Entre a cruz e o caldeirão
Humberto Werneck
O Estado
de São Paulo
22 Março
2015
Dois pavores assombraram minha meninice, e mais ainda a puberdade, com
sua enxurrada de hormônios: a perspectiva de arder para todo o sempre - o que
me parecia um bocado de tempo - no fogo do Inferno, pecador que era; na outra
ponta, a possibilidade de que subitamente me viesse o tal "chamado de
Deus". Acredite: a primeira hipótese, em que estaria condenado às
borbulhas no caldeirão do Diabo, qual paio e linguiça em feijoada, me parecia
menos atemorizadora que a segunda. Tudo, rogava eu às potestades do Bem e do
Mal, menos receber uma convocação divina e virar beato!
Não queria ser um daqueles santinhos cuja vida irritantemente virtuosa
me chegava em relatos escritos e orais. Aquele menino francês, por exemplo - o
Guy de Fontgalland? -, que estava um dia em pleno futebol na escola quando um
padre interrompeu a pelada: o que vocês fariam se soubessem que iam morrer
daqui a pouco? Do goleiro ao ponta-esquerda, todos disseram que correriam ao
confessionário para uma enxaguada na alma encardida. Menos aquele lá: impávido,
declarou que continuaria a bater sua bolinha, com isso querendo dizer que
trazia a alma permanentemente nos trinques, lavada, passada e engomada para o
encontro a qualquer hora com o Senhor.
Em último caso, eu até topava submeter-me à lavanderia espiritual, mesmo
ao preço de abrir mão das atividades exatamente manuais a que então me
entregava com fervor pecaminoso. O problema é que ser santinho implicava morrer
cedo: nunca se viu santinho adulto. Santidade infantil matava? Parecia que sim.
O Guy de Fontgalland, por exemplo, tinha apenas 13 anos quando a longa mão de
Deus o recolheu. Idem o Domingo Savio, a Maria Goretti, o Antoninho Marmo, a
Odetinha, tantos outros, além do Francisco e da Jacinta, pastorzinhos de Fátima
a quem Nossa Senhora apareceu seguidas vezes na Cova da Iria.
Se ao menos eu pudesse ser como a Lúcia, companheira do Francisco e da
Jacinta, que morreu quase centenária... Melhor: São Francisco de Assis, que, na
juventude, antes de banhar-se na Fé, ainda sem passarinhada nos ombros,
chafurdou nos prazeres do mundo. Ou o poeta Murilo Mendes, que pintou e bordou
até converter-se, às portas dos 33 anos, em circunstância aliás impressionante:
à beira do caixão do amigo Ismael Nery. Mesmo São Pedro, tão pecador quanto
pescador, aprontou as dele, chegando a negar três vezes seu camarada Jesus
antes que o galo cantasse. Na minha pequenez liliputiana, eu mirava esses
gigantes e me programava: quando me fartar do corpo, vou para a alma!
Muitos, porém, são chamados, e bem poucos escolhidos. Duro e estreito é
o caminho que leva ao Reino do Céu, aprendi também, nas páginas de um caderno
que minha mãe encheu de desenhos, toscos mas expressivos, destinados a preparar
os filhos para a Primeira Comunhão. Quisera eu ter outra vez nas mãos esse
caderno que não catequizou apenas os 10 filhos da dona Wanda, mas também
sobrinhos, vizinhos e filhos de amigas. A lembrança dele me assombraria vida
afora, em especial a página em que, tendo provado da maçã, Adão e Eva veem
quebrar-se a escada que os ligava ao bem-bom do Paraíso. A imagem da escada
fraturada seria razão suficiente para alguém correr à terapia de ambulância e
com a sirene ligada. Terapia de grupo: você e um grupo de terapeutas.
Não tenho o caderno, mas contemplo uma foto em que estou de terninho
branco no dia da Primeira Comunhão. Usava-se, nessas ocasiões, ir posar num
estúdio fotográfico, de joelhos ante um Cristo de papelão que estendia a hóstia
inaugural, mas desse mico fui poupado: é num espaço aberto que estou. Pela
expressão, imagino que alguém me mandou sorrir para a máquina de tirar retrato,
como então se dizia, provavelmente esta câmera-caixote Mithra que tenho aqui ao
lado, a cujo piscante olho de metal devo praticamente todos os registros de
minha infância. Tenho 5 anos recém-feitos - e, tantas décadas depois, segue
sendo um mistério o fato de ter sido apresentado à Eucaristia nessa idade, e
não a partir dos 7, como todo mundo. Não tenho o aspecto de quem estivesse para
morrer, o que justificaria a antecipação do sacramento. Mas quem sabe meus
pais, contra várias evidências, vislumbraram em mim um caso de santidade
infantil? Gostaria de ter dado a eles essa alegria. O problema é que santo de
casa não faz milagre.
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,entre-a-cruz-e-o-caldeirao-imp-,1655522
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