Catadores de tralhas e sonhos
Milton Hatoum
O Estado de São Paulo
27 Março 2015
São centenas, talvez milhares os
catadores de papel nessa megalópole. Puxam ou empurram carroças e catam objetos
no lixo ou nas calçadas. É um museu de tralhas variadas: restos de materiais
para construção, papel, caixas de papelão, embalagens de inúmeros produtos, e
até mesmo objetos decorativos, alguns belos e antigos, desprezados por algum
herdeiro.
Há carroças exóticas, pintadas com
desenhos de figuras pop, seres mitológicos, nuvens, pássaros e vampiros. Em
Santana, vi uma carroça que lembrava um jinriquixá, só que maior do que o
veículo asiático.
Era puxada por um velho e transportava
uma avó e seu netinho, sentados em pilhas de papel. Perguntei ao carroceiro
quanto ele cobrava pelo transporte de passageiros.
"Depende... Pra perto daqui, cinco
reais. Pra fora do bairro, cobro 15 ou 12, depende do passageiro e do dia. Não
gasto gasolina, nem nada, é só força mesmo, amigo."
E haja força, leitor. Mas esse meio de
transporte é raro na metrópole. Quase todas as carroças só carregam
quinquilharias, uma e outra exibem aforismos, poemas, ditados. Vi carroças
líricas, políticas, filosóficas, cômicas, moralistas, anarquistas. Numa delas
se lia: "A verdade é uma desordem... Alguém tem dúvida?".
Noutra, pintada de verde e amarelo:
"Aqui só carrego bagunça, mas sou homem de paz". A que mais me chamou
atenção foi uma carroça linda, com uma pintura geométrica que lembra um quadro
de Mondrian. Na lateral, estava escrito:
"Carrego todo tipo de tralha, e
carrego um sonho dentro de mim".
Era uma carroça mineira, pois ostentava
uma bandeira de Minas. Conversei um pouco com esse carroceiro de São João
del-Rei. Acho que perdeu a desconfiança nas ruas paulistanas, pois não se esquivou
de mim, e ainda me mostrou uma luminária de aço, fabricada em Manchester
(1946). Esse objeto havia sido abandonado numa caixa de papelão e recolhido
pelo caprichoso carroceiro de Minas.
Especulei a origem da luminária e me
indaguei: quantas páginas esse belo objeto tinha iluminado em noites do
pós-guerra?
Depois o carroceiro abriu uma caixa e me
mostrou livros velhos, em língua alemã. Disse que tinha encontrado tudo numa
mesma calçada do Jardim Europa, e agora ia vender os livros para um sebo. Ele me
olhou e acrescentou:
"Ando solto, não gosto de ser botado
preso dentro de curral. A gente encontra cada coisa por aí... Só não encontra o
que a gente sonha".
Comprei a luminária desse filósofo
ambulante, mas não me interessei pelos livros, que talvez sejam relidos por
algum germanófilo de São Paulo.
Sei que não é fácil encontrar um sonho
nas ruas; mas encontrei carroceiros simpáticos e um assunto para escrever esta
crônica.
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,catadores-de-tralhas-e-sonhos-imp-,1658853
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