domingo, 7 de fevereiro de 2016

Sociopatologia da vida cotidiana, por Flávio Ricardo Vassoler



Sociopatologia da vida cotidiana
 Flávio Ricardo Vassoler


1) A dialética do senhor escravo
Ucrânia, 1941. Conheçam Maximilien Aue, oficial da temível SS nazista (Shutzstaffel, “Tropa de Proteção”) e protagonista do romance As Benevolentes (Editora Objetiva, 2007), do escritor franco-americano Jonathan Littell.
Cínico, erudito e mórbido, eis que Aue, do alto de seu púlpito narrativo, nos apresenta a dialética do extermínio a enredar o ápice do sadismo à compaixão:

Eu agora creio que consigo entender melhor as reações dos homens e dos oficiais durante as execuções. Se eles sofreram, não foi apenas por causa do cheiro putre e da visão do sangue, mas por causa do terror e do sofrimento moral das pessoas contra quem eles atiravam; da mesma forma, suas vítimas frequentemente sofriam mais por causa do sofrimento e da morte, diante de seus olhos, daqueles a quem elas amavam – esposas, pais e filhos queridos – do que por suas próprias mortes, as quais chegavam até eles, ao fim e ao cabo, como uma redenção. Em muitos casos, assim dizia de mim para mim, o que eu tomava por sadismo gratuito, a brutalidade incomensurável com a qual alguns homens tratavam os condenados antes de executá-los, não era senão uma consequência da piedade monstruosa que eles sentiam e que, incapaz de se expressar de outra maneira, se transformava em raiva, uma raiva impotente e sem objeto, uma raiva que, assim, de forma quase inevitável, tinha que se voltar contra aqueles que originalmente a provocavam. Se os terríveis massacres do Leste Europeu provam alguma coisa, ora, é que, paradoxalmente, nós chegamos à terrível e inalterável solidariedade humana. Ainda que nossos homens tenham se brutalizado; ainda que eles tenham se acostumado com o horror, nenhum de nossos homens poderia matar uma judia sem pensar em sua própria esposa, em sua irmã, em sua mãe, ou matar uma criança judia sem ver diante de si mesmos seus próprios filhos. Suas reações, sua violência, seu alcoolismo, as depressões nervosas, os suicídios, minha própria tristeza, tudo isso demonstrava que o “outro” existe, que ele existe como um outro, como um ser humano, e que nenhuma vontade, nenhuma ideologia e nenhum punhado de estupidez ou álcool podem quebrar esse vínculo, que é tênue, porém indestrutível. Isso é um fato, não uma opinião
(em tradução livre feita a partir da edição inglesa).

Para além da ironia letal de Aue a reconhecer a dignidade ontológica da alteridade quando o “outro”, em meio às valas e charcos, já não tem rosto e pulsação, há elementos em sua fala que, potencialmente, nos permitiriam entrever que a mão que fere é a mesma mão que pode curar.
Os membros dos pelotões de fuzilamento e os carrascos a brandir suas clavas e punhos não ouvem apenas o horror dos disparos e pancadas. Eles ouvem o desespero das súplicas e o último refúgio das orações, eles inalam o ar viscoso do Não matarás, eles veem os rostos dilacerados dos mortos e de seus entes amados – a mãe ordena ao carrasco que a mate sem mais após assistir à execução de seu bebê, ela arremete contra o fuzil e luta, encarniçadamente, contra a própria sobrevivência.
O sofrimento físico escatológico turva a dialética do senhor e do escravo.
Maximilien Aue fulmina suas vítimas com mais e mais sofreguidão, a prática dolosa já lhe permite distinguir, entre os múltiplos guinchos e ganidos, a ruptura do esterno do esfacelamento de mais uma costela, ele evita dar bicudas com o coturno – o inchaço de seus punhos chega a excitá-lo: é quando o carrasco sente o exercício da violência, o eriçamento de seu corpo e a descarga adrenalínica como a ejaculação da vontade de poder. Mas, ao mesmo tempo, a torrente presencial de sadismo começa a inocular no verdugo a projeção reversa da dor – “E se fosse minha mãe, e se fossem os meus? Eu também tenho um corpo que dói!” Neste momento, o legista Maximilien Aue, a dissecar os paroxismos humanos, transforma a faca do assassino em bisturi, de modo a descobrir, sob o sadismo doloso, um veio paradoxal de ódio por si mesmo e compaixão pela vítima que ainda não morreu. Assim, é preciso bater mais e melhor, é preciso disparar o tiro de misericórdia.
Ao alcançar o ápice, o sadismo se reverte em masoquismo e dor conjunta. O oficial da SS nos diz que pode haver compaixão no assassínio. Com o tempo, as explosões de náusea e vômito, os pesadelos, o espancamento da esposa e da amante, dos filhos e dos subordinados, o alcoolismo e o suicídio, tudo isso irrompe como a impotência do senhor que se vê aguilhoado à prática senhorial do extermínio sem poder exterminá-la. Eis que Maximilien Aue, do alto e do charco de seus assassínios, nos revela a dinâmica da dialética do senhor escravo.

  2) Na natureza (humana), nada se cria, nada se perde, tudo se transforma
O sofrimento físico escatológico turva a dialética do senhor e do escravo quando é compartilhado, quando é presencial.
Poucas páginas depois de Maximilien Aue ter esboçado a dialética do senhor escravo, ficamos sabendo que outro oficial da SS – ninguém menos que Adolf Eichmann – teria ido à Ucrânia para otimizar a logística de extermínio.
Quer dizer que os carrascos estão recobrando sua humanidade em face do paredón?
Quer dizer que altos índices de alcoolismo e suicídio vêm reduzindo a produtividade letal?
Assim determinou Adolf Eichmann:
– Ora, caro oficial Aue, coloquemos em prática a oração que Nosso Senhor, o judeu Jesus Cristo, nos ensinou: “Deixa que os mortos enterrem seus mortos” (Mateus, 8-22). Selecionemos a dedo os judeus de nossa confiança que substituirão os alemães no ofício do extermínio dos próprios judeus. [Tais judeus, é claro, logo serão substituídos e exterminados, mas a esperança da sobrevivência bem poderá ensiná-los a ser efetivamente pró-ativos em suas tarefas. (Verdadeiros funcionários do mês.)] Nossos oficiais arianos apenas supervisionarão a devida execução dos serviços e se postarão ao redor das valas segundo os parâmetros de salubridade determinados pelas normas de segurança do trabalho. Até que o programa de extermínio de débeis mentais por meio da asfixia com monóxido de carbono na carroceria de furgões e em hospitais de nossa rede credenciada, em Berlim, seja inteiramente expandido pela rede multinacional de câmaras de gás de nossa Endlösung (“Solução Final”), os oficiais da SS postados a uma distância moralmente segura das fossas de extermínio e guarnecidos por protetores auriculares só deverão disparar contra os elementos judaicos – vítimas e/ou carrascos – se eles exorbitarem de suas funções em meio à nossa dinâmica de produção. Quando o gás Zyklon B transformar os antigos carrascos em meros operadores das câmaras de gás, a morte industrialmente administrada não passará de uma antinomia físico-química. As portas e paredes espessas vedarão o choro e o ranger de dentes. Todas e cada uma das etapas serão executadas com os mais apurados profissionalismo e impessoalidade. A partir da triagem a discernir entre aqueles destinados a trabalhos forçados e aqueles destinados à cremação final, não deve haver nada fora do script. Nada de diálogos supérfluos, soslaios e contatos. Nossos oficiais devem ser equivalentes a placas de direção e instruções. Dos trens de gado para a triagem; da triagem para a lida e/ou para as câmaras de gás; nas câmaras de gás, remoção de dentes de ouro e últimos resquícios que, eventualmente, não tenham sido removidos pelas etapas prévias de triagem; das câmaras de gás aos fornos crematórios; dos fornos crematórios à terra, como adubo, e ao ar, como fuligem – e como prenúncio para os que ainda respiram. Na natureza humana, caro oficial Aue, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.


Capa da edição francesa de “As benevolentes”

3) A mão que já não fere é a mesma mão que pode curar?
E se nosso capitalismo tardio estiver parindo, cotidianamente, o aborto de Maximilien Aue e Adolf Eichmann?
No documentário Sob a névoa da guerra (2003), direção de Errol Morris, Paul Warfield Tibbets Jr., brigadeiro-general da Força Aérea dos Estados Unidos e comandante do avião que lançou a bomba atômica sobre Hiroshima no dia 6 de agosto de 1945, revela que havia muita curiosidade entre os militares, cientistas e políticos a respeito das consequências da explosão do Little Boy. Testes haviam sido realizados em locais ermos e desérticos dos EUA, mas todos estavam muito instigados para ver quais seriam os efeitos da liberação do cogumelo atômico em uma cidade real – ou melhor, em um laboratório a céu aberto.
Quando perguntam a Tibbets se ele sente algum tipo de culpa pelo aumento de temperatura da ordem de 5.500.000 (cinco milhões e quinhentos mil) graus centígrados e pela pulverização instântanea de 200.000 (duzentas mil) pessoas em Hiroshima – isso sem contabilizarmos as vítimas do collateral damage por causa da contaminação nuclear por anos e anos a fio –, o brigadeiro-general é categórico:
– Hiroshima e, posteriormente, Nagasaki salvaram a população japonesa da extinção. Quantos milhões de mortos ainda não haveria se o Little Boy e o Fat Man não coagissem o imperador Hirohito à capitulação incondicional?
Vale frisar, ademais, que o filho dileto Paul Warfield Tibbets Jr. batizou o avião que ejaculou o menininho Caim sobre Hiroshima com o nome de sua mãe, Enola Gay.
O oficial da SS Maximilien Aue espanca suas vítimas com sofreguidão e, no limite da selvageria em meio à lama, ao sangue e aos ganidos, redescobre o ímpeto pela compaixão diante do “outro” que se contorce, diante do mero corpo que, ao contrapor a mão como derradeiro escudo, mimetiza o animal trêmulo em sua sanha por sobrevivência. A mão que fere é a mesma mão que pode curar.
O brigadeiro-general da Força Aérea dos Estados Unidos Paul Warfield Tibbets Jr. está a quilômetros de distância de suas vítimas. Ele não precisa golpear, ele não precisa se sujar, ele não precisa (fazer) sofrer. Após o cumpra-se do presidente Harry Truman, o piloto do Enola Gay só precisa apertar um botão. E agora: a mão que já não fere é a mesma mão que pode curar?


4) A mão que brinca é a mesma mão que pode curar?
São Paulo, 19 de março de 2003. Canais de televisão aberta apresentam, ao vivo, a invasão promovida pelas tropas norte-americanas ao Iraque. Com a mesma visão noturna dos soldados, os telespectadores da CNN assistimos ao brilho verde-fosforescente dos foguetes que rasgam a noite de Bagdá enquanto o comentarista militar – e a canhestra tradução simultânea – disseca(m) o incomparável poderio bélico dos EUA. As tomadas cinematográficas panorâmicas não dissecam, no entanto, o choro e o ranger de dentes dos civis, os corpos retalhados entre e sob os escombros, os corpos cubistas a se confundirem com os escombros. (O ex-presidente Bill Clinton já sentenciara que, em tais circunstâncias, as mortes, ou, em termos precisos, as baixas civis constituem um collateral damage. Sendo assim, o show business transforma o suspiro cúmplice e impotente do telespectador na sublimação dos punhos inchados de Maximilien Aue.)
Ao meu lado no sofá e sumamente desapontado com o espetáculo da guerra, Vitinho, 9 anos, filho da dona da república de estudantes onde eu moro, só faz balançar a cabeça de lado a lado.
– Tsc-tsc-tsc, mas que droga! Então isso é que é a guerra? Então isso é que é a guerra de verdade? Mas que droga, tsc-tsc-tsc!
Sumamente curioso, interpelo o Little Boy sem mais:
– Ué, Vitinho, mas o que é que você esperava? O que que é uma droga aí?
Vitinho, verdadeiro comentarista militar mirim, começa a discorrer sobre a pouca realidade da guerra televisionada em comparação com seus jogos de video game. “Lá eu escolho a arma que eu quero – tem 12, Uzi, AK-47, taco de baseball, soco inglês, tem de tudo. Lá eu explodo escolas, creches e hospitais. Lá dá pra simular fuzilamentos e torturas. Lá dá pra simular estrupos – ‘Estupros, Vitinho!’, corrige a tempo a mãe/dona da república – e atropelamentos. Daí que essa guerra aí na televisão não é de nada. Lá no video game é que a coisa é real”.
Consta que, em uma entrevista concedida anos após o atentado de 11 de setembro, o cineasta Steven Spielberg teria opinado sobre a razão pela qual o ataque às Torres Gêmeas não teria dado à luz um grande clássico de Hollywood:
– Quando a realidade supera a ficção, já não é possível representá-la.
Qual seria a versão de Vitinho, nosso Little Boy, para a opinião de Steven Spielberg?
– Quando a ficção supera a realidade, já não é preciso reapresentá-la.
Após o Game Over, Vitinho só precisa apertar continue para reiniciar a guerra.
E agora: a mão que brinca é a mesma mão que pode curar?

5) Faroeste caboclo
São Paulo, 23 de junho de 2015.
A partir de imagens captadas junto ao helicóptero da PM, programas policiais da TV aberta mostram, ao vivo, a perseguição a dois suspeitos a bordo de uma moto pelas imediações da Marginal Pinheiros.
A retórica inflamada dos apresentadores eleva a tensão dos telespectadores – e os índices de audiência.
Súbito, o suspeito na garupa da moto arremessa um capacete contra a moto do policial, “que balança, mas não cai!”
Estamos, vale frisar, ao vivo e em cadeia nacional.
Após uma curva sinuosa, a moto dos suspeitos se desequilibra e acaba caindo junto a uma calçada – o policial vem logo atrás.
A cena a seguir poderia fazer parte de um filme de Quentin Tarantino. Mas, como já nos ensinou o Little Boy Vitinho, quando a ficção supera a realidade, basta transmiti-la ao vivo e em cadeia nacional.
A câmera junto ao helicóptero da PM nos mostra, quase em slow motion – e para deleite dos apresentadores e dos milhões de telespectadores –, a aproximação da moto policial em relação aos suspeitos estirados na calçada.
Assim que a moto policial pára, o close da câmera brasileira de Tarantino nos mostra a sequência vertiginosa de quatro – um, dois, três, quatro – tiros à queima-roupa.
Bang, bang, bang, bang! – disparam os apresentadores e os telespectadores conjuntamente.
Quiçá atordoado pelo desenlace do faroeste caboclo ao vivo e em cadeia nacional, um dos apresentadores, conhecido por sua retórica de repúdio aos direitos humanos, tem uma atitude inusitada:
– Olha lá, olha lá, olha lá, eu não sei, não, mas pode até ter havido desproporção aí, talvez a gente tenha visto uma execução – é verdade que os bandidos estavam agitando os braços, talvez eles estivessem armados, mas parecia que eles estavam com as mãos para o alto, que estavam se entregando… Olha lá, olha lá, olha lá, eu não sei, não, mas a gente pode ter visto uma execução!
Quando um defensor contumaz da pena de morte e dos “direitos humanos para humanos direitos” (i) atribui aos dois suspeitos estirados sobre a calçada o princípio de presunção da inocência e (ii) levanta a possibilidade de que tenha ocorrido uma execução, realidade e ficção se entrelaçam para transmitir, ao vivo e em cadeia nacional, a realidade ficcional de nossa sociopatologia.
Imediatamente após as declarações inusitadamente democráticas do apresentador do programa policial, seus seguidores e discípulos – entre os quais Vitinho, nosso outrora Little Boy – assim começam a se pronunciar no Twitter e nas demais redes sociais:
“Tá com peninha de bandido?! Leva pra casa, então!”
“Ficou mole agora!? Cadê a cadeia nacional?!”
“Agora é só oficializar a pena de morte. Larga o aço na vagabundagem – e em quem tem dó de bandido!”
O maestro já não precisa reger a orquestra.
A clava de Maximilien Aue, o botão de Paul Warfield Tibbets Jr. e o joystick do Little Boy Vitinho já se transformaram em nosso controle remoto.

Flávio Ricardo Vassoler é escritor e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP.

http://revistacult.uol.com.br/home/2016/01/as-benevolentes-da-literatura-ao-teatro/

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