LEVANTA O BRAÇO QUEM AINDA
NÃO FOI ASSALTADO
Elias
Ribeiro Pinto
Nicolau julgou que já estava mais para o lado de
lá do muro da Soledade do que para o lado de cá, o dos mais ou menos vivos.
Publicado no Jornal Diário do Pará,
em 22-ago-2014
1
Outro dia, armei minha sala de leitura num boteco simpático numa rua do Reduto,
que seria um espaço razoável não fosse o cheiro de fritura e o som de uma TV
eternamente ligada.
2
Pedi uma cerveja, abri o livro e concentrei-me na leitura, entre um gole e
outro, cuidando para não, em vez de encher o copo, despejar o precioso líquido
no colo, tão absorvido seguia na leitura, sublinhando linhas (vou para o bar
munido de livros, lápis, jornal, revista), meneando a cabeça em humhums
reflexivos, provocando olhares esquivos do garçom, curioso diante de um
espécime do etilismo ilustrado. Não vão me ler “elitismo”, que aí já é discurso
da oposição. Ou situação, dependendo da geopolítica.
3
Estava no segundo copo, que corresponde mais ou menos a quatro páginas do livro
(à média de duas páginas por copo), quando me aparece um amigo de longa data,
que doravante chamarei de Nicolau. Entra no bar, senta mas não me acompanha num
copo. Ou melhor, pede um refrigerante. Parou há algum tempo com o álcool, antes
que este o obrigasse a pedir vistas do fígado, como um parlamentar pede vistas
de um projeto de lei.
4
Conversa vai, conversa vem, Nicolau fala de um assunto que faz ponto nas
esquinas (não tem nada a ver com a mais antiga das profissões), surge
inevitavelmente quando a gente se encontra diante das gôndolas de verduras e
legumes do supermercado (onde a minha geração se esbarra com mais facilidade do
que nas baladas) e turbina o zunzunzum em salões de beleza e costura em geral:
a multiplicação dos assaltos em Belém.
5
Dias atrás, me disse o Nicolau, ele seguia para uma reunião no Jurunas.
Resolveu ir a pé, descendo pela Quintino, depois Conselheiro, no rumo do bairro
do Rancho Não Posso Me Amofiná. No caminho, pressentiu que uma dupla, numa
bicicleta, estava muito mal-intencionada, disposta a lhe surrupiar os borós. Só
teve tempo e instinto de entrar na primeira porta que viu aberta e pedir
socorro aos moradores. Escapou por pouco. E teve até sorte de os moradores não
lhe porem para correr, imersos que todos estamos na histeria do medo daquele
próximo que se aproxima rápido demais, na suposição de que podemos ser a
próxima vítima.
6
Mas de um episódio anterior (e por isso já estava escolado, ou descolado, sei
lá), o Nicolau não escapou (quer dizer, até que ele escapou, como vocês poderão
ver). Ele embicou ali por trás do Cemitério da Soledade, na Doutor Moraes. No
que dobrou, se arrependeu, ainda mais quando viu duas pessoas caminhando ao seu
encontro, suspeitíssimas. Quis voltar, buscar ajuda, mas ali são escassas as
portas por onde se enfiar, tirando as covas há muito defuntas, morada das
visagens do Walcyr Monteiro.
7
Nicolau julgou que já estava mais para o lado de lá do muro da Soledade do que
para o lado de cá, o dos mais ou menos vivos, quando viu que um dos bandidos
sacava a arma e lhe dizia para não correr e passar a grana.
8
Entrou em pânico e fez tudo ao contrário do que se aconselha e do que ele mesmo
pretendia fazer. Em vez de erguer as mãos e franquear os bolsos, virou-se e,
enquanto apressava o passo, gritava que não tinha nada, não tinha nada. Chegou
a sentir o projétil varando-lhe a quinta vértebra, como atestaria um legista.
Ainda pôde escutar o comparsa gritando para o que estava armado: deixa o cara,
deixa o cara. Afinal, a oferta é grande.
9
Chegou em casa levitando no próprio desespero e agarrou-se com todos os santos
mais os que, beatificados, aguardam a santificação, enquanto tentava estancar a
tremedeira.
10
“Bem – disse, depois de me contar a cota que lhe cabe nesse latifúndio de
assaltos –, agora preciso ir, que hoje também tem reunião.” Abriu a carteira,
separou uns trocados – “para o fresquinho”, confidenciou, que a coragem para ir
andando, quede?
11
Nem quis lhe falar que os fresquinhos... Deixa pra lá. De minha parte, aprumei
minha lança quixotesca, o lápis bem apontado. Meu escudo, os livros. Assim,
desconfio, nem com todos os santos... Virei a página e pedi mais uma ao garçom.
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