Revista Piauí - textos
O cérebro do meu pai
Minha relutância em usar a
expressão mal de Alzheimer era uma forma de proteger a especificidade de Earl
Franzen da generalidade da moléstia. Doenças têm sintomas; sintomas remetem às
bases orgânicas de tudo o que somos. Remetem ao cérebro como um pedaço de carne
por JONATHAN FRANZEN
Eis aqui uma recordação. Numa nublada manhã de
fevereiro de 1996, recebi pelo correio um pacote do Valentine’s Day enviado
por minha mãe, de Saint Louis, que continha um romântico cartão cor-de-rosa,
duas barras grandes de Mr. Goodbar, um coraçãozinho vermelho e barato pendurado
num cordão e uma cópia do relatório do neuropatologista sobre a autópsia do
cérebro do meu pai.
Lembro o brilho da luz daquela acinzentada manhã de
inverno. Lembro ter deixado na sala o chocolate, o cartão e o enfeite, e levado
o relatório para o quarto. Sentei para lê-lo. O cérebro(começava
assim) pesava 1 255 gramas e mostrava atrofia parassagital com
alargamento sulcal. Lembro de ter convertido gramas em libras e libras
num pedaço de carne embrulhado naquelas embalagens de supermercado. Lembro ter
enfiado o relatório no envelope sem lê-lo até o fim.
Alguns anos antes de morrer, meu pai participara de
uma pesquisa sobre memória e envelhecimento patrocinada pela Universidade de
Washington, que oferecia, como uma das vantagens, uma autópsia grátis do
cérebro. Suspeito que o estudo oferecesse outros benefícios de tratamento e
monitoração, o que levou minha mãe, que adora todo tipo de promoção, a insistir
que meu pai se apresentasse como voluntário. Também foi provavelmente para
economizar que ela aproveitou o pacote do Valentine’s Day para
me mandar o resultado da autópsia. Com isso ela não precisou gastar 32 centavos
de dólar com selos.
Minhas
lembranças mais nítidas daquela manhã de fevereiro são visuais e espaciais: o
papel amarelo do Mr. Goodbar, meu deslocamento da sala para o quarto, a luz do
final da manhã de uma estação tão distante do solstício de inverno quanto da
primavera. Mas estou ciente de que mesmo essas memórias não são confiáveis. De
acordo com as mais recentes teorias, baseadas em muitas pesquisas psicológicas
e neurológicas das últimas décadas, o cérebro não é um álbum no qual memórias
são guardadas discretamente como fotografias imutáveis. Uma memória é, em vez
disso, de acordo com uma frase do psicólogo Daniel L. Schacter, uma
“constelação temporária” de atividade – uma certa excitação dos circuitos
neurais que aglutina um conjunto de imagens sensoriais e informações semânticas
numa sensação momentânea de um todo relembrado. Essas imagens e informações
raras vezes são propriedade exclusiva de uma memória particular. Na realidade,
mesmo enquanto minha experiência se desdobrava naquela manhã, meu cérebro se
fiava em categorias preexistentes de “vermelho”, “coração” e “Mr. Goodbar”; o
céu cinzento em minha janela era o mesmo de milhares de outras manhãs de
inverno; e eu tinha milhões de neurônios dedicados a formar uma imagem de minha
mãe – a sovinice com o correio, a ligação sentimental com os filhos, a
irritação remanescente em relação a meu pai, a fantástica falta de tato etc.
Minha memória daquela manhã consiste, portanto, em um conjunto de conexões
neurais entre as regiões apropriadas do cérebro e uma predisposição da
constelação para acender – química e eletricamente – quando qualquer parte do
circuito é estimulada. Diga “Mr. Goodbar” e me peça para fazer uma livre
associação, e, se eu não disser “Diane Keaton”, certamente direi “autópsia do
cérebro”.
Minha memória do Valentine’s Day funcionaria
dessa maneira mesmo se estivesse vindo à tona pela primeira vez. Mas o fato é
que eu tenho relembrado aquela manhã de fevereiro incontáveis vezes. Relatei a
história a meus irmãos. Contei o Incidente da Mãe Escandalosa para os amigos
que gostam desse tipo de coisa. Falei disso até, tenho vergonha de dizer, com
pessoas que mal conheço. Cada sucessiva recordação e relato reforçam a
constelação de imagens e conhecimentos que constituem a memória. No nível
celular, segundo neurocientistas, estou fixando cada vez mais a memória,
fortalecendo as conexões dendríticas entre seus componentes, estimulando a
ignição daquele conjunto específico de sinapses. Uma das grandes virtudes
adaptativas do nosso cérebro, a característica que faz nossa massa cinzenta
muito mais inteligente que qualquer máquina já inventada (o confuso HD do meu
laptop ou uma World Wide Web que insiste em me lembrar, nos mínimos detalhes,
de um site da série Beverly Hills 90210 atualizado pela última
vez em 20 de novembro de 1998), é nossa capacidade de esquecer quase tudo o que
acontece conosco. Guardo memórias basicamente genéricas do passado (um ano
passado na Espanha; várias idas a restaurantes indianos na East Sixth Street),
mas relativamente poucas lembranças de episódios específicos. Tendo a revisitar
essas lembranças retidas e, portanto, fortalecê-las. Elas se tornam
literalmente – morfológica e eletroquimicamente – parte da arquitetura do meu
cérebro.
Esse
modelo de memória, que esbocei aqui num resumo de leigo, estimula o cientista
amador que há em mim. Ele parece verdadeiro para a imprecisão e a riqueza das
minhas próprias memórias, e inspira admiração com sua imagem de redes neurais
que se coordenam sem esforço, de maneira maciçamente paralela, para criar minha
percepção espectral e meu sentido extraordinariamente vigoroso de
individualidade. Eu o acho adorável e pós-moderno. O cérebro humano é uma rede
de centenas de bilhões de neurônios, talvez até 2 trilhões, com trilhões de
axônios e dendritos trocando quatrilhões de mensagens em pelo menos cinquenta
diferentes transmissores químicos. O órgão com o qual observamos e apreendemos
o universo é, sem dúvida, o mais complexo objeto que conhecemos.
E ainda assim é também uma massa informe de carne.
Em algum momento, talvez mais tarde naquele mesmo Valentine’s Day,
forcei-me a ler até o fim o relatório patológico. Havia uma “Descrição
Microscópica” do cérebro do meu pai:
Seções dos córtices cerebrais frontal, parietal,
occipital e temporal revelaram várias placas senis, de um tipo proeminentemente
difuso, com mínima quantidade de emaranhados neurofibrilares. Corpos de Lewy
foram facilmente detectados no material corado com H&E. A amídala
demonstrou placas, emaranhados ocasionais e discreta perda de neurônios.
Na nota que havíamos publicado na imprensa local
nove meses antes, minha mãe insistiu que disséssemos que meu pai tinha morrido
“depois de uma longa doença”. Ela gostava da formalidade e das
reticências da frase, mas era difícil não perceber também sua queixa, a ênfase
em longa. A identificação de placas senis no cérebro do meu pai serviu para
confirmar, como só uma autópsia poderia fazer, o fato com o qual ela lutou
diariamente por muitos anos: como milhões de outros americanos, meu pai tivera
o mal de Alzheimer.
Era essa
a sua doença. Era essa também, poderíamos argumentar, a sua história. Mas
deixe-me contá-la.
Alzheimer é um caso clássico de doença com “início
traiçoeiro”. Uma vez que até pessoas saudáveis se tornam mais esquecidas à
medida que envelhecem, não há como identificar a primeira memória vitimada pela
doença. O problema foi especialmente exasperante no caso do meu pai, que não
apenas era depressivo, reservado e ligeiramente surdo, mas também tomava
remédios fortes para outras enfermidades. Por muito tempo foi possível superar
uma série de dificuldades, de seus non sequiturs à deficiência
auditiva, do esquecimento à depressão, das alucinações aos seus remédios; e nós
as superamos.
Minhas
memórias dos anos iniciais do declínio de meu pai são vívidas, mas não sobre
ele. Na realidade, espanta-me que eu seja tão pródigo em minhas próprias
memórias e que meus pais ocupem uma posição periférica nelas. Mas eu vivia
longe de casa naqueles anos. Minha informação vinha sobretudo das queixas de
minha mãe sobre meu pai, e eu ouvia essas reclamações com ceticismo; ela se
lamentou comigo durante quase toda a minha vida.
O casamento dos meus pais, digo sem medo de errar,
não chegou a ser feliz. Eles ficaram juntos em nome das crianças e por não
acreditar na esperança ilusória de que o divórcio os faria mais felizes.
Enquanto meu pai trabalhou, eles desfrutaram autonomia em seus respectivos
domínios da casa e do local de trabalho, mas depois que ele se aposentou, em
1981, aos 66 anos, os dois começaram a encenar, 24 horas por dia, Entre
Quatro Paredes, na casa confortavelmente mobiliada de subúrbio. Eu chegava
para uma breve visita como se fosse uma força de paz da ONU à qual cada lado
apresentava ardentemente seu argumento contra o outro.
Ao contrário de minha mãe, que foi hospitalizada
umas trinta vezes na vida, meu pai gozou de uma saúde perfeita até se
aposentar. Seus pais e tios tinham vivido até os 80, 90 anos, e ele, Earl
Franzen, tinha a expectativa de chegar aos 90 “para ver”, como gostava de
dizer, “como as coisas iriam ficar”. (Lear, anagrama de seu nome, imaginou seus
últimos anos em termos semelhantes: ficaria ouvindo as “notícias da corte” com
Cordélia, para saber “quem perde e quem ganha, quem está dentro e quem está
fora”.) Meu pai não tinha hobbies e seus poucos prazeres se limitavam às
refeições, aos filhos e ao jogo de bridge, mas tinha um interesse narrativo na
vida. Assistia a quantidades inacreditáveis de noticiários de tevê. Sua ambição
para quando envelhecesse era acompanhar, por quanto tempo fosse possível, os
desdobramentos das histórias da nação e de seus filhos.
A
passividade de sua ambição, a mesmice de seus dias, tendia a torná-lo invisível
para mim. Desde os primeiros anos de seu declínio mental uma cena ficou gravada
em minha memória: o esforço em vão que ele fazia para calcular a gorjeta nos
restaurantes.
Felizmente,
minha mãe escrevia cartas muito bem. A passividade de meu pai, que eu
considerava lamentável, mas não da minha conta, era fonte de decepção para ela.
No outono de 1989 – uma época em que, de acordo com suas cartas, meu pai ainda
jogava golfe e fazia consertos de alguma envergadura em casa –, os termos de
suas queixas continuavam estritamente pessoais:
É extremamente difícil viver com alguém tão infeliz
quando a gente sabe que é a causa principal dessa infelicidade. Décadas atrás,
quando Papai me disse que não acreditava no amor (que sexo é uma “armadilha”) e
que não tinha nascido para ser “feliz”, eu deveria ter sido esperta o bastante
para perceber que não havia esperança de uma relação satisfatória para mim. Mas
eu estava atarefada e envolvida com meus filhos e amigos, e acho que disse a
mim mesma, como Scarlett O’Hara, que iria “me preocupar com isso amanhã”.
Essa
carta data de um período durante o qual o teatro de guerra dos meus pais se
fixara no tema da deficiência auditiva dele. Minha mãe argumentava que era
falta de consideração ele não usar um aparelho para surdez; meu pai reclamava
que era falta de consideração as pessoas não “falarem mais alto”. A batalha
terminou com uma vitória de Pirro de minha mãe: ele comprou um aparelho, mas se
recusava a usá-lo. Mais uma vez, minha mãe construiu uma história moral sobre
sua “teimosia”, “vaidade” e “derrotismo”; mas é difícil não suspeitar, em
retrospecto, que seu distúrbio auditivo já estivesse servindo para camuflar um
transtorno mais sério.
Uma carta
de janeiro de 1990 traz o primeiro registro escrito de minha mãe sobre esse
problema:
Na semana passada, um dia ele não tomou o remédio
do café da manhã para poder fazer o teste de capacidade motora na Universidade
de Washington, onde participa da pesquisa sobre Memória e Envelhecimento.
Naquela noite eu acordei com o barulho do barbeador elétrico, olhei o relógio e
ele estava no banheiro se barbeando às duas e meia da madrugada.
Em poucos
meses meu pai estava cometendo tantos erros que minha mãe teve que pensar em
outras explicações:
Ou ele está estressado ou não está se concentrando
ou está tendo alguma deterioração mental, mas o fato é que alguns incidentes
nos últimos tempos realmente me preocuparam. Ele sempre deixa o carro com a
porta aberta e as luzes acesas, e por duas vezes em uma semana tivemos que
chamar a seguradora para recarregar a bateria (agora afixei uns avisos na
garagem que aparentemente estão ajudando). [...] Realmente não gosto da ideia
de deixá-lo sozinho em casa por muito tempo.
O temor
de minha mãe de deixá-lo sozinho aumentou ao longo daquele ano. Seu joelho
direito estava desgastado e, como já pusera um pino de aço na perna devido a
uma fratura anterior, ela se defrontava com a perspectiva de se submeter a uma
cirurgia complicada seguida de um prolongado período de recuperação e
reabilitação. Suas cartas do final de 1990 e início de 1991 remoem a dúvida
angustiante sobre ir adiante com a cirurgia e, em caso afirmativo, como lidar
com meu pai.
Se ele passasse a noite sozinho em casa enquanto eu
estivesse no hospital, eu ficaria muito nervosa por não estar por perto quando
ele deixasse as torneiras abertas, esquecesse o forno ligado, as luzes acesas
etc. Eu confirmo e reconfirmo a maioria das coisas o máximo que posso, mas
mesmo assim nossa vida está uma bagunça, e o pior é seu ressentimento por causa
da minha intrusão – “Não se meta em meus negócios!!!” Ele não aceita ou não
percebe que eu só quero ajudar, e isso é o pior de tudo para mim.
Naquela ocasião,
eu tinha acabado de terminar meu segundo romance, e então me ofereci para ficar
com meu pai enquanto minha mãe fosse operada. Para não ferir o orgulho dele,
nós dois combinamos fazer de conta que eu estaria lá por ela, e não por ele. O
esquisito, no entanto, é que isso tinha um fundo de verdade. A caracterização
que minha mãe fazia da incapacidade de meu pai era constrangedora, mas não
menos do que a imagem de alarmista rabugenta que meu pai pintava dela. Fui para
Saint Louis porque, para ela, a incapacidade dele era absolutamente real; uma
vez lá, me comportei como se, para mim, não fosse absolutamente dessa forma.
Bem como
minha mãe temia, ela ficou hospitalizada por quase cinco semanas. É estranho
que, embora nunca tivesse morado sozinho com meu pai por tanto tempo e nunca
mais fosse morar, não me lembro de quase nada específico sobre a estada com
ele; fiquei com a impressão genérica de que talvez ele estivesse meio quieto,
mas, fora isso, completamente normal. Aqui, poderíamos pensar que há uma contradição
com os relatos anteriores de minha mãe. E no entanto não tenho lembrança de ter
ficado incomodado com a contradição. Tenho a cópia de uma carta que escrevi de
Saint Louis para um amigo. Nela, menciono que a medicação de meu pai tinha sido
ajustada e que agora estava tudo bem.
Talvez eu quisesse que isso fosse verdade? Sim, de
certa maneira. Mas uma das características básicas do cérebro é sua capacidade
de construir um todo a partir de fragmentos. Embora tenhamos um ponto cego
literal em nosso campo de visão, onde o nervo ótico se liga à retina, o cérebro
inexoravelmente registra um mundo inconsútil ao nosso redor. Captamos um começo
de palavra e a ouvimos inteira. Vemos rostos expressivos em tapeçarias com
motivos florais; estamos constantemente preenchendo lacunas. Da mesma maneira,
acho que eu estava inclinado a dar algum sentido aos silêncios e às ausências
mentais de meu pai, insistindo em vê-lo como o velho e bom Earl Franzen. Ainda
precisava que ele fosse um personagem na minha história sobre mim mesmo. Na
carta ao meu amigo, descrevi um ensaio matinal da Sinfônica de Saint Louis, ao
qual minha mãe insistiu para que meu pai e eu fôssemos só para ela não
desperdiçar as entradas gratuitas que conseguira. Depois da primeira metade da
sessão, na qual a muito jovem Midori martelou oConcerto
para violino de Sibelius, meu pai ficou irrequieto na poltrona com uma
aflita agitação geriátrica. “Então”, disse, “vamos embora.” Eu sabia que de
nada adiantaria sugerir que ficássemos para ouvir na sequência uma sinfonia de
Charles Ives, mas eu o odiava pelo filistinismo que identificava nele. Na volta
para casa, ele fez um comentário sobre Midori e Sibelius. “Não entendo essa
música”, disse. “O que eles fazem – decoram?”
Mais
tarde naquela primavera, meu pai teve o diagnóstico de câncer de próstata, um
tumor pequeno e de crescimento lento. Os médicos recomendaram que não fizesse
tratamento, mas ele insistiu em se submeter a sessões de radiação. Mais ou
menos ciente de seu próprio estado mental, meu pai ficou apavorado que algo
estivesse terrivelmente errado com ele: que, afinal, não chegaria aos 90 anos.
Minha mãe, cujo joelho continuava a apresentar sangramentos internos seis meses
depois da operação, não tinha muita paciência para o que considerava hipocondria
dele. Em setembro de 1991, ela escreveu:
Estou aliviada que Papai tenha começado a terapia
de radiação. Com isso, ele é forçado a sair de casa todos os dias [inserir,
aqui, um sorriso de satisfação] – um grande avanço. Ele chegou a um ponto em
que estava tão nervoso, tão preocupado, tão deprimido que eu sabia que ele
tinha que tomar uma decisão. Na verdade, está tão sedentário (fica feliz por
não fazer nada) que tem tempo de sobra para se preocupar e pensar nele mesmo –
ele precisa se distrair!... Cada vez mais estou convencida de que as maiores
qualidades que podemos ter são (1) uma atitude positiva e (2) senso de humor –
queria tanto que Papai fosse assim.
Seguiram-se
alguns meses de relativo otimismo. O câncer foi erradicado, o joelho da minha
mãe finalmente melhorou e sua confiança natural voltou a se manifestar nas
cartas. Contou que meu pai tinha obtido o primeiro lugar num campeonato de
bridge: “Depois que passou aquele estado confuso, e com um pouco mais de arrojo
no jogo, ele até que está indo bem, e isso é a única coisa que realmente o
distrai (a única coisa que o deixa acordado!).” Mas a ansiedade do meu pai
sobre sua saúde não diminuiu; tinha dores de estômago e estava convencido de
que eram causadas por câncer. Aos poucos, o foco da história que minha mãe
estava me contando migrou do aspecto pessoal e moral para o psiquiátrico. “Nos
últimos seis meses perdemos tantos amigos que ficamos abalados – e isso, tenho
certeza, se deveu em parte à ansiedade e à depressão de Papai”, escreveu em
fevereiro de 1992. A carta continuava:
O médico de Papai, o dr. Rouse, concluiu o que eu
já tinha percebido sobre a dor de estômago de Papai (ele descartou todas as
possibilidades clínicas). Papai é (1) ansioso demais, (2) está muito deprimido
e eu espero que o dr. Rouse dê a ele um antidepressivo. Eu sei que o caso dele
requer uma ajuda... Houve coisas perturbadoras e estressantes em nossas vidas
no último ano, sei disso muito bem, mas a condição mental de Papai o está
afetando fisicamente, e se ele não procurar uma terapia (sugerida pelo dr.
Weiss) talvez aceite as pílulas, ou o que quer que seja, para ansiedade e
depressão.
Durante
um tempo, as palavras “ansiedade e depressão” estavam sempre presentes nas
cartas. Por um curto período, o Prozac pareceu animar um pouco meu pai, mas os
efeitos não duraram muito. Finalmente, em julho de 1992, para minha surpresa,
ele concordou em se consultar com um psiquiatra.
Meu pai
sempre foi extremamente cético em relação à psiquiatria. Encarava a terapia
como uma invasão de privacidade, a saúde mental como questão de autodisciplina,
e a insistência de minha mãe para que “falasse com alguém” como um ato de
agressão – pequenas granadas de culpa pela infelicidade deles como casal. O
fato de ter voluntariamente ido ao psiquiatra dava a medida de seu desespero.
Em
outubro, quando passei por Saint Louis a caminho da Itália, perguntei-lhe sobre
as sessões com o médico. Ele fez um gesto com as mãos indicando que eram
inúteis. “Ele é muito competente”, disse. “Mas acho que desistiu de mim.”
A ideia de que alguém desistisse de meu pai era
algo que eu não podia suportar. Da Itália enviei ao psiquiatra uma carta de
três páginas pedindo que reconsiderasse a decisão, mas enquanto eu escrevia a
situação em casa se deteriorava. “Odeio ter que te contar isso”, minha mãe
escreveu numa carta enviada por fax para a Itália, “mas Papai piorou muito. Um
remédio receitado por um urologista para um problema urinário, em combinação
com o medicamento para depressão e ansiedade, provocou alucinações etc., e foi
horrível.” Num fim de semana com meu tio Erv, em Indiana, meu pai, fora de seu
ambiente, viveu uma noite insana que culminou com meu tio gritando com ele: “Earl,
pelo amor de Deus, sou seu irmão, Erv, nós dormíamos na mesma cama!” De
volta a Saint Louis, meu pai começou a destratar uma senhora aposentada, a sra.
Pryble, que minha mãe contratara para ficar com ele duas manhãs por semana
enquanto ela se desincumbia de pequenos afazeres. Ele não atinava por que
alguém deveria cuidar dele, e mesmo que achasse que precisava de cuidados
entendia que essa não seria a tarefa de uma estranha, mas de sua mulher. Tinha
se tornado uma figura que lembrava aqueles andarilhos que cochilam de dia e
causam tumulto durante a madrugada.
O que se
seguiu foi uma melancólica visita de férias em que minha mulher e eu finalmente
intercedemos e pusemos minha mãe em contato com uma assistente social
geriátrica, e minha mãe pediu encarecidamente que minha mulher e eu
arranjássemos atividades para meu pai durante o dia a fim de que ele
conseguisse dormir à noite sem incidentes psicóticos; e meu pai tinha o olhar
perdido diante da lareira ou contava histórias sinistras de sua infância,
enquanto minha mãe choramingava a respeito da despesa, uma quantia proibitiva,
das sessões com a assistente social. Mas, mesmo nessa época, até onde me
lembro, ninguém nunca falou em “demência”. Em todas as cartas que minha mãe me
escreveu, a palavra “Alzheimer” apareceu uma única vez, em referência a uma
alemã idosa para quem eu trabalhei quando adolescente.
Lembro-me
de minha desconfiança e aborrecimento, quinze anos atrás, quando o termo “mal
de Alzheimer” começou a ser popularizado. Parecia-me mais um exemplo da
medicalização da experiência humana, o mais recente verbete do infindável
glossário da vitimização. Quando minha mãe me escreveu sobre minha antiga
patroa, respondi: “Você está descrevendo uma pessoa que se parece com a velha
Erika, só que um pouco pior, e isso não é exatamente o mal de Alzheimer, certo?
Está na moda falar em Alzheimer. Todo mês perco uns minutos me lamentando pelo
fato de uma doença mental comum ser diagnosticada equivocadamente como mal de
Alzheimer.”
Olhando em retrospecto, hoje, quando perco uns
minutos todo mês me lamentando pelo hipócrita de 30 anos que eu era, percebo
minha relutância em usar a expressão Alzheimer para meu pai como forma de
proteger a especificidade de Earl Franzen da generalidade da moléstia assim
chamada. Doenças têm sintomas; sintomas remetem às bases orgânicas de tudo o
que somos. Remetem ao cérebro como um pedaço de carne. E, em vez de reconhecer
isso, que, sim, o cérebro é carne, tenho a visão obliterada por um ponto cego
onde insiro histórias que enfatizam aspectos espirituais da individualidade.
Ver meu atormentado pai como um conjunto de sintomas orgânicos seria também um
convite para compreender o saudável Earl Franzen (e o meu
saudável eu) em termos sintomáticos – reduzindo nossas tão caras personalidades
a umconjunto finito de coordenadas neuroquímicas. Quem iria querer uma história
de vida assim?
Mesmo agora, fico um pouco incomodado quando reúno
informações sobre o mal de Alzheimer. Por exemplo, a leitura do livro The
Forgetting: Alzheimer’s: Portrait of an Epidemic, de David Shenk, é um
lembrete de que quando meu pai se perdia pela vizinhança, ou se esquecia de dar
a descarga no banheiro, ele apresentava sintomas idênticos àqueles milhões de
pessoas igualmente atormentadas. É possível que tal companhia represente algum
conforto, mas lamento que certos erros do meu pai fossem esvaziados de significado
pessoal, como a confusão entre minha mãe e a mãe dela, que na época me chamava
a atenção como algo singular e órfico do qual eu derivava toda sorte
de novos insights relevantes sobre o casamento de meus pais.
Minha noção sobre individualidade particular se mostrou ilusória.
A demênciasenil existe desde que se
desenvolveram os meios de registrá-la. Enquanto as pessoas viviam, na média,
pouco tempo, e a velhice era algo raro, a senilidade era considerada um
subproduto do envelhecimento – talvez resultado da esclerose das artérias
cerebrais. O jovem neuropatologista alemão Alois Alzheimer acreditava estar
testemunhando uma variedade inteiramente nova de doenças mentais quando, em
1901, passou a atender em sua clínica uma mulher de 51 anos, Auguste D., que
apresentava bizarra variação de humor e grave perda de memória, e que, nos
exames iniciais do dr. Alzheimer, deu respostas problemáticas a estas questões:
– Qual o seu nome?
– Auguste.
– Sobrenome?
– Auguste.
– Qual o nome do seu marido?
– Auguste.
Quando Auguste morreu numa instituição, quatro anos
mais tarde, Alzheimer se valeu dos avanços então recentes em microscopia e
coloração de tecidos e descobriu, em imagens do tecido do cérebro dela, a
incrível dupla patologia da doença: incontáveis bolas de aparência grudenta, as
“placas”, e inúmeros neurônios mergulhados em “emaranhados” neurofibrilares. Os
achados de Alzheimer despertaram o interesse de seu protetor e decano da
psiquiatria alemã, Emil Kraepelin, que estava engajado numa feroz disputa
científica com Sigmund Freud sobre as teorias psicoliterárias deste último em
relação às doenças mentais. Para Kraepelin, as placas de Alzheimer e os
emaranhados davam sustentação clínica à sua alegação de que a doença mental é
fundamentalmente orgânica. Em seu Handbook of Psychiatry, chamou a
moléstia de Auguste D. deMorbus Alzheimer.
Seis
décadas depois da autópsia de Auguste D. realizada por Alois Alzheimer, mesmo
com os avanços da medicina preventiva nos países desenvolvidos, que aumentaram
a expectativa de vida em quinze anos, o mal de Alzheimer ainda era visto como
algo tão raro na medicina quanto o mal de Huntington. David Shenk conta a
história de uma neuropatologista americana chamada Meta Neumann que, no início
dos anos 50, realizou autópsias nos cérebros de 210 vítimas de demência senil e
encontrou poucas artérias esclerosadas e muitas placas e emaranhados. Aí estava
a evidência pétrea de que o mal de Alzheimer era muito mais comum do que se
imaginava; mas o trabalho de Neumann aparentemente não sensibilizou ninguém.
“Acharam que ela estava falando bobagem”, disse seu marido.
A
comunidade científica simplesmente não estava pronta para considerar que a
demência senil pudesse ser mais que uma consequência natural do
envelhecimento. No início dos anos 50 não havia a categoria “idosos”, as
comunidades de aposentados do Cinturão do Sol no sul dos Estados Unidos, a
Associação dos AposentadosAmericanos, a tradição dos restaurantes baratos
de servir o jantar mais cedo; e o pensamento científico refletia essas realidades
sociais. Só nos anos 70, as condições se tornariam maduras para a
reinterpretação da demência senil. Nessa época, como diz Shenk, “tantas pessoas
estavam vivendo mais tempo que a senilidade não parecia mais algo normal ou
aceitável”. O Congresso aprovou a lei de pesquisa sobre envelhecimento em 1974
e criou o Instituto Nacional do Envelhecimento, cujos recursos logo se
multiplicaram. No final dos anos 80, no auge da minha implicância com o termo
clínico e sua repentina ubiquidade, o mal de Alzheimer já era considerado tão
importante, em termos médicos e sociais, quanto as doenças coronarianas ou o
câncer – e os fundos de financiamento para as pesquisas demonstravam isso.
O que
aconteceu com o mal de Alzheimer nos anos 70 e 80 foi simplesmente uma mudança
paradigmática do diagnóstico. O número de novos casos realmente disparava.
Enquanto cada vez menos pessoas morriam de ataque cardíaco ou de infecções,
mais e mais indivíduos sobreviviam para desenvolver alguma demência. Pacientes
de Alzheimer em casas de repouso vivem tanto quanto outros pacientes, a um
custo individual de pelo menos 40 mil dólares por ano; até serem internados,
eles causam transtornos na vida dos familiares encarregados de cuidar deles. O
número de americanos com a doença já é de 5 milhões e pode aumentar para 15
milhões em 2050.
Uma vez
que muito dinheiro é despendido em doenças crônicas, os laboratórios médicos
investem pesadamente em pesquisas próprias para obter drogas para o mal de
Alzheimer, e também financiam pesquisas de cientistas. Mas, uma vez que o
conhecimento sobre a doença ainda é obscuro (o cérebro não é um local muito
mais acessível do que o centro da Terra ou os limites do universo), ninguém tem
certeza sobre quais caminhos levariam a um tratamento efetivo da doença. O aparecimento
precoce do mal de Alzheimer em geral está associado à genética, mas a doença em
idosos não se deve a um único fator. E no entanto a etiologia da doença é óbvia
– tem a aparência de uma inflamação do cérebro e parece ser também um
desequilíbrio neuroquímico, além de uma doença relacionada com uma deposição
anormal de proteína, que às vezes ataca o coração e os rins.
Os tratamentos que estão sendo pesquisados
atualmente visam a todos esses aspectos. Pessoas que tomam medicamentos para
reduzir o colesterol ou anti-inflamatórios não esteroides (como aspirina e
Celebra) podem ter menor risco de desenvolver o mal de Alzheimer. Aqueles que
já têm a doença às vezes podem se beneficiar, durante um tempo, de remédios que
elevam o nível de acetilcolina ou de antioxidantes como a vitamina E. Há uma
intensa disputa entre os laboratórios pela primazia na obtenção de inibidores
de enzimas que eliminem as proteínas anômalas. No front imunológico,
pesquisadores da Elan Pharmaceuticals apresentaram a ideia aparentemente
estranha de uma vacina para o mal de Alzheimer – que ensina o sistema
imunológico a produzir anticorpos que atacam e destroem as placas amiloides no
cérebro –, e descobriram que a vacina não apenas previne a formação de placas
em camundongos transgênicos, mas também reverte a deterioração mental dos
animais já afetados por elas[1].
No geral, a sensação é que, se temos menos de 50 anos, podemos ter uma chance
razoável de contar com um medicamento eficiente quando precisarmos dele. Mas
nunca se sabe: vinte anos atrás, muitos cientistas que pesquisavam o câncer
previam a cura da doença em vinte anos.
David Shenk, que com menos de 50 anos está numa
posição confortável, argumenta em The Forgetting que a cura da
demência senil pode não ser uma bênção completa. Afirma, por exemplo, que uma
notável peculiaridade da doença é que suas vítimas em geral sofrem cada vez
menos com o passar do tempo. Lidar com um paciente de Alzheimer exige
repetições estafantes exatamente porque ele perdeu o equipamento cerebral para
experimentar qualquer coisa como repetição. Shenk cita pacientes que falam em
“delícias do esquecimento” e que relatam ganhos em prazeres sensoriais, pois
não têm passado e vivem num eterno Agora. Se nossa memória imediata está
comprometida, não nos lembramos, ao nos inclinarmos para sentir o perfume de
uma rosa, que nos inclinamos para sentir o perfume da mesma rosa a manhã
inteira.
Como o psiquiatra
Barry Reisberg observou pela primeira vez há vinte anos, o declínio de um
paciente de Alzheimer espelha o avesso do desenvolvimento neurológico de uma
criança. As primeiras habilidades que uma criança desenvolve – levantar a
cabeça (entre 1 e 3 meses), sorrir (2 a 4 meses), sentar-se sem ajuda (6 a 10
meses) – são as últimas habilidades que um paciente de Alzheimer perde.
O desenvolvimento do cérebro na criança é consolidado pelo processo
chamado de mielinização, em que as conexões axônicas entre os neurônios são
gradualmente fortalecidas pelos revestimentos da substância gordurosa mielina.
Aparentemente, uma vez que as últimas regiões do cérebro da criança que
amadurecem são as menos mielinizadas, elas são as regiões mais vulneráveis ao
mal de Alzheimer. O hipocampo, que processa as memórias imediatas em
memórias remotas, é muito lento em mielinizar. É por isso que somos incapazes
de formar memórias episódicas permanentes antes de 3 ou 4 anos de idade, e é
por isso que o hipocampo é onde as placas e os emaranhados de Alzheimer surgem
em primeiro lugar. Daí a aparição espectral de pacientes em estágios
intermediários que continuam capazes de andar e se alimentar mesmo que esqueçam
tudo a cada hora. A criança interior se exterioriza. Neurologicamente, estamos
diante de uma criança de 1 ano.
Embora
Shenk tente corajosamente ver uma dádiva no infantilismo dos pacientes de
Alzheimer, livres que estão de responsabilidades e focados no Agora, tenho
certeza de que a última coisa que meu pai queria era tornar-se criança. As
histórias que ele me contava de sua infância, no norte de Minnesota, eram
sobretudo (condizentes com as lembranças de um depressivo) terríveis: pai
violento, mãe injusta, tarefas infindáveis, ambientes de pobreza, traições
familiares, acidentes medonhos. Ele me disse mais de uma vez, depois de se
aposentar, que seu grande prazer na vida tinha sido trabalhar, já adulto, na
companhia de homens que valorizavam suas habilidades. Meu pai levava uma vida
totalmente privada, e para ele privacidade queria dizer manter o vergonhoso
conteúdo de sua vida interior longe das vistas do público. Poderia ter havido
pior doença para ele que o mal de Alzheimer? Em seus estágios iniciais, a
doença dissolvia as conexões pessoais que o haviam resgatado do fundo do poço
de seu isolamento depressivo. Nos últimos estágios, tirou dele a proteção da
maturidade, os meios de esconder a criança dentro de si. Eu preferiria que ele
tivesse tido um ataque cardíaco.
Ainda assim, por mais frágil que seja a defesa de
Shenk dos aspectos mais auspiciosos do mal de Alzheimer, é difícil descartar o
ponto central de seu argumento: a senilidade não apenas apaga o significado das
coisas, como também é fonte de significado. Para minha mãe, os danos do
Alzheimer amplificaram e reverteram os duradouros padrões de seu casamento. Meu
pai sempre se recusara a se abrir com ela, e agora, cada vez mais, ele não
podia mais se abrir. Para minha mãe, ele continuou a ser o mesmo Earl
Franzen que cochilava no escritório sem ouvi-la. Ela, paradoxalmente, foi quem
aos poucos perdeu sua individualidade; morava com um homem que a confundia com
sua mãe, esquecido de tudo o que um dia soube sobre ela, e que finalmente
deixou de pronunciar seu nome. Ele, que sempre insistira em ser o cabeça do
casal, o tomador de decisões, o adulto protetor da mulher infantilizada, não
podia evitar se comportar como uma criança. Agora, as explosões inconvenientes
eram dele, e não de minha mãe. Agora, ela o levava pela cidade da mesma maneira
que um dia fez comigo e meus irmãos. Tarefa por tarefa, ela assumiu o controle
da vida dele. E, portanto, embora a “longa doença” de meu pai fosse um pesado
fardo e um desapontamento, era também uma oportunidade para que ela aos poucos
conquistasse uma autonomia que nunca teve e ajustasse as contas com o passado.
Quanto a
mim, uma vez que aceitei o alcance da doença, a simples duração do Alzheimer me
forçou a um contato mais próximo com minha mãe, que foi inesperadamente
bem-vindo. Aprendi, e isso talvez não tivesse acontecido se a situação fosse
outra, que podia contar de verdade com meus irmãos e que eles podiam contar
comigo. E, o que é estranho, embora sempre tivesse prezado minha inteligência,
sanidade e consciência, descobri que observar meu pai perder os três atributos
me fez ter menos medo de que eu mesmo um dia viesse a perdê-los. Tornei-me no
geral um pouco menos medroso. Uma porta ruim se abriu, e descobri que era capaz
de atravessá-la.
A porta em questão estava no 4º
andar do Barnes Hospital, em Saint Louis. Cerca de seis semanas depois que
minha mulher e eu pusemos minha mãe em contato com a assistente social e
voltamos para a costa leste, meu irmão mais velho e os médicos de meu pai o
convenceram a ir ao hospital para fazer testes. A ideia era limpar sua
corrente sanguínea de todos os remédios para saber com o que realmente estavam
lidando. Minha mãe o ajudou a dar entrada no hospital e passou a tarde inteira
com ele, acomodando-o no quarto. Ele estava do mesmo jeito de sempre, meio
ausente, mas naquela noite, ao sair para jantar em casa, ela recebeu
telefonemas do hospital, primeiro do meu pai, que exigia a presença dela para
retirá-lo “deste hotel”, e depois das enfermeiras, que relataram que ele estava
ficando agressivo. Quando voltou ao hospital pela manhã, ela o encontrou fora
de si – delirando e profundamente desorientado.
Viajei de
novo para Saint Louis uma semana mais tarde. Minha mãe me levou direto do
aeroporto para o hospital. Enquanto ela conversava com as enfermeiras, fui ao
quarto do meu pai e o vi na cama, bem desperto. Eu disse oi. Ele fez um gesto
frenético para que eu me calasse e me chamou para perto, indicando o
travesseiro. Inclinei-me em sua direção e ele me pediu, num sussurro, para
falar baixo porque “eles” estavam “escutando”. Perguntei quem eram “eles”. Ele
não disse nada, mas seus olhos esquadrinharam o quarto com medo, como se
tivesse visto “eles” em todo lugar e estivesse perplexo porque “eles” tinham
desaparecido. Quando minha mãe surgiu na porta, confidenciou-me, numa voz ainda
mais baixa: “Acho que eles pegaram sua mãe.”
Minhas lembranças da semana seguinte são embaçadas,
salvo por dois episódios, daqueles que mudam uma vida. Eu ia ao hospital todos
os dias e ficava sentado com meu pai por quantas horas aguentasse. Em nenhum
momento ele encadeou duas sentenças com coerência. Em retrospecto, a lembrança
que me parece mais significativa é bastante peculiar. Ela é iluminada por uma
luzinha artificial de efeito onírico, se passa num quarto de hospital cuja
disposição dos móveis amontoados não me é familiar, e me volta sempre sem as
referências cronológicas que em geral caracterizam minhas memórias. Não tenho
nem certeza de que essa lembrança data da primeira semana em que vi meu pai no
hospital. E no entanto sei que não estou me lembrando de um sonho. Todas as
memórias, dizem os neurocientistas, são memórias de memórias, embora em geral
não se tenha essa sensação. Pois aqui está uma exceção. Lembro-me da lembrança:
meu pai na cama, minha mãe a seu lado, eu em pé perto da porta. Estávamos tendo
uma difícil conversa em família, provavelmente sobre para onde levar meu pai
depois que ele saísse do hospital. Uma conversa que meu pai, mesmo sem entender
quase nada, está odiando. Finalmente, como se estivesse cheio daquele absurdo,
ele grita exaltado: “Eu sempre amei sua mãe. Sempre.”
E minha mãe cobre o rosto com as mãos e chora.
Essa foi
a única vez que ouvi meu pai dizer que a amava. Tenho certeza de que a memória
é legítima porque o episódio me pareceu imensamente significativo mesmo na
época, e então eu o descrevi para minha mulher e meus irmãos e incorporei a
narrativa na história que contava a mim mesmo sobre meus pais. Anos mais tarde,
quando minha mãe insistiu que meu pai nunca dissera que a amava, nem uma única
vez, perguntei se ela se lembrava daquele dia no hospital. Repeti o que ele
havia dito, e ela meneou a cabeça em dúvida. “Talvez”, disse. “Talvez ele tenha
dito que me amava. Não me lembro.”
Meus
irmãos e eu nos revezamos em ir a Saint Louis a cada poucos meses. Meu pai
sempre me recebeu com alegria. Sua vida na clínica parecia um interminável e
complicado sonho habitado por fantasias do passado e por outros internos com
doenças no cérebro; as enfermeiras, menos que personagens do sonho, eram
verdadeiras invasoras. Ao contrário dos pacientes, que às vezes choramingavam
como bebês e em seguida sorriam quando lhes davam sorvetes, nunca vi meu pai
chorar, e tomava sorvete com o prazer de um adulto. Ele me fez vários acenos
significativos com a cabeça e sorria com melancolia enquanto me contava
fragmentos de uma história sem sentido, que eu ouvia em silêncio, concordando,
como se estivesse entendendo. O assunto que consistentemente se aproximava
de um discurso coerente era seu desejo de ser levado “deste hotel” e sua
incapacidade de compreender por que não podia viver num pequeno apartamento e
deixar que minha mãe cuidasse dele.
No Dia de
Ação de Graças daquele ano, minha mãe, minha mulher e eu o tiramos da clínica e
o levamos para casa numa cadeira de rodas em minha caminhonete Volvo. Ele não
havia estado lá desde que deixara de morar na casa, dez meses antes. Se minha
mãe esperava que ele demonstrasse um prazer gratificante, ficou desapontada;
àquela altura, uma mudança de endereço não fazia mais diferença para meu pai do
que para uma criança de 1 ano de idade. Sentamo-nos em frente à lareira e, sem
pensar, levados apenas por um lamentável hábito, fotografamos um homem que, se
não soubesse mais nada, parecia saber que projetava uma figura triste demais
para aparecer em fotografias. Hoje tais imagens me parecem horríveis: meu pai
na cadeira de rodas como uma marionete sem cordas, o olhar fixo e alienado, a
boca entreaberta, os óculos manchados pelo flash e quase caindo do nariz; o
rosto de minha mãe, a máscara de um desespero razoavelmente contido; e minha
mulher e eu exibindo sorrisos grotescos ao nos aproximarmos para tocar meu pai.
Durante o jantar minha mãe protegeu meu pai com uma toalha de banho e cortou
sua porção de peru em pequenos pedaços. Ela não parava de lhe perguntar se ele
estava feliz por jantar em casa no Dia de Ação de Graças. Ele respondia com
silêncio, com um movimento de olhos, às vezes com um ligeiro arquear de
ombros. Meus irmãos telefonaram para desejar um feliz Dia de Ação de Graças; e
aí, repentinamente, ele sorriu e, com uma voz cordial, respondeu a perguntas
simples e lhes agradeceu por terem ligado.
Essa
parte da noite foi tipicamente de Alzheimer. Como as crianças aprendem
habilidades sociais muito cedo, uma capacidade para gestos de cortesia e frases
de uma delicadeza vaga sobrevivem em muitos pacientes de Alzheimer bem depois
de já terem perdido a memória. Não foi assim tão digno de nota que meu pai
tivesse sido (mais ou menos) capaz de trocar palavras com meus irmãos. Mas o
que aconteceu em seguida, depois do jantar, do lado de fora da clínica, foi.
Enquanto minha mulher corria atrás de uma cadeira geriátrica, meu pai sentou-se
ao meu lado e observou o portal da instituição em que estava prestes a entrar.
“Melhor não sair”, disse-me numa voz clara e forte, “do que ter que voltar.” Não
era uma frase vaga; dizia respeito diretamente ao que estava acontecendo, e
sugeria enfaticamente uma consciência de sua difícil situação e sua conexão com
o passado e o futuro. Ele pedia para não ter que enfrentar a dor de ser de novo
levado em direção à consciência e à memória. E, com certeza, na manhã seguinte
ao Dia de Ação de Graças, e pelo restante de nossa visita, estava mais alienado
que nunca, suas palavras eram uma embrulhada de sílabas aleatórias, seu corpo
um grande mangual de agitação.
Para David
Shenk, a mais importante das “janelas de significação” proporcionadas pelo mal
de Alzheimer é o parcelamento da morte. Shenk equipara a doença a um prisma que
refrata a morte num espectro de partes que, de outra maneira, seriam
inseparáveis – morte da autonomia, morte da memória, morte da autoconsciência,
morte da personalidade, morte do corpo – e endossa um dos tropos mais comuns do
mal de Alzheimer: o de que a tristeza e o horror típicos da doença derivam da
perda da individualidade, o que ocorre bem antes da morte do corpo.
Isso me
parece correto. Quando o coração do meu pai parou de bater, eu já estava em
luto por ele havia anos. E, ainda assim, quando penso em sua história, me
pergunto se as várias mortes podem ser realmente separadas, e se a memória e a
consciência têm, afinal, importância garantida nos domínios da individualidade.
Não paro de procurar algum sentido nos dois anos que se seguiram à perda do seu
suposto “eu”, e estou sempre encontrando algo.
Impressiona-me, acima de tudo, a aparente
persistência de sua vontade. É impossível, para mim, não acreditar
que ele se empenhava em resgatar um pouco da autodisciplina remanescente, uma
reserva de força sob os sustentáculos da consciência e da memória, quando se
aprumava a ponto de falar o que falou em frente à clínica. Da mesma maneira,
creio que seu colapso na manhã seguinte, como acontecera na primeira noite
sozinho no hospital, tenha significado o abandono dessa vontade, uma
desistência, uma aceitação da loucura diante de uma emoção insuportável. Embora
possamos determinar o início de seu declínio (consciência plena e sanidade) e o
fim (esquecimento e morte), seu cérebro não era apenas um computador possuído
de fúria assassina que o matava gradual e inexoravelmente.
Ele conseguiu se manter bem por mais tempo, acho,
do que indicavam seus recursos neurônicos. Então sofreu uma deterioração mais
intensa do que sua patologia previa, e escolheu ficar lá embaixo 99% do tempo.
O que ele quis (nos primeiros anos, lucidez; nos últimos, não
resistir à doença) era essencial para o que ele era. E o que eu quero
(histórias do cérebro de meu pai que não sejam sobre um pedaço de carne) é
essencial para o que escolho lembrar e narrar.
Uma das
histórias que vim a contar, enquanto tentava me perdoar por minha longa
cegueira sobre sua condição, é que ele estava decidido a esconder a doença e,
por muito tempo, conservou suficiente força de caráter para obter tal intento.
Minha mãe jurava que ele fazia isso. Ele não podia enganar a mulher com quem
vivia, por mais que tentasse, mas era capaz de se dominar se algum filho
estivesse na cidade ou diante das visitas, em casa. A verdadeira solução para o
enigma da minha estada com ele durante a operação de minha mãe provavelmente
tem menos a ver com minha cegueira do que com o esforço extra que ele fez para
camuflar sua condição.
Depois
daquele lamentável Dia de Ação de Graças, quando soubemos que ele nunca mais
voltaria para casa, ajudei minha mãe a arrumar a escrivaninha dele. (É o tipo
de liberdade que tomamos com escrivaninhas de crianças ou de mortos.) Numa das
gavetas encontramos evidências de seu esforço para não esquecer. Havia um maço
de tiras de papel, nas quais escreveu os endereços de seus filhos, um endereço
em cada tira, o mesmo endereço em várias. Em outra estava anotada a data de
nascimento de seus filhos mais velhos – “BOB 13/1/48” e “TOM 15/10/50” –, e
então, tentando se lembrar do dia em que nasci (17 de agosto de 1959), apagou o
mês e o dia e tentou adivinhar, com base nas datas dos meus irmãos: “JON 13/10/49.”
É de se
considerar, também, o que acredito serem as últimas palavras que ele me
dirigiu três meses antes de morrer. Por uns dois dias cumpri a obrigação de
fazer visitas de uma hora e meia à clínica e o ouvi resmungar sobre minha mãe e
especular sobre certos pequenos objetos que sempre via nas mangas de seu suéter
e nos joelhos das calças. Ele não estava diferente da última manhã em que
passei por lá ou quando o levei de cadeira de rodas para o quarto e lhe disse
que eu iria viajar de volta para casa. Mas, quando ele elevou o rosto em
direção ao meu – mais uma vez, subitamente, sua voz era clara e forte –, disse:
“Obrigado por ter vindo. Gostei muito que você arranjou um tempo para me ver.”
Frases
feitas? Uma abertura para sua individualidade fundamental? Parece que eu não
tinha muita escolha sobre em qual versão acreditar.
Ao contar com as cartas de minha
mãe para reconstruir a desintegração de meu pai, fiquei sem documentação a
partir de 1992, quando ela e eu passamos a nos falar por telefone e, salvo por
pequenas notas, paramos de nos escrever. A descrição da escrita como “muleta da
memória”, de Platão, em Fedro, me parece totalmente acurada: eu não
poderia contar uma história vívida de meu pai sem aquelas cartas. Mas, onde
Platão lamenta o declínio da tradição oral e a atrofia da memória induzida pela
escrita, eu, no outro extremo da Era da Palavra Escrita, fico impressionado com
o vigor e a confiabilidade das palavras no papel. As cartas de minha mãe são
mais verdadeiras e completas que minhas memórias autocentradas e tendenciosas;
ela está mais viva para mim na frase escrita “Ele PRECISA se distrair!” do que
em horas de videoteipe ou pilhas de fotografias.
O desejo
de tornar perenes as histórias, registrando-as em palavras indeléveis, me
parece aparentado da convicção de que somos maiores que nossa biologia.
Pergunto-me se hoje nossa suscetibilidade cultural aos encantos do materialismo
– nosso desejo cada vez maior de entender a psicologia como química, a
identidade como genética e o comportamento como produto de exigências já
saciadas do processo de evolução humana – não está, no limite, relacionada ao
ressurgimento pós-moderno da oralidade e ao eclipse da palavra escrita: nossos
incessantes telefonemas, nossos e-mails efêmeros, nossa devoção inabalável à
telinha.
Já disse
que meu pai também escrevia cartas? Quase sempre datilografadas e precedidas de
um pedido de desculpas por erros ortográficos, elas não eram tão frequentes
quanto as da minha mãe. Uma das últimas data de dezembro de 1987:
Esta época do ano é sempre difícil para mim. Fico
constrangido com todo mundo dando presentes, e eu adoraria encontrar coisas
para as pessoas, mas a falta de imaginação me impede de achar as coisas certas.
Tenho medo de comprar coisas do tamanho errado ou da cor errada ou coisas de
que as pessoas não precisam, e fico imaginando a chateação de ter que voltar à
loja e trocar. Gosto de comprar ferramentas, mas Bob me chamou a atenção em
relação a essa categoria de presente quando numa ocasião eu dei a ele um belo
martelo bem balanceado e ele comentou que esse era o segundo ou terceiro
martelo e que ele não precisa de mais nenhum, muito obrigado. E tem também o
problema do presente da sua mãe. Ela é tão sentimental que fico condoído de não
lhe dar algo refinado, mas ela tem acesso irrestrito à minha conta no banco.
Falei para ela para comprar alguma coisa e dizer que fui eu que dei, assim ela
poderia comentar depois do Natal: “Olha só o que eu ganhei do meu marido!” Mas
ela não quer saber dessa farsa. Então eu sofro nessa época.
Em 1989, quando seu poder de
concentração minguava com a crescente “ansiedade e depressão”, meu pai deixou
de escrever cartas. Minha mãe e eu, portanto, ficamos surpresos por encontrar,
na mesma gaveta onde ele deixara aquele maço de folhas com endereços e datas de
nascimento, uma carta não enviada escrita em 22 de janeiro de 1993 –
inacreditavelmente tardia, coisa de semanas antes do seu colapso final. A carta
estava num envelope endereçado a meu sobrinho Nick, que, aos 6 anos, tinha
começado a escrever cartas. Possivelmente, meu pai ficou com vergonha de mandar
uma carta sabendo que não era totalmente coerente; o mais provável, dado o
estado do seu hipocampo, é que ele simplesmente tenha esquecido. A carta, que
para mim se tornou um emblema do heroico e invisível esforço da vontade, foi
redigida a lápis em letras miúdas que escapam das linhas horizontais:
Querido Nick,
Recebemos sua carta uns dois dias atrás e ficamos
contentes de saber que você vai indo bem na escola, principalmente em
matemática. É importante escrever bem, porque a capacidade de trocar ideias
influenciará o uso que uma área do conhecimento pode fazer em relação às ideias
de outra área. Seus parentes mais próximos são, na maioria, bons escritores, o
que diminui minha responsabilidade. Eu devia ter aprendido a escrever melhor,
mas é tão fácil dizer: Deixe isso com a Mamãe.
Sei que não é muito fácil decifrar minha letra, mas
é que eu tenho um problema com os nervos nas minhas pernas e uns tremores nas
mãos. Olhando para o que escrevi, acho que você vai ter dificuldade em
entender, mas com um pouco de sorte eu posso chegar ao seu nível.
O tempo deu uma virada, estava frio e úmido, agora
está seco com um céu bem azul. Espero que fique assim. Continue fazendo um bom
trabalho.
Eu te amo, Vovô
P.S. Obrigado pelos presentes.
O coração
e os pulmões de meu pai eram bem fortes, e minha mãe se preparava para
continuar enfrentando a situação por mais uns dois ou três anos quando, um dia
em abril de 1995, ele parou de comer. Talvez estivesse tendo dificuldade para
engolir, ou talvez, com o pouco que lhe sobrava de vontade própria, tivesse
decidido acabar com aquela indesejável segunda infância.
Sua
pressão arterial máxima estava em sete, tão baixa que mal dava para ser
detectada, quando viajei a Saint Louis. Mais uma vez, minha mãe me levou direto
do aeroporto para a clínica. Eu o encontrei enfraquecido, deitado de lado sob
um lençol fino, com a respiração curta, os olhos semiabertos. Os músculos
estavam debilitados, mas o rosto quase sem rugas aparentava calma e serenidade,
e as mãos, que não haviam mudado em nada, pareciam grandes em comparação com o
restante do corpo. Não há como saber se reconheceu minha voz, mas depois de
alguns minutos que eu estava ali sua pressão subiu para doze por nove. Fiquei
preocupado na época, e isso até hoje me incomoda, por ter tornado as coisas
mais difíceis para ele com a minha presença: ele parecia pronto para morrer,
mas tinha pudor de desempenhar um ato tão privado ou decepcionante na frente de
um filho.
Minha mãe e eu nada podíamos fazer a não ser olhar
e esperar, um dormia enquanto o outro ficava sentado em vigília. Hora após hora
meu pai permanecia imóvel, cada vez mais próximo da morte; mas quando bocejou,
aquele era o seu bocejo. E, da mesma maneira, seu corpo, debilitado
como estava, ainda era radiantemente seu. Apesar de as partes
sobreviventes de sua individualidade serem cada vez menores e mais
fragmentadas, eu continuava vendo um todo. Eu ainda amava, específica e
individualmente, o homem que bocejava naquela cama. E como eu poderia não criar
histórias a partir desse amor – histórias de um homem cujo desejo continuou
intacto o suficiente para desviar o rosto quando tentei limpar sua boca com um
pedaço de algodão umedecido? Vou para o túmulo insistindo que meu pai estava
determinado a morrer, e a morrer da melhor maneira que pudesse, em seus
próprios termos.
De nossa
parte, não queríamos que estivesse sozinho quando morresse. Talvez estivéssemos
errados em pensar assim, talvez tudo o que ele estivesse esperando era ficar
sozinho para morrer. Ainda assim, na sexta noite que passei em Saint Louis,
fiquei acordado a madrugada inteira lendo de ponta a ponta um romance, enquanto
ele permanecia deitado, respirando e dando grandes bocejos. Uma enfermeira
entrou, auscultou seus pulmões e comentou que ele provavelmente nunca tinha
sido um fumante. Sugeriu que eu fosse para casa descansar, e disse que mandaria
uma profissional específica, do andar de baixo, para ficar com ele.
Evidentemente, a clínica tinha uma enfermeira com um dom especial que, depois
de os parentes voltarem para casa, persuadia os moribundos de que eles podiam
morrer. Não aceitei a proposta e desempenhei eu mesmo esse papel. Inclinei-me
sobre meu pai, que exalava um leve cheiro de ácido acético, mas estava asseado
e aquecido. Eu me identifiquei e lhe disse que, o que quer que ele precisasse
fazer, por mim estava bem, que ele não precisaria resistir, podia fazer o que
fosse preciso.
No final
daquela tarde, uma ventania de início de verão varreu Saint Louis. Eu estava
batendo uns ovos quando minha mãe ligou da clínica e disse para eu me apressar.
Não sei por que achei que tinha tempo de sobra, e comi os ovos com torrada
antes de sair de casa, e no estacionamento da clínica fiquei sentado no carro
ouvindo no rádio uma música do Blues Traveler que fazia sucesso. Nenhuma outra
canção jamais me deixou tão feliz. Os grandes carvalhos brancos em torno da
clínica balançavam e vergavam com o vento. Eu me sentia como se pudesse voar de
felicidade.
Mas ele
ainda não tinha morrido. A tempestade desabou sobre a clínica à noite,
houve queda de energia, e minha mãe e eu permanecemos sentados no escuro,
distantes que estávamos das luzes de emergência. Não gosto de lembrar como
fiquei impaciente para que meu pai parasse de respirar, como estava pronto para
me liberar dele. Não gosto de imaginar o que ele podia sentir deitado lá, que
forma, pálida ou vívida, sensorial ou emocional, teria o esforço que devia
estar fazendo em sua cabeça. Mas também não queria acreditar que não houvesse
nada.
Por volta
das dez horas, minha mãe e eu conversávamos com uma enfermeira na porta do
quarto, pouco depois de as luzes terem voltado, quando notei que ele levou as
mãos em direção à garganta. Eu disse: “Acho que está acontecendo alguma coisa.”
Era a respiração agônica: o queixo se ergueu para tentar levar ar aos pulmões
depois que o coração parou de bater. Ele parecia fazer com a cabeça, devagar e
profundamente, um sinal afirmativo. E então, nada.
Depois
que lhe demos um beijo de despedida e que assinamos os formulários que
autorizavam a autópsia do cérebro, depois que andamos de carro pelas ruas
alagadas, minha mãe sentou-se na nossa cozinha e, ela que não costuma beber,
aceitou uma dose de Jack Daniel’s puro que lhe ofereci. “Agora eu percebo”, ela
disse, “que quando uma pessoa está morta ela está realmente morta.” Não havia
como discordar. Mas no ritmo arrastado do Alzheimer, meu pai não estava mais
morto agora que duas horas antes, ou duas semanas, ou dois meses. Simplesmente
perdemos a última das partes com a qual podíamos imaginar um todo vivo. Não
haverá novas memórias dele. As únicas histórias que podemos contar agora são
aquelas que já tínhamos.
[1]Os testes com a vacina proposta
pela Elan Pharmaceuticals mostraram que ela causava uma inflamação no tecido
neural. Outras iniciativas para combater a doença continuam em estudo.
Revista Piauí, nr. 69
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