O
torneiro e o poeta
Inspirado por Drummond, metalúrgico quer
viver dos seus versos
por Fábio Fujita
Há três anos, quem ousasse falar de poesia a Rodrigo Inácio
seria recebido com um olhar atravessado de reprovação. Era melhor que ficasse
longe, guardando um perímetro seguro do interlocutor. O jovem metalúrgico tinha
uma opinião fechada sobre quem gostava de versos e rimas. “Eu achava que poesia
era coisa de viado”, lembrou, sem tergiversar. Tudo mudou quando precisou
correr atrás de palavras definitivas para se dirigir a uma moça. Ciente das
próprias limitações lexicais, viu-se obrigado a consultar o grande repositório
da sabedoria universal e foi ao Google. No campo de busca, Inácio digitou
“Frases bonitas”. No primeiro clique, deparou-se com o poema “No meio do
caminho”, de Carlos Drummond de Andrade. Os versos que leu na tela não
contribuíram para melhorar seu juízo sobre os poetas. “O cara deve ser idiota
para escrever um negócio desses”, concluiu, no que foi a sua primeira crítica
literária.
Inácio não se deu
por derrotado. Por ironia, acabou gostando mesmo foi de um verso atribuído
erroneamente a Drummond na internet – aquele que diz que “A dor é inevitável, o
sofrimento é opcional”. Aquilo, sim, soava bem. Esmerou-se na escolha da fonte
e despachou o verso à sua bela, que respondeu dizendo ter achado
“interessante”. A reação foi suficientemente animadora para incentivar Inácio a
gastar mais Drummond para cima da moça – agora do legítimo, não do falsificado.
Num sebo, comprou O Amor Natural para dar-lhe de presente. Não sabia,
claro, que aquele era o livro de poemas eróticos do autor, no qual línguas
lambem pétalas vermelhas e o poeta suga e é sugado pelo amor. O rapaz se
envergonhou de lembrar do caso. “Você é um besta de me mandar um livro
daqueles”, foi a resposta que a menina lhe deu.
Para não repetir
gafes dessa magnitude, Inácio passou a estudar com afinco a obra de Drummond.
Ficou abismado quando leu “Memória” (“As coisas tangíveis/ Tornam-se
insensíveis/ À palma da mão/ Mas as coisas findas/ Muito mais que lindas,/
Essas ficarão”). Era muita frase bonita para um poema só. Inácio ficou de bem
com o autor mineiro. Mas continuou encucado com “No meio do caminho”. “Só
depois de passar um longo tempo amistoso com Drummond é que fui entender e
gostar desse poema”, explicou, em um notável exercício de revisão no qual
muitos críticos deveriam se espelhar.
De Drummond para
outros autores foi um pulo. Inácio continuou exigente. “Vinícius de Moraes era
muito mulherengo”, não demorou a constatar. Experimentou também um pouco de
prosa. Encantou-se com Clarice Lispector. Gostou de A
Hora da Estrela e A
Paixão Segundo G. H. “Acho
que, no fundo das palavras dela, há um certo tom de feitiçaria”, ponderou. “Ela
era bem doida. Tadinha, morreu de câncer.”
Aos 21 anos,
Inácio mora em Diadema, na periferia de São Paulo. Para ir e voltar do serviço,
no bairro do Ipiranga, na capital, pega seis conduções diárias, entre ônibus,
trólebus e trem. Estudou só até o 3º ano do ensino médio. Como preparador de
torno no ramo industrial, ganha dois salários mínimos. Mesmo assim, pagou 200
reais num raro disco de vinil intitulado Antologia Poética, em que Drummond
declama seus versos.
Sem receio de
melindrar seu ídolo, Inácio disse que queria comprar também o disco de poemas
de Cecília Meirelles. “Mas o dela está a 450”, lamentou, após pesquisar na
internet. A triste verdade é que os áureos dias de Drummond já se foram. “Hoje
gosto mais da Cecília”, admitiu o torneiro. “Não estou desmerecendo Drummond,
mas a Cecília, além de ser linda, muito linda, escreve muito bem”, derreteu-se.
Para o jovem
metalúrgico, o único problema com sua paixão pela poesia é não ter com quem
conversar. No serviço, há quem ache que Rodrigo Inácio é viado. “Mas eu não
ligo”, assegura. A única pessoa com quem fala sobre poemas é uma garota que conheceu
num ponto de ônibus. Ele puxou assunto quando viu que conhecia o livro que ela
lia – Pollyanna. “É sobre uma menina bobinha que acha que
tudo no mundo é belo”, explicou.
Com familiaridade
crescente com as letras, era natural que Inácio acabasse tendo vontade de
desenvolver sua própria produção poética. Começou a fazer poemas, alguns sobre
amores malfadados, outros inspirados pelas coisicas do cotidiano. “Já escrevi
um poema porque vi um pássaro voando.” Diz já ter pelo menos uns trinta. Tudo
na gaveta. “A crítica é inevitável, mas tenho medo de as pessoas acharem os
poemas tristes”, alegou para justificar o ineditismo. Mas o pior mesmo, disse o
torneiro, é quando alguém lê e não entende os versos. Poesia não é remédio para
precisar de bula.
O poeta Rodrigo
Inácio hesitou, mas criou coragem e mostrou alguns de seus escritos tirados de
uma pasta. Um poema chamado “Canção esmorecida” trata da insignificância da
existência e da passagem inexorável do tempo. “Apenas uma árvore triste que
sou/ Tão fria e tão silenciosa/ Que não sente o tempo passar/ Que não sabe se
ama ou gosta”, dizem os primeiros versos. A estrutura se repete nas estrofes
seguintes. A última delas é melancólica:
“Apenas uma
simples hera que sou/ Que olha o mundo inteiro passar/ Que observa cada rosto/
Mas que não sabe até quando irá durar.”
O uso de “hera” e
outros termos do registro mais erudito é herança daquele que um dia desdenhara.
“É Drummond.” Inácio gostaria de trocar o torno pela pena. Chegou a pedir a uma
amiga, que é professora, aulas particulares de metrificação. Como pagamento,
está disposto a oferecer o próprio disco do Drummond, o seu maior tesouro.
Daqui a um ou
dois anos, pretende largar a metalurgia e começar a trabalhar com tecnologia da
informação, uma carreira que paga bem e lhe permitirá conciliar a sonhada
faculdade de letras. Para isso, será inevitável estudar ciências exatas para o
vestibular. Inácio não vê essa perspectiva com serenidade. “O cara que
descobriu a matemática, mano, tem que morrer de madeirada”, queixou-se.
Vai ser uma pedra no seu caminho.
Revista Piauí, Ed. 60, setembro 2012.
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