Finnegans Wake / Finnícius Revém
Caetano Galindo
Em seu romance, Joyce se apropria dos mecanismos dos sonhos para criar uma pan-mitologia
O Finnegans Wake, mesmo entre os romances com
reputação de dificuldade e, digamos, exotismo, parece ter reservado um lugar
especial no imaginário literário. Poucos leitores terão enfrentado os desafios
do Ulysses. Desses, uma parcela ainda menor juntou as forças e o tempo
necessários para se dedicar ao romance a que Joyce precisou dedicar dezessete
anos de trabalho árduo.
O Finnegans Wake não é bolinho.
Joyce declarou mais de uma vez que, se o Ulysses
era o livro de um dia, era um livro do dia, seu último romance encamparia a
noite e suas regras: o mundo da alógica dos sonhos, onde tudo pode ser sem
parecer e parece ser sem poder. E essa tentativa ele levou, como sempre, às
últimas consequências. Nada se parece mais com o mecanismo dos sonhos (ou do
inconsciente) do que o Wake. Nada gera sonhos mais malucos num leitor do que um
dia de contato com o Wake. Posso jurar.
Mas essa abordagem acarretou também a maior parte
daquela complexidade tão miticamente famosa: como os sonhos, na verdade, o
Finnegans Wake não só é difícil de entender como questiona a nossa mesma ideia
de compreensão. Você pode viver o Wake, mas possivelmente nunca venha a
entendê-lo, no sentido normal do termo.
Normalmente nós pensamos que um livro difícil
pertence à categoria dos enigmas. Coisas que tendem a ceder ao esforço.
Dificuldades que pedem mais e mais e mais trabalho. Mas complexidades que se
desdobram, eventualmente.
Por mais que saibamos, e sabemos, que um grande
texto literário jamais se há de esgotar, sabemos também (ou temos essa ilusão)
que quanto mais estudarmos os textos mais difíceis da tradição literária, mais
entenderemos deles, mais nos aproximaremos de uma sensação de compreensão, de
familiaridade, de conhecimento.
Pois bem, o Finnegans Wake não é assim. Ponto.
Se é para manter a referência a tipos de
problemas, este livro é da natureza dos mistérios. Você pode contemplá-lo, pode
brincar com ele, mas vai ter que conviver com a noção de que a verdade final
nunca vai ser revelada. Vai ter que fazer as pazes com a ideia de que esse
jamais foi o objetivo do livro, ou do autor. Ele está ali para complicar; para
redobrar. Para infinitamente gerar novos sentidos, outras possibilidades; para
parecer mais oculto quanto mais você se esforce.
Ler o Finnegans Wake, portanto, é sempre aprender
a ler de novo. Aprender a fornecer ao verbo “ler” algum novo sentido
(usualmente pessoal e intransferível) que cubra também essa (singularíssima)
experiência.
Porque a tal tentativa de questionar a lucidez
diurna começa pela mesma linguagem, mais básico dos elementos. Joyce não era
homem de deixar tarefas pela metade. Se era para montar um sonho, então, ele,
como Freud, começou pela investigação dos primeiros tijolos. Aqui, as palavras
não significam fatos, coisas, ideias do mundo. Elas não têm referente. Leitor
nenhum, em momento algum, terá entendido, finalizado, compreendido um trecho
qualquer do Wake.
E o divertido é que Joyce encontrou a chave para
essa sua linguagem em permanente devir no mais maltratado, mais vilipendiado e
mais mal usado dos recursos literários: o trocadilho. O que ele percebeu foi
que mesmo por trás do mais reles trocadilho de poeta bêbado há uma semente de
caos e de potencialidade. Pois a palavra em trocadilho não reflete; ela
refrata.
O trocadilho singelo diz uma coisa, insinuando
uma segunda. O trocadilho sofisticado, shakespeariano, por exemplo, diz as duas
ao mesmo tempo, irresolvivelmente. O trocadilho joyceano, especialmente graças
ao emprego de mais de uma língua ao mesmo tempo (há quem já tenha contado mais
de 80 idiomas no Wake), é só potencialidade. Ele não diz coisa alguma
centralmente, mas abre portas para infindas leituras. E ao ensinar ao leitor
esse método, ele como que o autoriza a sempre procurar leituras novas, suas,
singulares.
É essa a máquina de geração de sentidos do Wake.
Uma linguagem em que os signos não apontam para o mundo, para fora da
linguagem, mas em que pedaços de signos, cacos, carregam fiapos de
potencialidades semânticas que, somados, geram como que um feixe de possibilidades,
sempre irredutível.
Um colidouscapo, nos seus próprios termos.
E é com esse instrumento que se vai contar a
estória de quem, afinal?
Bom, há coisas com que toda a crítica concorda, e
que todo leitor atento acaba percebendo. Há, digamos, “personagens”, mas daqui
a pouco você vai entender o porquê das aspas.
Eles seriam, centralmente, um sujeito que atende
por diversos nomes que normalmente têm as iniciais hce; sua esposa, que
igualmente muda de denominação, mas que se resume em alp; dois filhos gêmeos,
Jerry e Kevin, ou Shem e Shaun, depende, que são meio que a antítese um do
outro ou, quem sabe, apenas lados opostos do pai; e uma filha, Issy, Isolde,
Isobel… Além de várias outras figuras menores, que parecem transitar pelo bar
da família. Doze bêbados. Quatro velhos clientes. Uma faxineira, que muitas
vezes se chama Kate, e um zelador… e por aí vai.
James Joyce com sua esposa,
Nora, e os filhos Lucia e Giorgio, em 1924, logo após a publicação de “Ulysses”
(Foto: Beinecke Rare Book e Manuscript Library da Yale University)
Mas esse seria apenas o esqueleto desse núcleo.
Porque hce, por exemplo, pode ser qualquer figura masculina de autoridade.
Napoleão, digamos. Kate pode ser apenas a versão mais velha (e Issy a mais
nova) de alp. Issy pode se cindir em duas quando conversa com o espelho. Mais
ainda, hce é sempre montanha, Shaun é pedra, Shem é árvore, alp é rio e
Issy, nuvem/chuva (que, claro, vira rio). Aquele núcleo familiar se estilhaça
em miríades de relações, engloba toda e qualquer família de relações e, ao
mesmo tempo, se espraia sobre o mundo como natureza, como fundo vivo e
ambiente.
Em torno deles, aqueles doze clientes, por
exemplo, podem ser qualquer grupo de doze. Ou podem se identificar só por seu
amor pelas palavras terminadas em -ação. Quaisquer quatro homens que andem em
grupo (digamos, os evangelistas) serão aqueles velhos… e por aí vamos.
Os personagens do Wake tendem a se diluir uns nos
outros, como que se reduzindo ao essencial: um homem, uma mulher, e o tempo:
seus tempos.
Os personagens do Wake tendem também a se
expandir e abarcar a humanidade toda. Em todos os seus tempos. Wellington,
Jonathan Swift, Eva, papas, generais, Berkeley, o passado da Irlanda todo.
Os personagens do Wake podem ainda virar
paisagem, tempo, cena, cenário. Por vezes é só mesmo o aparecimento de uma
sequência de três palavras iniciadas por um hum ceu me que diz ao leitor que
hce não deve estar longe… É, na verdade, muito divertido ler certas cenas e
progressivamente ir percebendo que determinada figura é Issy, só porque se
chama Nuvoletta e chora em chuva…
E o que acontece com essas pessoas?
Numa escala pessoal? Parece que houve um “crime”,
que parece ser de natureza sexual/incestuosa. hce será julgado, condenado,
morto, enterrado e ressuscitará. Seu filho bonzinho, Shaun, tomará seu lugar.
Fundindo-se com ele (é essa a ressurreição?)?
Os irmãos cobiçarão a irmã. A mãe se verá
abandonada por todos ao envelhecer. É uma intriga familiar.
Mas tudo isso será encenado e reencenado sob os
mais variados disfarces, fazendo com que a batalha de Waterloo, uma discussão
filosófica, uma narrativa antropológica, um esquete cômico de rádio, uma antiga
piada, uma canção (centenas de canções), um trecho da Bíblia, uma invocação a
Alá, uma paródia literária, tudo se revista daqueles mesmos trajes, incorpore
aqueles mesmos traços centrais e se invista deles, ganhando vida com aquelas
pessoas e fazendo com que elas vivam em todos os tempos.
Porque eles, como se viu, não são só eles, e a
escala pessoal pode ser a menos adequada.
O Finnegans Wake, famosamente, empresta do
filósofo italiano Giambattista Vico a ideia de que a história se repete em
ciclos previsíveis, e assim faz do eterno-retorno seu mote principal. E bem
como hce pode ser todos os homens, sua queda e seu renascimento (como filho?)
são o único tema da saga dos homens sobre a terra.
Sempre.Todos.
They lived and laughed und loved end left.
Nasceram-serriram seamaram seeforam.
Todos.
Sempre.
Ao se apropriar radicalmente dos mecanismos do sonho e ao extrapolá-los e fechá-los em nó cerrado (o livro se abre com a conclusão da frase suspensa na última página), Joyce não terá escrito uma narrativa comum. Ele quis foi escrever a única narrativa, elementar, nuclear, explosiva, de todos os homens e mulheres que nascem e vivem e morrem e vão. E ficam.
O sonho, aqui, é de toda a humanidade.
E o sonho da humanidade, Freud já sabia, se chama
mitologia.
Uma panmitologia, nascida menos da compilação de
narrativas orais do mundo todo do que de um exaustivo trabalho que se assemelha
curiosamente ao do estruturalismo de um Lévi-Strauss, por exemplo. Joyce, como
ele, quis encontrar os mecanismos que embasam a urdidura dos mitos, quis
encontrar os mitologemas centrais e os procedimentos usuais pelos quais a
mitologia glosa o mundo, encerra em estória a história.
Mas não era descritiva a sua empresa. Fáustico,
ele quis sempre mais. Não apenas analisar essa mitopoese que pode ser tão
centralmente humana, mas se apropriar de tudo que nela houvesse para finalmente
criar um novo mito da humanidade, um mito de um homem, uma mulher, uma queda,
um amor e uma vida eternos.
Mais que um livro. Mais.
http://ht.ly/X1tm8
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