Ulysses e forma
Robert Brazeau
Polêmico e considerado
difícil, romance de Joyce oferece ao leitor uma educação dos sentidos
Parte
daquilo que faz com que Ulysses seja um texto tão notoriamente difícil é a
maneira com que parece menosprezar a forma tradicional do romance. Composto em
seguida ao realista Retrato do Artista Quando Jovem, o livro só aparenta
subscrever esporadicamente à doutrina do realismo literário, e mesmo quando o
faz temos a impressão de que é apenas por tempo suficiente para nos colocar em
apuros com referências cada vez mais obscuras, com pensamentos, piadas ou
associações que não se consegue costurar em um único “texto”. Poderia ser
argumentado que em Ulysses Joyce experimenta com aspectos formais do romance
para emular os efeitos desnorteadores da modernidade urbana, capitalista, e os
vários tipos de anomia e alienação que geralmente acompanham a existência
contemporânea. Ou seja, ele empregaria uma estrutura que possuiria um sentido
em si mesma – o romance – e então desestabilizaria a capacidade dessa forma para
criar ou projetar sentido. Com isso, ele imitaria a experiência de viver em um
mundo que deveria fazer sentido, mas que raramente faz – ou, pelo menos,
raramente faz pelas razões que pensamos que deveria fazer.
Recentemente,
o romance de Joyce viu-se no centro de uma pequena controvérsia quando o
escritor Paulo Coelho ofereceu a seguinte crítica do livro que muitos
consideram a obra em prosa mais grandiosa da literatura de língua inglesa: “Um
dos livros que fez mal à humanidade foi Ulysses, que é só estilo. Não tem nada
ali. Se você disseca Ulysses, dá um tuite”. O escritor irlandês Roddy Doyle
também lamentou o estatuto elevado que o romance alcançou, sugerindo que
Ulysses pode oferecer bastante em termos de inovação formal, mas muito pouco
que emocionaria a maior parte dos leitores. Esse argumento foi refutado pelo
livro bastante cativante de Declan Kiberd, Ulysses
and Us: The Art of Everyday Living (Faber and Faber, 2009). Nesta
obra, amplamente acessível a leigos, Kiberd desdobra o argumento atraente, ainda
que dúbio, de que o público leitor de Ulysses tornou-se o acadêmico, sério e
livresco, porque Ulysses foi originariamente reclamado e apropriado pelas
elites do movimento modernista como um exemplo perfeito de ideologia estética
ou literária. Mas é realmente verdade que Ulysses só é um livro difícil porque
vários professores universitários e críticos culturais o afirmaram? Os
incontáveis leitores que se debatem com o texto monumental apenas o fazem
porque disseram a eles que deveriam achar o romance impenetrável? O rei está
nu, afinal de contas, e o Ulysses simplesmente permanece lá, como qualquer
outra obra, para ser lida e discutida?
A
maior parte dos leitores do romance, mesmo aqueles que se divertem com ele,
teriam que admitir que há muito no Ulysses que é bastante difícil de entender,
que dirá se divertir no sentido de uma leitura convencional. As ruminações
hipereruditas de Stephen, no “Proteu”, são citadas pela maior parte dos
leitores como uma fonte de dificuldades, e inúmeros outros abandonam o texto em
algum ponto da Praia de Sandymount (onde se passa o episódio). Da mesma
maneira, o estilo de “Sereias”, as longas inserções de “Cíclope” que acabam
dominando o capítulo, a forma alienadora do “Gado do Sol”, a prosa sinuosa e
cansada do “Eumeu”, o que quer que seja o “Ítaca”, e muito mais, mortificaram
muitos lei- tores, fossem eles acadêmicos ou não. O estilo característico
desses episódios, e aquilo que Joyce está insinuando so- bre o romance como
gênero quando os mistura, confirma que algo deliberado e interessante está
acontecendo nestes momentos do texto, mas também coloca, eu diria, os maiores
desafios para os leitores dessa grande obra. Em um lugar ou outro, muitos
começam a sentir que não estão tirando nada da experiência de Ulysses; ou seja,
que estão lendo palavras, mas não o romance. Quando chegamos à conclusão, o
romance passa a brincar com a noção de efificácia narrativa, dando-nos palavras
demais para descrever seu movimento hesitante e indeciso em direção a nada em
particular, e certa- mente a nada definitivo. A linguagem está lá e é
frequentemente muito bela e tocante, mas não fica claro o que deve- ríamos
estar “tirando” da leitura do romance como um todo.
Se
os eventos descritos não se cristalizam para formar o que acreditamos ser uma
totalidade convencional, se as experiências dos personagens não se aglutinam
para formar uma realidade confiável e compreensível, e se os pensamentos,
desejos e palavras não ficam costurados para tecer um tema coerente, então o
que temos? É possível defender que depois de Ulysses surge o romance escrito no
modo do “como se”: pós-Joyce, ele passa a ser composto “como se” a experiência
tivesse sentido e o romance pudesse nos dizer por quê, ou “como se” pudéssemos
conhecer os outros e nós mesmos, ou “como se” a modernidade e a história
realmente possuíssem algum significado abrangente, “como se” o projeto, o plano
e a intenção reinassem sobre a contingente e o acidental, e talvez até mesmo
“como se” Ulysses nunca nos houvesse ensinado o contrário. Sendo assim, mesmo
que não o abandonemos, mesmo cheguemos ao fifinal de suas mil e tantas páginas
e então possamos reivindicar alguma competência sobre ele, também precisAmos de
alguma maneira esquecê-lo para continuar acreditando no romance como uma forma
bem sucedida e satisfatória. Esta pode ser a ironia fifinal de Ulysses: aqueles
que de fato completam a tarefa de trabalhar para entendê-lo encontram em
seguida a tarefa de tentar reinstaurar sua concepção pré-Ulysses, ao menos no
que se refifira à literatura. Estamos então bem mais defasados do que aqueles
que abandonam o texto; temos que desaprendê-lo para continuar acreditando na
narrativa como uma forma privilegiada que nos ajuda a entender a realidade
material do nosso cotidiano.
Se
essa obra força-nos a sacrificar nossa crença em formas sociais e narrativas
estáveis, então com o que o Ulysses nos deixa?
As
detalhadas descrições do romance são inesquecíveis: Stephen no topo da torre
Martello olhando para a “vasilha de águas amargas” [bowl of bitter Waters], ou
seja, para a Baía de Dublin, a máquina de guardar moedas de Deasy, o fígado de
porco de Bloom queimando na cozinha enquanto serve o chá para Molly no andar de
cima da casa da Rua Eccles, no. 7, o som da língua do gato lambendo o papel no
qual o fígado estava embrulhado, o calvo Pat, “um garçom ruim de ouvido” [bald
Pat is a waiter hard of hearing], os gárrulos jovens em “Gado do Sol”, o café
intragável no abrigo dos cocheiros em “Eumeu” – todos esses detalhes e milhares
de outros dão vida a esse romance brilhante e transbordante, que nos intima a
olhar para os detalhes do mundo à nossa volta por seu sentido real. Ulysses
oferece ao leitor cuidadoso uma educação no uso dos sentidos, do corpo, para
além do poder da mente de tentar fazer nosso mundo razoável. O cotidiano
normalmente faz sentido para nós quando o encaixamos em um esquema filosófico
ou psicológico de algum tipo, chegando mesmo ao ponto no qual o emprego dessas
ordens (a ideológica, a erótica, a estética, a religiosa…) torna-se inseparável
da realidade que pensamos estar apreendendo, mas que na realidade estamos
sempre inventando. Ulysses não nos conta simplesmente que o mundo que nos
rodeia é interessante ou belo, mas ao invés disso é mais desafiador celebrar a
realidade diária, enfadonha, por aquilo que ela é, do que por aquilo que
desejamos que ela seja.
Traduzido por Fabio Akcelrud Durão
Robert Brazeau é professor da
Universidade de Alberta, Canadá, e coeditor da Eco-Critical Joyce
http://ht.ly/X1tm8
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