de sacanaginha cumigo né seu vevegonha?... Vai procurá a tua muié... Dêxa que da minha cuido eu! Inté, agente se vê puraí! Tiao! Tchau Zé!

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Mater dolorosa, Otto Lara Resende



Mater dolorosa
 Otto Lara Resende

Em casa, como em toda a cidade, ninguém se lembrava mais do dia em que Mamãe caiu doente. Talvez tenha sido antes do parto, talvez depois do parto, quando sofreu a ameaça de eclâmpsia. Ou no inverno do ano seguinte, quando tirou um litro de pus dos pulmões por causa de uma pleurisia. Também podia ser na ocasião em que ficou fraca do peito e precisou de punção e sinapismo. Começou aí a fase das cataplasmas e das ventosas. Era uma agonia só, na noite impregnada pelo forte cheiro de éter.
— Sua mãe não pode ser incomodada — as tias recomendavam.
Era assim desde que me entendia por gente. Assim tinha sido desde sempre, desde o começo do mundo. Proibido fazer barulho — Papai tinha escrito em várias portas. Mas queria era dependurar uma placa bem visível no poste, pedindo silêncio à rua como diante do hospital. Atrás do alto muro de hera, o jardim descuidado isolava ainda mais a nossa casa. Na rua calada, ninguém ria, ninguém cantava. As crianças iam brincar longe, depois da esquina. O afiador de faca suspendeu o silvo estridente com que chamava a freguesia. Nenhum ambulante gritava mais o seu pregão.
De começo, Papai e as tias ainda se queixavam da falta de educação dos estranhos que passavam indiferentes pela calçada. Como é que alguém neste mundo podia rir, enquanto Mamãe gemia cheia de escaras no seu leito de dor. Pois um vizinho do lado de cima chegou a dar uma festa. O alarido das vozes e da música batia nas vidraças cerradas e nos unia com rancor contra o disparate daquele herege. Papai já estava disposto a ir dar um tapa de luva naquela gente sem entranhas, mas tia Vera não deixou. Papai podia perder o controle e explodir em sua santa cólera. Afinal a Encarnação foi lá, deu o recado e voltou triunfante:
— Por favor, Dona Maria está passando muito mal.
A festa parou por uns momentos, mas logo recomeçou. O xale nos ombros, o terço na mão, tia Dulce desfiava jaculatórias e responsos. Invocava Santo Antônio, exigia um milagre de São Judas Tadeu. Depois rezou ao Senhor do Monte das Oliveiras, do Gólgota, do Calvário. A algazarra diminuiu, mas o vozerio continuou. Janelas e portas hermeticamente fechadas, a Encarnação vedou qualquer abertura com travesseiros e cobertores. Altas horas a música penetrou alegre pelas frinchas da casa abafada e continuou pela noite adentro. Papai se trancou amargo no escritório.
— Falta de respeito — resmungou tia Vera, e foi render tia Dulce na vigília ao pé do leito.
Juntas, as tias imploravam a Mamãe que tivesse paciência. Meditasse na descida da Cruz, na agonia do Horto. Nas sete dores de Nossa Senhora. No dia seguinte, os ombros caídos, as olheiras fundas, Papai saía e entrava como uma sombra. Era preciso tomar cuidado, exigir mais atenção. Uma por uma, as vasilhas tinham de ser esterilizadas. Já não bastava uma bolsa de água quente. Eram necessárias duas e três, que se alternavam nas costas, no ventre, nos pés. De costas ou de bruços, deitada ou recostada, nada satisfazia a paciente. O ouvido apurado percebia ao longe qualquer barulho. Vozes e passos a enervavam, mesmo que só ela os pudesse ouvir. De madrugada o leiteiro já não tilintava as garrafas na porta. O padeiro se anunciava com um murmúrio e deixava o pão em cima do portãozinho. Porque Mamãe estava doente era preciso evitar os golpes de ar. Em permanentes fumigações, as tias contra o ar viciado queimavam essências pelos cantos. A casa recendia a eucalipto e a incenso, a alfazema e a rosmaninho, mas todos os aromas denunciavam que Mamãe estava doente. Compungidos, os passantes policiavam os pés e prendiam a respiração, para não tossir. Ninguém deixava de exprimir piedade e comiseração.
— Dona Maria não está passando nada bem — o refrão acompanhava as freqüentes notícias de cólicas e as sucessivas injeções.
O médico passava amiúde antes do almoço, para tomar a temperatura e recolher o relatório da véspera. Voltava às vezes à tardinha e, conforme o caso, aparecia também à noite. Conversava a meia voz com Papai e as tias, trêmulas, curiosas, não ousavam se aproximar. Era preciso guardar distância do terrível segredo. Só o chefe da casa podia ficar sabendo. Debaixo do maior sigilo as tias estimularam a Encarnação a procurar rezadeiras e curandeiros.
Estava convocada mais uma conferência médica, mas era preciso mandar vir especialistas de renome. Podia ser volvo ou nó nas tripas e seria caso de cirurgia. Mamãe não estava em condições de viajar até um lugar de recursos. Podia não resistir. A portas fechadas, em vão se reuniram os doutores no escritório do Papai. O diagnóstico teimava em ser impreciso e o prognóstico era cada vez mais sombrio. Sífilis também? Nada era improvável. E sobrevinha o medo das complicações, ao lado do fantasma da tuberculose que rondava a família e ostentava o rol macabro dos antecedentes.
No quarto lá em cima, as mãos crispadas no peito, Mamãe tinha tonteiras e desmaios, tremores e delírios — e ainda tinha forças para um choro convulso, entremeado de soluços de cortar o coração. Puxava a cabeleira molhada de suor. Divagava, desmaiava. Dura, inconsciente, os seus ossos estalavam. A febre queimava os lençóis. Na cabeceira da cama se amontoavam as medalhas milagrosas, os bentinhos e as relíquias. Na alcova ao lado foi armado um oratório com o Cristo da Cana Verde, com uma lamparina acesa aos seus pés. Na vã tentativa de aliviar as dores, o quarto dispunha agora de outra cama, bem alta e dotada de dispositivos que nem o hospital conhecia. As tias manejavam a manivela dia e noite, para baixo, para cima, sem resultado.
Sob os lençóis, ou já sem recato, Mamãe fazia as suas necessidades na comadre esmaltada. A muito custo vertia a sua ameaçadora urina cor de cobre. Junto da lâmpada vermelha na cabeceira, a campainha em forma de pêra tinha de estar ao alcance de sua mão. Ignorava a presença de quem estivesse no quarto e tocava a campainha, que soava nervosa na copa e na cozinha. Identificava pelo tato o rosário com bênção especial do Papa. Junto do abajur, a garrafinha com água de Lourdes garantia a proteção da pequena Teresa do Menino Jesus.
— Coitada, é uma santa — e com jeito tia Vera pregava mais um Agnus Dei na camisola que acabava de ser trocada. Como nunca ninguém sofreu tanto assim, imóvel na cadeira de balanço, Papai sonhava com sumidades médicas que mandaria buscar onde quer que estivessem. Depositava os óculos no colo e, olhos fechados, tomava sal amargo. Interrogava calado os desígnios do céu. Na penumbra de dentro de casa, as cortinas empoeiradas pesavam até o chão, sempre fechadas. Todo mundo instalou na garganta uma surdina. A nova copeira foi mandada embora porque teve o descaramento de soltar uma gargalhada. Quem podia rir entre tantas dores?
Chinelas de feltro, as dolorosas tias subiam e desciam as escadas, no leva-e-traz de emplastros, garrafas, vidros e pacotes de algodão e gaze. Com um fiapo de voz, tia Dulce cochichava que talvez fosse o caso de um cataplasma de mostarda. O dorso curvo, meio corcunda, tia Vera não podia deixar de concluir a novena do Senhor Morto. De madrugada as duas tropeçavam no escuro uma na outra, entre sustos e sobressaltos. Aflitas, esperavam pelo nascimento do sol, como se com o dia todas as ameaças se retirassem para longe da nossa casa.
Porque Mamãe estava doente, almoçávamos depressa e mal. Papai, inapetente, ouvia insistentes apelos e não se alimentava. O apetite podia ser um insulto em casa de tanto sofrimento. Era preciso impedir que o aroma do café recém-passado se espalhasse para além da cozinha. Seria uma falta de respeito logo pela manhã. De dia e de noite, chás, papas e mingaus aguardavam a hora de serem levados para cima. Mamãe não dispensava o seu pirão de farinha, sua canja insossa, seus caldos engrossados.
Prescrito o regime de superalimentação, tudo foi feito com todo cuidado, mas Mamãe se recusava a comer. Diante da bandeja em cima do tabuleiro, as tias suplicavam que comesse. Apalpasse o seu ventre murcho. Nos quadris os ossos estavam à mostra. Arrastada pelas tias escada acima, a Encarnação ia dizer que tinha conseguido um tempero inocente. Não iria contrariar as ordens médicas. Mas a Dona Maria não achava sabor em nenhuma iguaria e tinha medo de congestão. Tirassem tudo da frente dela, que já estava suando frio.
Só depois de terminada a batalha no andar de cima, começava embaixo o almoço dos que não estavam doentes. Uma Pietà pendia da parede e, num silêncio constrangido, ninguém confessava a própria fome.
— Passe a abobrinha — dizia um e logo se envergonhava. Tia Vera comia escondido na cozinha e se lamuriava com a mão no queixo — não tinha o menor apetite. Tia Dulce lambiscava o dia todo e insistia com Papai para que comesse ao menos um pouquinho da sobremesa — pela Santíssima Virgem Maria, por Nossa Senhora da Conceição, pelo Senhor do Gólgota e pela sua coroa de espinhos. Doente, bastava Mamãe naquela casa. Havia muito o jantar tinha sido esquecido. Todos evitavam se sentar à mesa para o inconcebível festim. Cada qual comia para o seu lado — na cozinha ou na copa, sentado numa ponta de tamborete ou em pé. Passava despercebida a hora vergonhosa de matar a fome. Sem molhos ou requintes, todos se despachavam. Se Papai rodava a colherinha na xícara de café requentado, logo se desculpava com um olhar fúnebre.
Recolhido ao escritório tarde da noite, só o chamavam em caso de necessidade. Uma crise de falta de ar, uma palpitação que podia precipitar o desenlace. Uma dúvida na administração do xarope e da poção. Um curativo mais delicado. Punha a seringa para ferver e aplicava a injeção de coramina. Óleo canforado, murmuravam as tias. Calmantes e analgésicos fricções e escalda-pés vinham acompanhados por palavras de conforto e súplicas de voz embargada. Crises, cólicas, suores noturnos. Acessos de tosse, vertigens ou dispnéias — à noite tudo podia acontecer.
De plantão até tarde, Papai dormia sobressaltado, entre gemidos e suspiros que o silêncio da noite levava por toda a casa. Então se recolhia ao escritório, a porta fechada. Ninguém queria que se sacrificasse. As tias queriam poupá-lo para as horas difíceis. Tudo era motivo de alarme. A campainha da porta foi desligada desde o momento em que quase provocou um desastre fatal. Mamãe despertou com ânsias de vômito e calafrios.
A doente tinha de ser preservada. Nenhuma preocupação podia chegar até ela. Não perguntava por mais ninguém. Vivia só para a sua doença. Seu martírio, coitada. Sua flagelação. Hora a hora, um dia depois do outro, o tempo, imóvel, tinha sido coagulado. Só tia Vera ainda ousava animá-la: ia ficar boa, já convalescia. Mas como tia Dulce, sabia de cor o ofício dos agonizantes e aguardava o dies irae. 0 vigário espaçava as visitas para o viático. A misteriosa hóstia branca no radioso cibório. Chegou a época da visita do Senhor Bispo à paróquia e ele veio abençoar a enferma e consolar os aflitos.
— Desta cama só para o túmulo — Mamãe choramingou. Avisados com antecedência, recebemos a consoladora visita episcopal. Vermelhas vestes, sapatos de fivela, respeitoso anel, o Senhor Bispo se acomodou na sala de visitas, que se abriu para recebê-lo. Um chá-da-índia caprichado lhe foi servido na melhor porcelana. Aceitou um fino licor de jenipapo, da melhor frasqueira. Afável, o Senhor Bispo dispensava a genuflexão e se deliciava com o doce de coco com ovo, uma especialidade da Encarnação. Mas isto foi de outra vez. Os dedos melados, o Senhor Bispo me afagou, paternal, as bochechas espantadas.
— Deus é grande — murmuravam as tias, enquanto na rua juntava gente por causa da visita do Senhor Bispo. Era uma fineza muito especial para com a Dona Maria e para com toda a família. Ninguém mais duvidou de que Mamãe estava gravemente enferma. Seus males resistiam a todos os recursos da ciência médica. Parentes e amigos multiplicavam as promessas e as novenas. Nossa Senhora Visitadora veio com a sua capa prateada, subiu as escadas e foi devotamente exibida à doente.
A casa recendia a lírio, dama-da-noite e jasmim. Ao pé do Sagrado Coração de Jesus foi posto um ramo de rosas. Fortalecida a fé pela visita do Senhor Bispo, à noite rezávamos o terço. Duas ou três beatas foram admitidas, por sugestão do vigário. Mas não passaram do andar de baixo e tia Vera lhes pediu que rezassem baixinho. E nada de cantoria, para não perturbar o repouso da pobre sofredora. A lâmpada de azeite estalejou noite adentro e, no dia seguinte, a vida prosseguiu em sua pesada rotina. Porque Mamãe estava doente, tudo era triste, opaco e funesto.
Menos o sabiá que ganhei de presente do meu padrinho. Um sabiá graúdo e animado como nunca vi igual. Horas entretido com ele, esqueci até de almoçar, como disse tia Vera. Mamãe tão doente e eu perdendo tempo com um passarinho — tia Dulce achou que era pecado. Papai não se abalou para ir vê-lo. Mas ainda assim achou que estava deslocado numa casa envolvida pelas sombras da morte.
Espadanejando asas e penas contra as varetas da gaiola, o bico aberto, algumas horas depois o sabiá só queria fugir da prisão. Em vão tentei acalmá-lo. Desprezou a talhada de mamão e nem olhou para o alpiste que lhe ofereci. Piava triste e zangado, arrepiava as penas e só pensava em fugir para bem longe. Primeiro arisco, depois encorujado, sujava a gaiola e o chão que ficava à sua volta. Quando a Encarnação ameaçou soltá-lo, mudei a gaiola para o meu esconderijo no fundo do quintal.
Sem cantar nem piar, o sabiá gigante acabou esquecido. As tias nunca mais o viram. Um gato podia ter dado cabo dele, se a Encarnação não tivesse chegado a tempo. Mas chegou na horinha e daí para a frente tomou apego ao sabiá. Não tinha mais que fazer café e quitandas para receber as visitas, cada vez mais escassas. De raro em raro aparecia um parente e se contentava com o licor de tamarindo que tia Dulce fechava no guarda-louças. Ninguém tomava como desfeita a acolhida chocha. Os vizinhos mandavam as criadas indagar como ia passando a Dona Maria — e desejavam sem convicção melhoras para a pobre senhora. Uma velha parenta mandou da fazenda uma tradicional estampa da descida da Cruz.
Tomando cuidado para não misturar mezinhas, cápsulas e comprimidos, as tias subiam apressadas em silêncio e desciam ansiosas recitando jaculatórias. Por qualquer coisinha Mamãe revirava os olhos e se agarrava com a relíquia de Santa Rita de Cássia. Voz firme, tia Vera lia a bênção especial mandada pelo Monsenhor Horta. Uma vizinha fez o favor de enviar uma garrafada em que muita gente vinha fazendo fé — da Santa Manuelina dos Coqueiros. Mais uma vez Mamãe se despedia da vida. Os galos cantando, os cães latindo, ao amanhecer mais uma vez Mamãe vencia a morte.
Para o caso de necessidade, a Encarnação sabia onde estava a vela de cera do santuário de Congonhas do Campo. Acreditava, convicta, nas suas rezas fortes, mas as tias já tinham marcado com uma fitinha roxa o ofício dos mortos. A roupa da defunta jazia pronta no mesmo armário em que se encontravam os tocheiros. A qualquer hora o médico e o padre podiam ser chamados. Mamãe, porém, resistia.
Resistiu à tempestade que sacudiu as portas e janelas e transformou a casa num navio que naufragava. Santa Bárbara e São Jerônimo tinham nos abandonado à nossa própria sorte. Mamãe chorava, imprecava, maldizia a natureza indiferente à sua dor. No telhado a água escachoava. Postado na janela, Papai espiava lá fora a violência do enxurro. Tia Dulce lá em cima beijava a mão fria da Mamãe e jurava que tudo ia passar num minuto. Pela manhã continuava a chover. Papai calçou as galochas, enfiou a capa de gabardine e o chapéu de feltro. Só voltou à noite e ninguém ousou perguntar onde tinha ido.
Até que um dia, numa hora banal e preguiçosa, tendo a Encarnação cozinhado um ensopado de carne com moranga, quando nada fazia prever uma mudança de rumo nos acontecimentos, sozinha no quarto, cochilando serena, Mamãe exalou o último suspiro. Sem vela na mão, sem ofício dos mortos, sem bispo, sem padre e sem sacristão. Sem qualquer despedida, descansou. A notícia correu pela cidade e logo começaram a chegar as primeiras visitas.
Agradecendo com polido controle cada abraço de pêsames, subitamente de preto como se tivesse preparado o viúvo que ia ser, Papai tomou sozinho todas as providências para o velório e o enterro. A Encarnação acendeu na cozinha o forno e o fogão. Tinha de se prevenir para receber os que vinham fazer quarto pelo resto do dia e entrariam pela comprida noite solidária.
Surpresas, como se nunca tivessem esperado tamanho choque, as tias lastimavam não ter havido tempo para chamar o padre. Rezando a duas vozes, lavaram, perfumaram, vestiram e enfeitaram a defunta. Rosto lívido, mãos nervosas, nariz pontudo, boca amarga, Mamãe afinal deixou o refúgio do andar de cima. Não vi como desceu a escada, nem como chegou à sala, já com os tocheiros acesos. O vigário mandou logo cedo o grande Crucifixo que tinha prometido. As tias tinham certeza de que o Senhor Bispo viria para as exéquias.
Esquecido de todos, querendo ficar sozinho, saí pelos fundos da casa e só então dei com o sabiá de novo emplumado, saltitante na gaiola, em plena aleluia. Até que enfim tinha começado a cantar.

RESENDE, Otto Lara, O elo perdido e outras histórias. Mater Dolorosa. São Paulo: Ática, 1994, p.48-55.